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Gregório Duvivier: “Não devemos tentar congelar a língua”

A Time Out falou com o humorista brasileiro sobre a reposição da peça ‘O Céu da Língua’ e debruçou-se sobre o que une e separa o idioma português do Brasil e de Portugal.

Hugo Geada
Escrito por
Hugo Geada
Jornalista
O Céu da Língua
Raquel Pelicano | O Céu da Língua
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Depois de esgotar em Lisboa, durante mais de duas semanas, em Novembro do ano passado, o Teatro Aberto, com a peça O Céu da Língua, o humorista brasileiro Gregório Duvivier está de volta a Portugal para apresentar esta produção. Mas antes de arrancar em digressão e de actuar em cidades como Faro, Coimbra, Caldas da Rainha, Beja, Braga, Porto, Águeda, Vila Real, Paredes, Setúbal e Leiria, o co-fundador da Porta dos Fundos esteve a falar com a Time Out sobre a peça, mas também (e sobretudo) sobre a nossa língua e o que une e separa o português de Portugal e do Brasil. 

Numa conversa que passou pela Turma da Mônica, a poesia, Sam the Kid, a legendagem e dobragem e o "grammar shaming”, nunca foi tão interessante discutir a língua portuguesa. 

O Céu da Língua foi um sucesso tão grande que está a ter uma reposição em Portugal. Tinha essa expectativa?
Não, não tinha as expectativas assim tão elevadas. É uma peça sobre língua portuguesa e poesia. Isto não são exactamente os assuntos mais pop. As pessoas acham que a poesia é chata, muito solene ou “empolado”, como dizemos no Brasil. É um tema para poucos, é pedante. Eu acho que é o contrário disso – e a peça tenta ser a prova. Existe piada na poesia e é possível encher grandes salas à conta dela. É uma peça que lembra a importância e a popularidade da metáfora e do ser poético. 

A peça está muito assente na língua portuguesa que – quer queiramos, quer não –, ainda é alvo de grande debate entre portugueses e brasileiros, que discutem qual é o mais correcto. Achas que pode ser uma forma de atenuar as nuances deste diálogo e de mostrar que há espaço para ambas?  
Sim, eu acho que este debate não precisa de ser raivoso. O debate sobre qual é a língua que estamos a utilizar, sobre quais são os rumos da nossa língua, pode ser teatral e pode ser poético. A peça entra neste debate, mas sem raiva, nem tensão. É mais para nos lembrar que esta língua que falamos chama-se português, mas já se chamou galego. Um dia a nossa língua pode ter outro nome e isso não é grave.  

Qual é então a sua intenção? 
O importante é celebrá-la e ter orgulho dela. Não devemos tentar congelar a língua. Os gramáticos, durante muito tempo, tentaram que fosse normatizada. A língua é viva, temos que nos lembrar que é um objecto de estudo vivo que não pára de mudar todos os dias. As palavras estão em disputa e sempre estiveram. O campo de batalha da política é a palavra. Não existe política sem palavra e todo o uso da palavra é também político. A disputa pelas palavras sempre fez parte da língua. Por exemplo, no Brasil corrige-se e ri-se muito das pessoas que dizem "pranta" em vez de planta. Mas Camões, n'Os Lusíadas, diz: "nas Ilhas Maldivas tinha uma pranta". N'Os Lusíadas, Camões escreve "frecha", "frauta", que é algo, no Brasil, tido como um português inculto, ridículo e ignorante. Mas acaba por ser o português camoniano. Acho que usar este tipo de expressões faz-nos festejar a língua nas suas múltiplas formas e lembrar que aquilo que hoje consideramos abjeto já foi considerado aceitável ou até cultíssimo. E vice-versa. É importante lembrar-nos da importância da diversidade linguística.  

Estava a falar sobre as pessoas que trocam os "L's" pelos "R's" e eu só me conseguia lembrar do Cebolinha da Turma da Mônica, apesar de ele fazer a troca ao contrário, ele trocava os "R's" pelos "L's". 
Exatamente. Eu fazia isso, eu era Cebolinha quando era pequeno. Por isso, faz sentido fazer esta troca. Mas, se pensares nisso, a nossa língua está sempre a fazer isso. Por exemplo, "blanco" do latim passou a ser "branco". "Plata" ficou "prata". Isto é uma tendência do nosso idioma. Durante muito tempo, os gramáticos tentaram manter esta tendência e proibí-la, mas o Camões estava a ser disruptivo e corajoso ao escrever “pranta”. Existia uma força muito grande dos gramáticos em latinizarem a nossa língua e deixarem-na assim. Em alguns casos conseguiram, como a palavra "glúten", que é a palavra latina, apesar da população usar a expressão "grude". Por isso, na língua portuguesa temos duas palavras oriundas do latim, uma culta, outra popular. É muito interessante, adoro este assunto, poderia ficar horas a falar sobre este tópico. 

É interessante falar sobre como as pessoas que não falam um português correcto são gozadas por pessoas mais cultas. Há um rapper português, o Sam the Kid, que, recentemente, abordou também numa entrevista como esta "grammar shaming" pode ser uma forma de ostracizar pessoas com menos posses e instrução. 
Isso é algo que existe bastante. Dizer que o povo não pode falar porque a sua língua não é bonita ou não é certa é uma forma de silenciamento. No Brasil, encontras muitas pessoas que dizem: "ele nem sequer sabe falar português". Isto faz com que as pessoas não se sintam autorizadas a falar porque, supostamente, não dominam a língua. Politicamente, isto é uma tragédia. As pessoas sentem que não têm voz. Por isso, é importante empoderar linguisticamente e legitimar as vozes que existem na nossa língua. Por exemplo, se obrigares as pessoas no Brasil a falar na segunda pessoa do plural, ninguém vai falar nada. Ninguém sabe conjugar (risos).Cheguei inclusive a fazer um sketch para a Porta dos Fundos sobre isso.  

