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Malagueta contra o Corona

Alfredo Lacerda
Escrito por
Alfredo Lacerda
chili
Alexander Schimmeck/Unsplash
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Para sair da rotina, o crítico da Time Out sugere uma quarentena com mais chiles. Um pouco de picante nunca fez mal. Muito picante só faz bem.

Uma das minhas maiores batalhas gastronómicas tem a ver com a malagueta. 

Há uma ideia generalizada de que malagueta faz mal. Ao estômago, ao rabo, ao dedo mindinho do pé. Tenho lido muito sobre malagueta e não vejo uma evidência disto. Pelo contrário. A ciência tem sido elogiosa e podemos inclusive comprar malagueta nas farmácias sob a forma de cremes, óleos, comprimidos.

A capsaicina, o seu composto activo, faz bem a tanta coisa, do cancro à hipertensão, que deviam
testá-la contra o Corona.

O principal benefício, no entanto, é no cérebro. Chama-se felicidade. Comer malagueta – comer a sério – põe-me eufórico e alegre como se tomasse anfetaminas. Vou jantar ao Tentações de Goa, por exemplo, e
apetece-me ir abrir a pista do Lux às onze da noite.

É preciso dizer que no Tentações de Goa não há níveis de calor. Não há cá quer pouco, médio ou muito picante. Clap, clap, clap. Faz sentido. Na taberna do Manuel perguntam-vos: quer pouca, média ou muita cebola?

Há uns anos, o Tentações servia uns chiles panados para clientes especiais (obrigado, obrigado). Eram uns chiles grandes, fogo em forma de vegetal. Eu e o meu amigo Hugo Neves, ex-director de arte desta
revista e campeão do picante, suávamos da testa e das têmporas como crianças febris depois do Ben-u-ron. Só a expectativa do prazer e da dor – nunca sabíamos bem se ia ser das picantes ou das muitíssimo picantes – deixava-me excitado, qual submisso numa masmorra escura antes de ser açoitado por uma dominatrix alemã.

Parece tarado, místico, tonto. Nem tanto. Ainda no ano passado, um estudo desenvolvido com ratinhos brancos suíços demonstrou que estes se tornavam mais sociáveis quando submetidos a uma dieta de
capsaicina. E se isto acontece a roedores suíços, imagine-se o que faz a ratinhos tugas.

Um efeito imediato quando comemos um prato picante é a subida dos níveis de adrenalina. Basta essa emoção do perigo, do risco, para nos fazer acelerar o coração. Com isso, o metabolismo também dispara – e esta é uma das razões para que a malagueta seja prescrita contra a obesidade.

Em termos culinários, o sabor é igualmente emocionante.

Muita gente gourmet gosta de desconsiderá-lo, com altivez teórico-prática: “O picante, quando é muito forte, apaga todos os outros sabores”, dizem, enquanto apreciam o seu jus de carne. Contesto. Eu e a ciência, novamente. O picante pode até tornar o palato mais sensível.

Uma das grandes refeições picantes da minha vida foi num restaurante de vanguarda tailandês. A Tailândia ama a malagueta como Portugal ama a vinha d’alhos. Mas a sua cozinha equilibra o picante com acidez, frescura, doce e salgado. No mesmo prato podemos sentir tudo isto. Mesmo que as doses de malagueta sejam elevadíssimas, como era o caso. Alguns dos amigos que me acompanhavam, menos treinados, tiveram de recorrer ao WC antes do fim da experiência.

E aqui coloca-se outra questão. A malagueta é como muitas das coisas que nos dão muito prazer: precisa
de treino, precisa do nosso empenho. É preciso treinar a malagueta, pelo menos, dia sim, dia não. A habituação é rápida. Ao fim de 15 dias, está-se apto a comer um caril como deve ser.

Estes tempos de quarentena são ideais para essa iniciação. Espevite a comida. Espevite-se. Ponha um pouco mais de picante no seu quotidiano. 

Malagueta contra a rotina.
Malagueta contra a quarentena.

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