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Gabriela Ruivo
© Arlei Lima/ Time Out LisboaGabriela Ruivo a segurar o livro, ‘Lei da Gravidade’, editado pela Porto Editora (2023)

Gabriela Ruivo é “embaixadora” da língua portuguesa em Londres

A autora veio a Lisboa apresentar o novo livro, ‘Lei da Gravidade’. Aproveitámos para falar sobre a literatura em língua portuguesa e a importância de a promover lá fora.

Raquel Dias da Silva
Escrito por
Raquel Dias da Silva
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Gabriela Ruivo estava ainda na 4.ª classe quando ouviu pela primeira vez As Aventuras de João Sem Medo, de José Gomes Ferreira. “É uma referência para a vida. Ainda bem que, naquele tempo, não havia esta preocupação excessiva com o que as crianças podem ou não ler, porque de facto não é para crianças, mas há 40 anos foi lido, por uma professora, numa sala de uma escola primária, a primeira cooperativa de ensino depois do 25 de Abril”, conta-nos a autora, à conversa na Tantos Livros, Livreiros, na Avenida Marquês de Tomar. “Um prodígio da imaginação”, afiança. “Foi a ouvir essas histórias que também eu quis começar a escrever.” O seu novo romance, Lei da Gravidade, chega dez anos depois do primeiro, Uma Outra Voz, com o qual venceu o Prémio LeYa de 2013. A viver em Londres desde 2004, veio a Portugal de propósito para o apresentar e aproveitou para nos falar da importância de promover, também no estrangeiro, a literatura em língua portuguesa.

“É engraçado que, na apresentação em Lisboa [na Fnac da Avenida de Roma, na antiga Livraria Barata], estava lá a minha professora e até vários colegas dessa altura”, partilha. “Sempre tive livros em casa e comecei a ler cedo, mas conheço escritores sem essa experiência. Tem de haver maneira de as crianças e os jovens se virarem de alguma forma para os livros. Claro que também é verdade que, se calhar, lia livros que não eram muito apropriados para a minha idade. Eça de Queiroz aos dez, 12 anos anos. Até acho que faz bem, termos contacto com linguagem e contextos complexos. Agora, para tirar dúvidas, é só ir à Internet”, brinca, entre risos, antes de mencionar A Vaca Leitora, que escreveu para os mais novos e foi editado em 2016, pela Dom Quixote, com ilustrações de Rute Reimão. Quem sabe se não convence algum pequeno leitor do prazer de jogar com as palavras.

Lá em Londres, no seu apartamento, há uma estante só com livros para gente de palmo e meio, todos escritos ou traduzidos para português, de Portugal, do Brasil e de Cabo Verde. Não são para os seus filhos – esses já crescidos –, mas sim stock da Miúda Children’s Books, uma livraria online que herdou de uma amiga. “Antes de emigrarmos, com crianças pequenas, pensamos ‘ai, coitadinhos, vamos para um país diferente, com uma língua diferente’. Quando chegamos lá, passado poucos meses, a nossa preocupação muda completamente, porque percebemos ‘vão desaprender, não vão saber falar português daqui a um ano’, portanto precisamos de falar português e precisamos de livros em português”, diz Gabriela, que a certa altura assumiu as rédeas do projecto. “A minha amiga não tinha tempo e eu, que já era uma escritora publicada, trabalhava em casa e achei que podia tomar conta.”

A Miúda, a livraria, não ocupa muito espaço – apenas umas estantes na sala –, mas é uma vitrine para o mundo. Às vezes, revela Gabriela, até há escolas interessadas, uma vez que o catálogo inclui livros bilingues e até multilingues, como a Barca do Inferno, de Mafalda Brito, em inglês e português de Portugal, e Mukani Descobre Sua Força, de Renata Tolli, Virginia Gandres e Joaquim Maná Kuin, que junta o Huni Kui, uma língua indígena da América do Sul, ao inglês e ao português do Brasil. “Durante a pandemia, as pessoas estavam fechadas em casa e todos os dias me compravam livros, até para enviar para Portugal. Agora, na ressaca e com o Brexit, as vendas são residuais, muito honestamente, mas é um projecto pelo qual tenho muito carinho. Um de muitos”, confessa, para nos falar logo de seguida do clube do livro que organiza, o PinT – Portuguese in Translation. “Lemos livros, traduzidos para o inglês, de autores de língua portuguesa.”

