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Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 673 — Primavera 2025
Guilherme Firmino tinha 15 anos quando entrou pela primeira vez no Estúdio King, a base de operações da associação barreirense Hey! Pachuco. “Na altura, não fazia grande coisa. Saía da escola e ia para casa; não sabia tocar um instrumento, não ia a concertos. Mas o [David] Yala e o Marco [Amado], que eram os outros dois membros da minha banda, tinham ouvido falar do Programa Jovens Músicos”, recorda o cantor e guitarrista, hoje com 25 anos e um dos responsáveis pela TOCA, que continua o trabalho do antigo Programa Jovens Músicos, garantindo aos adolescentes do Barreiro uma sala de ensaios gratuita, entre outros apoios.
A vida de Guilherme mudou muito desde 2015. Dantes, sentava-se atrás de uma bateria que mal sabia tocar, era membro de uns tais de Arroz com Feijão e a música era pouco mais do que um passatempo – “uma desculpa para estar com os vv ao fim do dia”, recorda. Agora, toca guitarra que se desunha, além de compor as músicas e escrever as letras de Humana Taranja, uma das grandes promessas do novo rock nacional, convidada no início de Março para inaugurar o Coliseu Club, a mais recente sala de concertos da capital. Só não deixou de tocar com David Yala, nem de ensaiar nos estúdios da Hey! Pachuco.
É ele quem recebe a Time Out num Estúdio King que já não é o mesmo em que entrou em 2015. Há uns anos que a Hey! Pachuco saiu do número 8 da Rua da CUF, no Barreiro, e se instalou uns metros acima, num edifício mais luminoso, na Rua Gay Lussac, 9. Guilherme ajudou a fazer as mudanças e, juntamente com o cabecilha Carlos Ramos, mais conhecido por Nick Nicotine ou Suave, e outros elementos da associação, fez do espaço um estúdio. Com boa vontade e tutoriais de Youtube, ergueram paredes de pladur, insonorizaram salas, fizeram o que foi preciso. E, passado pouco tempo, abriram a TOCA às novas gerações. Outra vez.
A actual TOCA difere do velho Programa Jovens Músicos apenas no nome e no patrocínio, que dantes era da Baía do Tejo, uma empresa de gestão territorial e exploração de parques empresariais, e hoje é a Câmara Municipal do Barreiro, através do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). “Abri o estúdio em 2008 e por volta de 2011 comecei a perceber que isto era utilizado sobretudo por malta que trabalha, que paga o aluguer do estúdio à noite para vir ensaiar, mais as gravações. Mas durante o dia tínhamos a sala vazia, porque a malta que tem dinheiro para ensaiar está a ganhá-lo durante o dia, para vir gastá-lo à noite”, diz Carlos Ramos, meio a rir-se. “Em 2012, sabendo que havia putos sem dinheiro para alugar uma sala de ensaios, lembrei-me de montar este projecto e tentar arranjar alguns apoios.”

“Falei com a Baía do Tejo, que era quem alugava o espaço, e eles aceitaram baixar a renda em troca de fornecermos o estúdio para a comunidade. E, desde aí, temos tentado manter o programa a funcionar”, continua a contar o veterano barreirense. “Só que houve uma altura, já pré-pandemia, em que a Baía do Tejo mudou de administração e perdemos esse apoio.” Os Humana Taranja já tinham nascido entretanto, das cinzas dos Feijão Com Arroz, e eram parte da família Hey! Pachuco. “Começaram a parar mais no estúdio, e a levar isto para a frente em conjunto connosco. E quando surgiu a oportunidade, pós-pandemia, de ir buscar financiamento para a mesma tipologia de projecto, através do PRR, aproveitámos”, conclui.
A chama do rock and roll não se apaga
A série documental Dança Camarra, realizada por Eduardo Moras entre 2016 e 2018, conta a história da música no Barreiro desde 1940 até ao final do século XX. Foi o caminho aberto por sucessivas gerações de músicos, mas sobretudo o trabalho e atitude do it yourself de bandas dos 90s como os Gasoleene, os Unladylike Scream ou os Toast que, no ano 2000, convenceu Carlos Gomes e os amigos a começarem a associação e editora Hey! Pachuco. “[Nos anos 90] tinhas os Sonic Youth a bater, os Nirvana do Bleach, os Mudhoney e toda aquela cena de Seattle mais ruidosa. E apareceram aqui umas bandas fixes que gravaram e editaram comercialmente em editoras feitas por eles e de forma independente”, rememora o músico nascido em 1977. “Não me lembro se os Gasoleene fazem uma edição de autor, se foi na Moneyland, do João Paulo Feliciano. Porque a dado ponto, pronto, o Rafael Toral e essa malta toda das Caldas dava-se com o pessoal daqui”, continua a contar. Pelo meio, vêm à baila outras editoras indie nacionais, como a Bee Keeper de Elsa Pires e a Milkshake de Luís Futre. “Lembro-me que o Rafael Toral gravou um single dos Gasoleene no Alburrica, um bar com esta largura, só com um microfone. E saiu em vinil.”

