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Entre novas e velhas vinhas, António Maçanita põe a mesa no Alentejo

As origens remontam à Idade Média, mas o projecto do enólogo e produtor transporta o Paço do Morgado de Oliveira, perto de Évora, para o presente.

Mauro Gonçalves
Escrito por
Mauro Gonçalves
Editor Executivo, Time Out Lisboa
Cozinha do Paço
Ranieri Faraoni
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A cozinha, esse espaço essencial e transversal a todas as casas, do humilde apartamento citadino ao antigo paço senhorial, onde os séculos permanecem até hoje sedimentados na arquitectura, na paisagem e na memória criativa. É num desses lugares que estamos, o Paço do Morgado de Oliveira, recuperado ao longo dos últimos oito anos para ser a nova casa dos vinhos Fitapreta. No centro desta propriedade medieval, mas também do projecto que lhe deu uma nova vida, está a cozinha.

“É um sítio onde reinventamos a cozinha alentejana – os pratos, os ingredientes, as tradições. De certa forma, tentamos replicar o que se viveu outrora dentro das paredes do paço”, começa por afirmar Afonso Dantas, o jovem e promissor chef madeirense que, depois de estar aos comandos do Audax, no Funchal, se mudou para o Alentejo. Hoje, chefia a Cozinha do Paço, sob o olhar atento de Manuel Maldonado, aqui no papel de chef executivo.

Paço do Morgado de Oliveira
DR

Mas voltemos à cozinha de 1306 agora modernizada para responder às exigências de um restaurante de fine dining. É o coração do edifício, localizado num piso intermédio. Daqui, as propostas do chef seguem para as várias salas e mesas que as escadas e corredores conectam entre si. Do ambiente exclusivo e intimista da tribuna da antiga capela à mesa corrida da adega ou ainda à exclusividade e recato do antigo gabinete do morgado, a experiência gastronómica é apenas uma parte da viagem. A proposta da Cozinha do Paço passa também por descobrir por dentro um inestimável tesouro nacional.

“Víamos este edifício da estrada e foi-me sempre aguçando a curiosidade”, começa por dizer António Maçanita, enólogo e produtor que começou em 2004 a produzir vinho no Alentejo. Em Maio de 2015, bateu à porta. Um ano e meio depois teve a certeza de que queria fazer da propriedade a sua casa, mas não só. Plantou mais de 30 hectares de vinha – para juntar aos cerca de 33 que já tinha no sopé da Serra d’Ossa –, construiu uma adega e recuperou o antigo paço, descobrindo as suas várias idades.

Manuel Maldonado e Afonso Dantas, Cozinha do Paço
Ranieri FaraoniManuel Maldonado e Afonso Dantas

“É o mais antigo passo rural que se conhece em Portugal, e também o mais monumental. Foi um trabalho feito por sete historiadores, durante dez anos. Em vez de chegarmos e caiarmos tudo de branco, fomos descascando o edifício”, explica. Diante dos olhos, temos uma fachada do século XIX, época da última grande transformação. Mas o edificado mantinha vestígios de outras – elementos do século XVI e traços ainda mais antigos, como a fresta trilobada que serviu de pista para a recuperação de uma fachada original, do século XIV. Das janelas aos pórticos, não há que enganar: estamos perante arquitectura gótica.

Embora as primeiras referências ao paço datem de finais do século, 1304 é o ano da fundação. “Foi fundado por D. Martinho Pires de Oliveira, um homem muito próximo de D. Dinis. Acaba por se tornar arcebispo de Braga e funda aqui o morgado. E depois, temos muitas passagens – há um confronto com as tropas castelhanas que não correu muito bem para o nosso lado, D. João II monta a cavalo pela primeira vez em público aqui, D. Duarte tenta seduzir a filha do feitor. O que é que acontece? O morgado morre na batalha de Alcácer-Quibir e a corte deixa de estar em Évora. Mas o paço mantém a função agrícola”, conta Maçanita.

Cozinha do Paço
Ranieri FaraoniCoscorão de borrego com tomatada

O paço envolve-nos na sua história, mas também na recuperação feita ao longo dos últimos anos. E recebe visitantes, quase todos os dias. Há visitas guiadas, provas de vinhos e almoços para grupos. Tudo passa pelo pátio de recebimento, espaço central no quotidiano deste enoturismo. É aqui que estão as mesas conviviais e que se servem os petiscos portugueses (incluindo as empadas da mãe do enólogo) preparados numa outra cozinha. “Apesar de nos divertirmos, sentíamos necessidade de ter um outro local, onde a energia acalmasse um bocadinho”, nota. Subidas as escadas, o foco volta a estar no vinho, premissa original desta casa. Pretexto ideal para retomarmos a conversa com Afonso Dantas. Na cozinha, claro.

A gastronomia alentejana é a base, os ingredientes de cada estação vão moldando a carta ao longo do ano. Do rio, chegam os peixes que são aproveitados de uma ponta à outra, incluindo as ovas, curadas e servidas em jeito de amuse bouche. Nas palavras de António Maçanita, “é um olhar de fora sobre o Alentejo” e que traz a sua dose de risco e criatividade, acrescentamos nós. A prová-lo, o chef serve um coscorão de borrego com tomatada e gema confitada – um snack que começa por regalar a vista e termina como agradável surpresa para o palato.

Cozinha do Paço
Ranieri FaraoniPregado com salada de funcho e funcho selvagem e beurre blanc de ovelha

Convém assinalar que 70% dos produtos usados são cultivados na horta do paço, enquanto os restantes chegam pela mão de fornecedores locais. À mesa chegam umas migas de assobio – referência directa a um clássico alentejano, fruto de uma cozinha de escassez –, enriquecidas com pequenos pedaços de papada e toucinho, espargos, coentros e alho negro. O menu continua de mãos dadas com a gastronomia local, desta vez com uma enguia fumada num escabeche de ervas e creme de pinhão.

Do lado dos vinhos, que aqui são de produção exclusivamente biológica, a harmonização é ponto assente. Aliás, foi também ponto de partida para a construção de todo o menu. A Fitapreta domina as escolhas com um Chão dos Eremitas Tinta Carvalha de 2020, um Palpite de 2008 e um Morgado de Oliveira 2017, ou com clássicos como o Fina Flor, a fazer lembrar um vinho de Jerez, ou o Laranja Mecânica, que chega oportunamente no momento da sobremesa. E a recordar que António Maçanita não vinifica apenas no Alentejo, abre-se também uma garrafa da Azores Wine Company, com a frescura e a salinidade própria das vinhas do Pico.

Cozinha do Paço
Ranieri Faraoni

No final, todas as refeições terminam da mesma maneira. Num momento quase cerimonial, o pão chega à mesa. Não é um pão qualquer, é um pão de feno e soro de leite, ainda quente. A massa é arejada, a côdea ruidosa no partir. A acompanhar, o azeite da casa – A Galega, também ele com o selo Fitapreta.

A Cozinha do Paço tem dois menus de degustação, compostos por seis e nove pratos, respectivamente. Em cada um deles, as opções de harmonização também variam – podem incluir, ou não, old vintages, o que se reflecte no preço. Para seis momentos, a conta pode variar entre 135€ e 180€ por pessoa. Caso escolha o menu mais extenso, o valor oscila entre 225€ e 285€. A reserva, essa, é sempre obrigatória.

Paço do Morgado de Oliveira, EM257, Nossa Senhora da Graça do Divor (Évora). 266 243 100. Ter-Sáb 12.00, 13.00 e 14.00, Qui-Sex 19.00

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