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No lago de Daniel Gorjão, todos os cisnes são bem-vindos

A nova peça do encenador parte do bailado clássico ‘O Lago dos Cisnes’ para questionar diferentes tipos de corpo. Estreia-se a 28 de Maio no CCB, onde fica em cena até dia 30.

Beatriz Magalhães
Escrito por
Beatriz Magalhães
Jornalista
O Lago dos Cisnes
João Costa | O Lago dos Cisnes
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Estamos numa sala de ensaios, branca e com luzes artificiais? Há, lá ao fundo, uma estrutura preta alguns centímetros acima do chão, tal e qual um mini palco? Não. Estamos algures numa floresta, onde um lago lindo e negro (segundo descrevem aqueles que por ali andam) serve de local de encontro para um jovem casal. Vestem ambos uma saia preta, que pára um pouco acima dos tornozelos, e uma camisa branca, toda abotoada nas costas, quando se encontram junto ao lago. O seu discurso é apaixonado, as palavras ditas de forma suave, as suas passadas largas e leves, e os seus braços dançam no ar, lembrando os movimentos a que costumamos assistir num bailado. É aliás a um bailado – O Lago dos Cisnes – que Odile e Odette vão buscar parte da sua coreografia, bem como os seus nomes. De resto, este não é O Lago dos Cisnes de Tchaikovsky, é sim o de Daniel Gorjão.

Não há bailarinas de tutus, nem muito menos composições clássicas a ecoar pela sala. Não é uma réplica, é antes uma reinterpretação, em que as personagens são trazidas à vida por um conjunto de pessoas fora dos padrões normativos da dança clássica. Até porque O Lago dos Cisnes foi apenas um ponto de partida para fazer questões acerca do corpo, ou aliás dos corpos. Dos corpos que geralmente interpretam personagens de bailados e, por outro lado, daqueles que não costumam encontrar aí lugar. De todos os corpos – mais altos, mais baixos, mais gordos ou magros, com menos um braço ou uma perna.

O Lago dos Cisnes
João Costa

“A vontade que eu tinha era de questionar, em grande parte, o padrão dos corpos usados naquilo que é uma companhia de repertório e das pessoas que dançam este tipo de histórias. Tinha vontade de questionar isto com outros tipos de corpos que não são aquilo que é, normalmente, o padrão na dança. É uma história de transformação, de transmutação, de devir, de coisas que te acompanham e às quais não consegues fugir”, começa por dizer o encenador Daniel Gorjão, depois de um ensaio no CCB (Centro Cultural de Belém), onde se vai estrear a peça, entre 28 e 30 de Maio.

Os intérpretes (Batata, Duarte Melo, Inês Cóias, Rita Carolina Silva e Zé Couteiro) foram, por isso, escolhidos através de uma audição. “Se não fosse com uma audição, se calhar ia haver pessoas que eu não ia saber que existiam. E isso para este espectáculo não servia, não podiam ser só as pessoas que eu conheço”, explica. Ainda que permaneçam ecos de uma coreografia clássica, a ideia nunca foi ter bailarinos profissionais em palco, foi sim que a história se transformasse e se metamorfoseasse, assim como acontece com as personagens, a partir das imagens que estes corpos criam, sozinhos ou acompanhados, abraçados, no chão ou no ar.

O Lago dos Cisnes
João Costa

Para Daniel Gorjão, é aí que reside a beleza. Na forma como, sobre um lago de linóleo preto espelhado, o elenco que, na sua maioria, não é treinado em dança, se apropria do espaço com movimentos, vários e diversos, que simbolizam o amor, a paixão, o desejo ou a mudança. Contudo, “nunca houve a vontade de anular aquilo de onde isto nasceu, de onde partiu. Há muitas coisas na coreografia que remetem exactamente para uma codificação coreográfica que existe no bailado clássico, principalmente a nível dos braços, de algumas posições dos corpos. Depois, tentei ir à procura de outras referências e fui buscar muitas coisas a capas de revistas da Vogue e trouxe coisas desse universo”, estas associadas à maneira como personagens como Rothbart ou a voz que a acompanha se movimentam de forma mais estática.

Tudo o resto que vemos vem dos próprios intérpretes, que estiveram directamente envolvidos em parte da criação do texto, da autoria de André Tecedeiro. Daniel Gorjão propôs este espectáculo a Tiago Rodrigues, há cerca de dez anos, quando este era director artístico do D. Maria II. Nessa altura, o encenador convidou Dulce Maria Cardoso para escrever o texto, mas, como o espectáculo não chegou a acontecer, uns anos depois o encenador decidiu convidar André Tecedeiro, após ter visto uma outra peça escrita por ele. O texto percorre temas como relações entre mães e filhos, o amor, a fluidez de género e a busca pela nossa verdadeira identidade, mas também reflecte um pouco daquilo que é a história de cada um dos intérpretes.

O Lago dos Cisnes
João Costa

“Não se mudou aquilo que nós queríamos contar, mas foi-se ajustando também à forma como aquilo tocava cada actor. Muita vezes, no desconforto que o texto lhes podia causar e continuou a causar até se apropriarem dele”, continua. No fim, o próprio desconforto acaba por dar lugar à aceitação – da transformação, de um novo corpo, de quem somos. Aceita-se o próprio lago, que não vai deixar de ser negro, e aceita-se o facto de que, nessas águas, há um cisne que teima em admirar o seu reflexo. Aceita-se dançando, como se quer e como se pode. 

CCB – Centro Cultural de Belém (Belém). 28-30 Mai. Qua-Sex 20.00. 6€-15€

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