A tradução e a internacionalização

Dulce Maria Cardoso, Afonso Cruz, Ondjaki, José Eduardo Agualusa e Susana Moreira Marques são apenas alguns dos muitos autores que já passaram pelo PinT (neste caso, em vez de uma cerveja, leva com uma caneca de cultura). Em formato online, via Zoom, as sessões são gratuitas e acontecem de dois em dois meses, num total de cinco leituras por ano. A próxima, marcada para dia 11 de Novembro, convida a discutir A Vista Chinesa, da brasileira Tatiana Salem Levy, que estará presente, tal como Alison Entrekin, a tradutora da edição inglesa, publicada este ano pela Scribe Publications. Como o evento será bilingue, em português e em inglês, haverá ainda interpretação em tempo real por Beatriz Velloso. “É uma óptima maneira de promover o talento de países de língua portuguesa. A Inglaterra tem muitos leitores e o mercado é muito grande, mas as traduções representam uma percentagem mínima. Tirando os clássicos mais conhecidos, os ingleses lêem poucos livros traduzidos. Nós [portugueses], pelo contrário, lemos imenso, e é esse o nosso objectivo, conseguir que os leitores de língua inglesa se interessem por estes autores.”

Gabriela já está a pensar nos livros que vai querer discutir no próximo ano. A primeira sessão de 2024 deve acontecer em Janeiro e qualquer pessoa se pode juntar. No passado mês de Setembro, por exemplo, o livro em discussão era o Torto Arado [Crooked Plow, na edição inglesa], e reuniram-se mais de 60 pessoas online, para falar sobre a obra do baiano Itamar Vieira Junior. O melhor, defende, é que fica sempre tudo gravado e disponível para visualização no Facebook. “É muito trabalho e não é remunerado, por isso, entretanto, também criámos uma associação para ver se conseguimos financiamento. Na verdade, da equipa, sou a única que não tem um emprego [ser escritora ainda paga mal]. Mas gostaria imenso de fazer nascer uma revista online, com textos traduzidos de autores [de língua portuguesa] que ainda não foram publicados cá. Agora, aliás, estamos a pensar fazer um evento, em conjunto com a PELTA [a associação literária de tradutores de português para inglês], que envolve precisamente autores que ainda não estão traduzidos, onde teríamos amostras em inglês para apresentar ao público em geral, mas sobretudo a editoras e outros tradutores.”

Não podia ser mais claro o amor que Gabriela Ruivo tem pela língua portuguesa. São quase 280 milhões de falantes em todo o mundo e a autora está convencida que ainda podemos desencantar mais alguns. A literatura traduzida pode muito bem ser uma porta de entrada (ou de saída, dependendo da perspectiva) do tanto talento em português que há por aí, em várias geografias. E nem durante a pandemia, com a Miúda a vender livros que nem pãezinhos quentes, o seu sentido de missão esmoreceu. A prova, como se precisássemos de mais, é o colectivo multidisciplinar Mapas do Confinamento, que co-criou em 2021 com Nuno Gomes Garcia, autor português a viver em Paris. Juntos desafiaram vários artistas de língua portuguesa, incluindo romancistas e poetas, a contribuir para uma espécie de arquivo sobre os momentos históricos que vivemos. Está tudo disponível online em português, mas também em inglês e francês.

No meio disto tudo, é difícil perceber como é que Gabriela arranja tempo para escrever. É um grande mistério – e é também o tempo o grande mistério de Lei da Gravidade, que só concluiu depois de ter sido seleccionada para a bolsa de criação literária do Ministério da Cultura. “Não é um mistério, mas há um mistério. Quando o leitor começa, a acção já está a meio, e o meu ponto de partida foi, curiosamente, a ideia de que o tempo não existe, que o passado, o presente e o futuro estão a acontecer os três agora.” Como esta conversa, que só existe para quem lê no momento da leitura, o que poderá ser daqui a um dia ou a um mês, mas que na verdade já aconteceu há semanas e é, portanto, passado e não presente. Já sobre o futuro, perguntamos (perguntámos) a Gabriela, que nos disse que, na ficção e na realidade, espera que os ciclos de trauma se quebrem. Foi isso que tentou passar no seu novo romance, que talvez, quem saiba, venha a ser traduzido e encontre também um lugar numa vitrine qualquer, à vista de todos.

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