A Time Out na sua caixa de entrada

Procurar

O amor é uma revolução – e vai desenterrar as memórias coloniais

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
Publicidade

Amores Pós-Coloniais abre um novo ciclo no teatro documental do Hotel Europa, que volta a tirar da sombra as histórias envergonhadas do fim do império. Subimos-lhe o pano para estas relações amorosas em tempo de violência.

Um mainato é um subordinado que cuida da roupa – lava, passa – e cozinha. Era uma figura comum na vida doméstica das antigas colónias portuguesas. Quando rebentou a guerra, os soldados adoptaram o hábito – e deram-lhe outros contornos. Um mainato servia para tudo aquilo e para “apoio”, sexo. “Para a gente se amanhar.” A expressão é de um dos homens entrevistados para a nova peça do Hotel Europa, Amores Pós-Coloniais, que se estreia quinta-feira, no Teatro D. Maria II.

André Amálio e Tereza Havlickova estão a fazer a transição de uma trilogia – Portugal Não É Um País Pequeno (2015), Passa-Porte (2016) e Libertação (2017) – em que estiveram a trabalhar a nostalgia colonial, as memórias dos colonizados e os processos de independência. Teatro documental: os testemunhos levados para palco são reais. Agora iniciam um novo ciclo, dedicado aos amores, que prosseguirá em 2020 com Amores de Leste, sobre a relação de Portugal com a Europa comunista e sobre os jovens afectos ao PCP que estudaram nesses países. Talvez venha a incluir estudantes africanos. Deixarão cair a ligação ao colonialismo, mas continuarão em busca dos muitos lados de cada história, relacionando o encantamento de uns com a opressão de outros.

É o que acontece aqui. Na residência artística que a dupla de criadores fez em Pontével, freguesia do Cartaxo, foram entrevistadas mais de 20 pessoas. Uma delas é o antigo soldado que fez da mainata sua mulher “enquanto lá estivesse”. Engravidou-a. E ainda assim ofereceu-a a um camarada de armas: “Queres dar uma queca? Já está é com a barriga inchada…” Quando os “turras” a “safaram” (é o verbo que usa), ficou “revoltado” – mas este homem, que fala em “cabaços” pagos em escudos (isto é, tirar a virgindade a raparigas negras), “nunca teve sequer curiosidade de ir conhecer se tinha um filho ou uma filha”, conta André Amálio. Da mesma aldeia do Cartaxo, chega ao palco a história de “um homem que se apaixonou e não foi capaz de viver o seu amor”. São dois relatos que sintetizam o lado português: multifacetado, ao mesmo tempo humanizador e implacável.

Filipe Ferreira

A força está nas vozes dos entrevistados, que nos chegam anónimas, intermediadas pelos actores, que quando encarnam uma personagem real levam auscultadores às orelhas. As palavras foram ditas tal como as ouvimos. Assim: “As pretas é que são boas.” Estamos num autocarro, são seis da manhã, e uma mãe leva o filho para a ajudar nas limpezas. O rapaz vê a mãe ser apalpada por um homem branco, sente-se incapaz de reagir e fica a remoer naquelas palavras. Até hoje. O racismo está nessa história e numa outra, em que uma mulher branca diz que pensava que “preto” significava criminoso – até ter um namorado negro. Quando tiveram filhos, a avó negra elogiava os “mais escurinhos”; a avó branca, os “clarinhos”. Ninguém sai impune, mas há aqui uma pista: o amor é uma revolução.

“Nos ensaios falámos imenso. Parávamos, discutíamos, porque de facto também não estamos habituados a discutir isto”, recorda Amálio. “São assuntos difíceis e foi uma coisa que fez muito parte do nosso período de criação: discussão, análise, ouvir o outro.” O elenco divide-se entre três homens e três mulheres, três brancos e três negros – mas as personagens que interpretam não dependem de género ou de pigmentação da pele, a mistura é intencional e provocatória. “Como é que o baralhar, o trocar os axiomas e a forma de olhar nos faz olhar mais fundo o problema? Se calhar, se fosse uma representação mais normal não colocaria tantas questões.”

O actor Júlio Mesquita
Filipe Ferreira

Os espectáculos que o Hotel Europa tem criado para falar abertamente sobre o colonialismo são emocionalmente duros, embora de uma forma quase cândida, que desarma os espectadores. “Muitas vezes é a primeira vez que [os entrevistados] estão a contar estas histórias e é muito importante para eles contá-las. É duro, muito emocional, íntimo”, enfatiza Tereza Havlickova. “Dizem-nos coisas muito fortes com lágrimas nos olhos.” Incluindo atrocidades.

Os testemunhos de Amores Pós-Coloniais começam nos anos 60, mas são antecedidos por um segmento epistolar: “Temos umas cartas do Amílcar Cabral, que se correspondia com a sua primeira mulher, a Lena, dos anos 40, e as cartas de Maria Eugénio Neto, a mulher do Agostinho Neto. Retratamos essas décadas através das cartas desses dois casais, desses dois amores.” Não haja dúvidas: esta é uma reflexão sobre o amor enquanto espaço político e utópico, que vai ao passado tentar encontrar explicações para o presente.

André Amálio é criador, encenador e intérprete
Filipe Ferreira

André Amálio fala numa mudança de mentalidades, mas sublinha que o ponto de partida era baixo: “Claro que há evolução. Temos testemunho de pessoas que matavam negros à facada. O nosso passado é muito violento.” Apesar disso, o racismo não desapareceu: “Quando falamos com as pessoas negras que vivem activamente estas questões na pele, vemos como a coisa está ainda muito viva.” Um exemplo: o caso do Bairro da Jamaica, num episódio de aparente violência policial. Outro: o futuro Museu da Descoberta. “É um absurdo. É quase continuar um projecto do Estado Novo. Não precisamos de mais coisas que nos contem como os Descobrimentos foram fabulosos e incríveis. Precisávamos de um Museu do Colonialismo que nos mostrasse o outro lado, o lado da opressão.”

Teatro Nacional D. Maria II. Qua e Sáb 19.30, Qui e Sex 21.30, Dom 16.30. Até 24 Fev. 11€.

Últimas notícias

    Publicidade