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FCSH, Arqueologia, Laboratório
©Ricardo LopesFCSH, Laboratório de Arqueologia

Nova escavação, mais passado se revela

Em Lisboa, cada vez que se escava um buraco, lá vêm os romanos. Ou, pelo menos, é o que parece.

Helena Galvão Soares
Escrito por
Helena Galvão Soares
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Sílvia Casimiro, arqueóloga e doutoranda da Universidade Nova (NOVA-FCSH), coordena os trabalhos de campo dos mais recentes achados romanos da cidade com as empresas de arqueologia Atalaia Plural e Cota 80-86. “Então, encontraram outra necrópole romana?” – começamos por perguntar ingenuamente.

“Não, não é outra, é a mesma, a mesma da Praça da Figueira, das Portas de Santo Antão, do Convento de Santa Joana e segue por ali fora. É a Necrópole Noroeste de Olisipo”, esclarece Sílvia Casimiro. “Mas isso são quilómetros! Que tamanho tinha o cemitério de Olisipo?” – continuamos. Sílvia explica então que as necrópoles romanas não eram como os nossos cemitérios. “Os mortos eram considerados nefastos, e por isso eram enterrados fora da cidade, ao longo das vias de entrada ou saída da cidade. As necrópoles romanas acompanhavam as vias, para que todas as pessoas que entrassem e saíssem tivessem a recepção dos mortos, dos monumentos funerários... seria uma imagem marcante.”

FCSH, Arqueologia, Laboratório
©Ricardo Lopes

Esta característica das necrópoles romanas ajuda os arqueólogos de duas maneiras. Primeiro, vão ficando a conhecer os limites da cidade, para cada época – se há necrópole, já estamos fora da cidade. Segundo, se sabem onde passa a via romana, há uma razoável probabilidade de encontrarem sepulturas quando escavam os terrenos adjacentes. Foi o que aconteceu nas sondagens desta escavação nas imediações da Avenida da Liberdade, em que se encontraram sepulturas que deixaram a arqueóloga naturalmente entusiasmada com o futuro, quando escavarem toda a área: “Há-de haver mais. Nunca se acerta, em seis sondagens, logo em três sepulturas – não são únicas de certeza.”

Nestas sondagens foram encontradas ossadas e objectos rituais que habitualmente acompanham os mortos – entre eles surgiu uma moeda com a efígie e nome de Gordiano III (imperador entre 238 e 244). É um objecto particularmente importante porque permite situar a sepultura em meados do século III. “Foi uma surpresa total! Estava a levantar o espólio... levantei uma taça, um púcaro, depois uma pequena lucerna já um bocadinho escafiada, e quando estava a levantar, ainda com terra e tudo, para não se partir mais, por baixo, vejo a moeda! ”

Estamos no Laboratório de Arqueologia / Laboratório de Antropologia Biológica e Osteologia Humana do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (LABOH-CRIA) da Universidade Nova, para onde objectos, ossadas e sedimentos levantados estão a ser levados para análise. Sílvia vai mostrando os objectos embalados (muitos cacos e caquinhos) e explicando o processo: “Isto agora é tudo limpo, e depois as peças ficam preservadas numa sala com temperatura constante. Todos estes fragmentos são colados, um a um. É um processo que demora algum tempo.”

Então e os restos humanos? “São analisados aqui”, responde. Faz-se a análise dos indivíduos, processa-se os ossos, verifica-se se têm vestígios de alguma patologia, que idade tinham – essas coisas todas são feitas aqui, e depois recolhe-se amostras. Os ossos ficam ali [na sala de frio] preservados. Para amostra, normalmente prefiro um dente, se estiver solto da mandíbula melhor, ou então osso, e mandamos para fazer análises de isótopos, e em alguns casos de radiocarbono.”

E essas análises fazem-se aqui? “Não, não. São equipamentos muito caros e que exigem muitos cuidados de manutenção. Os isótopos são feitos ao abrigo do meu doutoramento, com protocolos que estão estabelecidos com outras universidades. As análises de radiocarbono é que é mais difícil... são caríssimas, 500 a 600 euros uma análise – uma única análise.”

É aqui que convém fazer um parêntesis para explicar que tudo o que foi descrito até agora não é o que costuma suceder. “Normalmente o que se faz é o trabalho de escavação, elabora-se o relatório técnico e depois os materiais são depositados. Não é comum investigar-se tão a fundo.”

No caso das escavações em que Sílvia tem participado, têm sido feitas as análises de acordo com o tema da tese, que se debruça sobre a infância. “Dos esqueletos que tenho aqui da Necrópole Noroeste, já tenho umas 150 amostras, 80 e tal já processadas. Dessas, cerca de 60 deram informação – as outras não.”

Estas análises permitem conhecer padrões de dieta, períodos de desnutrição e dinâmicas de amamentação, por exemplo. “O estudo da amamentação no passado é muito importante não só porque é uma condicionante da saúde na infância, mas também porque conhecer as suas dinâmicas permite-nos explorar os inibidores da lactação, como o stress ou a restrição nutricional e, ainda, questões relacionadas com a fertilidade, porque numa sociedade em que o período de amamentação é mais extenso, as mulheres têm menos filhos e menos disponibilidade para outras actividades... Dá-nos algumas ideias sobre a própria organização destas sociedades.”

Livro, Lisboa Romana, Para além desta vida, A memória funerária da cidade
©Mariana Valle Lima

Os resultados a que Sílvia e outros investigadores, de diversas áreas, têm chegado a partir das escavações arqueológicas estão a ser publicados pela CML desde 2019 numa colecção de oito volumes como parte do projecto Lisboa Romana – Felicitas Iulia Olisipo. No âmbito deste mesmo projecto, numa colaboração com o Centro de Arqueologia de Lisboa e a ERA Arqueologia, vai estrear a 30 de Março o documentário Ecos da Cidade dos Mortos – A Grande Necrópole de Olisipo, de Raul Losada, que mostra a dimensão das estruturas funerárias romanas de Olisipo, através de recriações arqueológicas virtuais, animações, imagens de arquivo e depoimentos.

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