É algo ultrapassado. 
É importante lembrar a validade do português que falamos, não só no Brasil, mas também em Portugal, porque o português também tem preconceito consigo mesmo. E o Brasil, eventualmente, também tem preconceito linguístico com Portugal. Temos tendência a achar as coisas que os portugueses dizem muito engraçadas. Mas eu acho que não é para combater, porque existe um afecto nesse acto. Mas também é preciso ter algum cuidado. Portugal tem de ter atenção para preservar a sua identidade.  

Em que sentido? 
Eu entendo a questão, por exemplo, das crianças estarem a falar brasileiro. É preciso pensar seriamente em programação com dobragens de português do Portugal. Senão, a tendência pode ser mesmo que o português de Portugal acabe. Seria uma pena, a diversidade linguística é muito importante. 

A verdade é que isto é um assunto que já se houve falar há muito tempo. Por exemplo, há pouco falávamos da Turma da Mônica, eu lembro-me dos meus pais dizerem que eu lia tantos livros dessa colecção que um dia ia falar brasileiro. 
E é um debate que é ainda mais anterior a isso. É algo que se deve ter iniciado no século XIX. Eu sinto que o português brasileiro se diferenciou muito do português até por uma questão de colónia contra império. No século XIX, enquanto o Brasil era colónia, era obrigatório falar português de Portugal. E mesmo depois da Independência, isto continuou a ser uma realidade. Durante muito tempo nos teatros, era obrigado a falar português com sotaque de Portugal no Brasil. O primeiro a falar brasileiro nos palcos do teatro foi João Caetano, um actor. Isto aconteceu 50 anos depois da nossa Independência. 

Foi um momento histórico. 
Depois da Independência, existiam duas línguas: uma língua rica, culta, adulta, que era português de Portugal, e o português brasileiro, que era inculto. Com o passar do tempo, aconteceu uma inversão, o Brasil cresceu e Portugal passou a consumir muito mais o português do Brasil do que o brasileiro passou a consumir o português de Portugal. Não acho que seja necessariamente conservador querer proteger uma variedade linguística... Ou talvez seja conservador, mas eu acho que é um conservadorismo positivo. Acredito que pode existir um conservadorismo positivo, como, por exemplo, o das florestas. Devemos conservar variantes linguísticas, protegê-las e orgulhar-nos delas. 

E não fazer "grammar shaming" às pessoas.  
Esse é um termo que eu acho que tem muita graça, mas não precisa de usar em inglês. Nós temos as palavras, temos que as usar. Como é que diríamos? É um "envergonhamento gramatical”. Eu observo que o português de Portugal usa muito mais palavras em inglês do que o brasileiro, como o "grammar shaming" ou "whatever". Vocês usam a palavra em inglês no meio da frase com muita naturalidade. O brasileiro não faz isso. Nós não ouvimos música noutras línguas, quase. Claro, o pop, como no caso da Lady Gaga, é excepção, mas é raro encontrarmos bandas brasileiras a tocar em inglês, isso quase não existe. Temos um apego e admiração muito grande pela nossa língua. Não faria sentido cantar noutra língua. Os portugueses fazem frequentemente. E não tem problema também, claro, se querem atingir um público maior, não vou criticá-las, mas vou lembrar que era algo que não aconteceria no Brasil. 

Isso era algo que acontecia mais no início do século XXI, hoje temos muito mais projetos a cantar em português. Até acrescentaria que é raro agora encontrar bandas portuguesas a cantar em inglês. 
Isso é muito bom. O português nasceu aí e vocês têm uma língua muito bonita. É importante continuarem a usá-la. Mas acho muito engraçado vocês falarem tão correctamente o inglês. Quando o brasileiro diz uma palavra em inglês, ele "entorta" a expressão até se conseguir apropriar dela. Vocês conseguem ligar e desligar esse botão muito facilmente.  

É verdade, mas isso também está relacionado com um tópico que já tinha mencionado, que é o facto de nós não dobrarmos os nossos filmes e séries. 
Sim, é verdade. Isso ajuda imenso. 

Num assunto um pouco diferente: os seus espetáculos já não são comédia pura e dura. Incluem poesia, teatro... Sente que esta mistura de estilos é o futuro da comédia e até dos humoristas que estão à procura de se reinventar? 
Não sei se é o futuro, mas é onde eu mais gosto de estar, nesse híbrido de géneros. Gosto muito quando o humor se mistura com outros géneros. Pode ser o drama, a música, o musical e até a poesia, que é o caso desta peça. Esta peça está nessa esquina entre o cómico e o poético. As comédias que eu mais gosto, em geral, são híbridas com outros formatos. O Greg News, por exemplo, era a comédia com o jornalismo, que é algo que me interessa muito. Quando a comédia se encontra com a investigação jornalística e com a procura da verdade e com o engajamento político. Os meus filmes preferidos são comédias dramáticas. Gosto de ter a sensação em que não sei se devo estar a rir ou a chorar. A comédia que se faz hoje, ela aceita o drama. E esta peça encontra-se nessa linhagem. Ela é uma peça que é filha do casamento da comédia com a poesia. 

Centro Cultural de Belém (Lisboa). 24-25 Jun (Ter-Qua). 20.00. 20€-32€  

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