Inspirado neles, Carlos Gomes dividiu-se por dezenas de bandas e assumiu um sem fim de identidades. Foi Nickie Santero, Nick Nicotine e Suave, integrou Los Santeros, a Nicotine’s Orchestra, The Act-Ups, The Ballyhoos, The Jack Shits. “Não tinha 60 e tal discos gravados hoje se não fosse isso. Queria era gravar as canções e mostrá-las. Controlo de qualidade? Zero”, assume.
Durante quase duas décadas, ao mesmo tempo que documentava em disco a evolução das principais estirpes de rock autóctones, organizou o saudoso Barreiro Rocks e um número infindável de outros concertos; abriu um estúdio; e, por fim, para garantir que a chama do rock barreirense não se apagava, lançou o Programa Jovens Músicos. Hoje, os ainda jovens Humana Taranja ou os Walter Walter, que também passaram pelo programa, são duas das mais destacadas bandas barreirenses. No entanto, já há uma nova geração de músicos a sair da TOCA. Guilherme destaca os Beach Wreck, bando de “miúdos na casa dos 20” que recentemente tocou no Disgraça, com Walter Walter e Rita Linda; acompanhou The Parkinsons e Democrash na primeira Noite Sabotage na SMUP, em Outubro; e participou no Fast Eddie’s Fest, há cerca de um ano. Além de lhes abrir as portas do Estúdio King, a Hey! Pachuco tem-lhes indicado as portas de salas de concertos onde podem e devem bater. Como indicou aos Humana Taranja, no começo.
Os Beach Wreck editaram as primeiras três canções no final de Outubro, e a boa aceitação que o single “The Lighthouse” tem tido não surpreende quem os vê regularmente na sala de ensaios. “Já são banda”, declara Suave, orgulhoso. “Quando aqui entra um conjunto de putos, muitas vezes, topas quem vai continuar na música ou não. Com o Guilherme e o Yala percebi isso”, acrescenta. Outros, porém, acabam por desistir. “Há malta que vem uma vez, ensaia e não aparece mais”, reconhece Carlos. “Como tens uma ligação com a comunidade escolar, no início do ano vêm todos entusiasmados, porém, quando chega ali a Primavera/Verão, há bandas que acabam e já não voltam.”

Actualmente, além dos Beach Wreck, há mais quatro novos grupos a ensaiarem dedicadamente todas as semanas na TOCA, e outros que vão entrando e saindo de cena. A maioria dos participantes tem entre 14 e 20 anos, segundo Guilherme Firmino. Além disso, nota que há cada vez mais mulheres a tocarem nestas bandas. “Já sentia isso quando o programa começou”, reconhece Carlos Ramos. “Mas há cada vez mais.” E ainda bem. Isso contribui para que o meio esteja “menos tóxico”, segundo o co-fundador da Hey! Pachuco.
O apoio do PRR termina no final deste ano, porém toda a gente espera que a Câmara Municipal do Barreiro não abdique deste projecto, aberto a jovens até aos 25 anos. Desde a década passada, a iniciativa fez muito pelo rock local. Mas não só. Promoveu valores e sentimentos de comunidade e entreajuda. Coisas que nunca fizeram tanta falta como agora. Tomara que a sua chama nunca se apague.
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