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Entre pratos turcos e palestinianos, esta história de amor encontrou lugar à mesa

Chama-se Rumi e fica na Rua da Boavista, a milhares de quilómetros do sítio onde tudo começou. O menu reflecte as origens do casal Hind e Ersin, com pratos típicos do Levante e da Turquia.

Mauro Gonçalves
Escrito por
Mauro Gonçalves
Editor Executivo, Time Out Lisboa
Rumi
RITA CHANTRE
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Não estamos apenas a comer num restaurante. Estamos sentados à mesa de Hind e Ersin Kurhan, um casal que há três anos fez de Lisboa a sua casa e que em Setembro do ano passado abriu o Rumi. Especialidades das cozinhas palestiniana e turca não se fundem – apenas convivem numa mesma extensa carta, cheia de opções para partilhar e sabores que desafiam as convenções palatais. Como em qualquer óptima refeição, há sempre uma boa história para condimentar os momentos passados à mesa. Aqui, elas são quase tantas como os pratos.

"A Hind e eu conhecemo-nos há quase oito anos em Istambul. Ficámos noivos, casámos, fomos para os Estados Unidos, depois para Toronto, mas aquele não era o nosso lugar, era demasiado frio. Os nossos filhos nasceram e foi aí que decidimos voltar para esta parte do globo", começa por explicar Ersin. Ele é curdo, com raízes na Anatólia Oriental. Hind, por sua vez, nasceu e cresceu em Gaza, motivo pelo qual a busca de um local seguro e de um sentimento de familiaridade, mesmo longe do país de origem, lhes tenha sempre servido de bússola.

Rumi
RITA CHANTRE

"Apaixonámo-nos e decidimos que queríamos ter uma vida juntos. A certa altura, tentámos perceber para onde é que podíamos ir. Um sítio onde não fossemos definidos pela nossa diferença, onde fossemos aceites e nos sentíssemos confortáveis. Os Estados Unidos, decididamente, não eram esse sítio", detalha Hind Kurhan. Para o marido, abrir o próprio restaurante era um sonho e, assim que pisaram em Lisboa, sentiram-se mais perto de concretizá-lo. "Achámos que era o sítio perfeito. Primeiro, porque não existem assim tantos restaurantes turcos que representem bem esta cozinha. Claro que abrir um restaurante é abrir um negócio, mas para nós também é uma forma de nos agarrarmos a algo realmente importante e que é também a nossa casa, da qual estamos separados de uma forma que foge ao nosso controlo. O Rumi é isto", remata a proprietária.

Sobre a mesa, acumulam-se os pequenos pratos. É o mezze – batalhão de entradas servidas nas cozinhas grega, turca e do Médio Oriente – no seu melhor. Não faltam clássicos como húmus, aqui enriquecido com pinhões torrados (8,50€), o labne (3,50€) ou a própria moussaka, aqui em versão vegana, com cogumelos (12€). O mezze representa praticamente metade do menu e está dividido em frios e quentes. No primeiro capítulo, encontramos o girit ezmesi (8,50€), pasta de feta ou beyaz peynir com pesto de pistáchio. No segundo separador, a intensidade dos sabores sobe de tom – o ali nazik (16€), um puré de beringela fumada, iogurte e alho, ou os rolinhos de musakhan (13€), rolos de massa filo, levemente fritos, com recheio de frango desfiado, cebola caramelizada, pinhões e sumac. O que para o lisboeta comum é uma espécie de pastel viciante e confortável, para Hind Kurhan é uma memória de infância.

Rumi
RITA CHANTREOs rolinhos de musakhan

"Estes rolinhos estão tão vivos na minha memória. Musakhan é um prato feito no taboon, o pão achatado que se coze num forno de barro. Em Gaza, a minha avó costumava fazer o pão assim. Depois, salpica-se o pão com azeite, sumac, cebola e depois o frango, e vai a assar no forno. No dia seguinte, havia sempre imensas sobras, então as mulheres desfiavam o frango, misturavam com a cebola e os pinhões e enrolavam em massa filo ou noutro tipo de pão e depois punham no forno ou fritavam. Os miúdos adoravam estes rolos, que são feitos com os restos de um prato totalmente palestiniano", recorda.

Não é só Hind que liga comida e recordações do país de origem. Para Ersin, é impossível ouvir Adana kebab (17€) sem pensar na Turquia. O prato chega à mesa – uma espetada de carne de borrego e vaca, servido com cebola e pimentos assados. Mais do que uma refeição, está ligado a um ritual de convívio demorado à volta de um grelhador, o ocakbaşı. "Na Turquia, o ocakbaşı está no meio dos restaurantes e é onde se grelha tudo – pimentos, beringelas, cebolas. E enquanto esperam pela comida as pessoas estão ali a conversar, a beber raki (que também se serve aqui, a par com uma lista generosa de vinhos naturais portugueses e cocktails). Dá para ficar um dia inteiro assim", conta.

Rumi
RITA CHANTREAdana kebab

A ementa conta com outras estrelas – umas vêm directamente da grelha, outras são conhecidas como os dumplings turcos, embora o nome oficial seja manti (15€-17€). Há dolma feito com cebola (14€), que é assada no forno e recheada com arroz e carne, e uma versão vegana de sarma (10€), outra iguaria turca feita de folhas de videira, recheadas com arroz, ervas, passas e especiarias. "O que acho mais interessante no nosso menu é o facto de sermos autênticos na forma como fazemos os pratos. O húmus, por exemplo. Tive uma pega com o chef porque queria que o húmus fosse como a minha avó fazia. E o kebab que fazemos, fazemos como os kebabs que crescemos a comer", realça Hind.

O espaço reúne elementos de ambas as heranças culturais. Na segunda sala – a que conduz à fresca esplanada montada nas traseiras, encontramos uma representação da dança rodopiante feita pelos dervixes, criada por Jalaluddin Muhammad Rumi, o poeta do século XIII que inspirou também o nome do restaurante. Da própria casa, o casal trouxe peças e artefactos que apontam o caminho que está para trás. São sobretudo quadros e candeeiros, peças de família que fazem com que aqui, tanto eles como outros conterrâneos se sintam em casa. Embora os almoços tragam clientes ao Rumi, a hora de ponta tem sido mesmo o jantar. Com receitas de família e chefs trazidos da Turquia, o Rumi evoca as raízes, mas também a nova vida dos Kurhan. Ambos admitem que ver a satisfação de clientes portugueses tem um gosto especial.

Rumi
RITA CHANTREErsin e Hind Kurhan

"É muito importante para nós que o restaurante seja acessível. Ao mesmo tempo que estamos a representar as nossas culturas, também queremos honrar e prestar tributo ao sítio que nos acolheu", afirma Hind. "Estamos em Portugal há três anos e os últimos dois, com tudo o que está a acontecer na Palestina, têm sido muito, muito difíceis para a minha família. Tenho muitos dos meus familiares presos em Gaza. Perdi alguns deles. A casa da minha família foi destruída. Sentíamos que era um momento assutador para se ser palestiniano quando decidimos abrir um restaurante assumidamente palestiniano. E as pessoas receberam-nos e ajudam-nos por sermos palestinianos. Isto é algo que nunca tinha experienciado na minha vida."

Rua da Boavista, 122 (Cais do Sodré). 96 314 8016. Seg-Dom 12.00-00.00

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