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16B: uma peça improvisada em um acto
© Rui Raposo16B: uma peça improvisada em um acto, no Fluxus Stage

“Por favor, confiem em nós.” No Flux•us Stage, o teatro faz-se sem rede

O 16B é um teatro e uma peça de improviso. Conversámos com Inês Lucas e Stephen Thornton, fundadores do Flux•us Stage, e estamos a contar os dias para a segunda temporada.

Raquel Dias da Silva
Escrito por
Raquel Dias da Silva
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“Por favor, confiem em nós”, pede Rui Pedro Neto, minutos antes de entrar em cena, ainda sem saber exactamente no corpo de que personagem. No Flux•us Stage, em Arroios, o teatro faz-se sem rede, que é como quem diz de improviso. Primeiro, o público é convidado a fechar os olhos e, aos três, quase sem pestanejar, nomear uma canção. Hoje (não interessa o dia nem a hora, imagine que aqui está connosco), vence “Playback”, de Carlos Paião, e o primeiro verso, “Podes não saber cantar”, é a premissa para o que está prestes a acontecer em palco. Quando Rui nos pede que confiemos, fala a sério. A primeira temporada de 16B: uma peça improvisada em um acto contou com seis sessões – quatro em português, duas em inglês –, mas nenhuma foi igual à outra. E a proeza vai voltar a concretizar-se, de 21 de Outubro a 25 de Novembro. Inês Lucas e Stephen Thornton, os actuais ocupantes do verdadeiro 16B, o edifício na Rua Actor Vale, abriram portas há uns meses, e estão cá para ficar. Rui, Joana Bastos e Mila Dores também.

Se nos permitirem, vamos rebobinar (também não temos guião). Esta história começa em Nova Iorque. Foi lá, na Academia de Cinema, que Inês e Stephen se conheceram. “Comecei a actuar aos 13 anos e, a seguir ao secundário, decidi ir estudar fora, em Londres e Berlim, e tinha este sonho de ir para Nova Iorque, aprender a representar em cinema. Acabei por conseguir, com uma bolsa da GDA [fundação portuguesa focada na valorização e dignificação do trabalho e das carreiras dos artistas]”, conta-nos Inês Lucas, com um sorriso gigante. Não é para menos. “Conheci o Steve lá, casámos e a vida continuou.” Isto significa que, por entre trabalhos em teatro, teatro interactivo e até televisão, Inês foi improvisando. Apanhou o bichinho com o marido, que estuda improvisação desde 2001 e dá aulas desde 2010. Foi também o norte-americano, natural do Havai, que a convenceu a regressar a Portugal em 2019, pouco antes de a pandemia confinar o mundo.

Flux•us Stage
© Francisco Romão Pereira / Time OutInês Lucas e Stephen Thornton, no Flux•us Stage, em Arroios

“Resisti um pouco. Como imigrante estava: ‘não, vim à procura do sonho americano e vou cá ficar para sempre’. Foi muito importante para mim fazer as pazes com as razões que me levaram a sair, voltar a apaixonar-me pela minha cultura e o meu país”, confessa. “Apesar das circunstâncias, foi pelo melhor. Tivemos muitas horas livres para sonhar e começar a pensar nesta ideia, de ter o nosso próprio espaço. Como sempre que vínhamos [de visita], organizávamos workshops, já havia uma comunidade a seguir o nosso trabalho, em especial o do Steve, e queríamos começar a produzir [espectáculos].” O Flux•us Stage era, então, uma questão de tempo. O novo teatro da cidade abriu no final de Maio, com o seu primeiro espectáculo de improviso, mas o casal conhecia o espaço desde o ano passado. Em Setembro, Stephen e a sua colega e amiga Luana Proença começaram a usá-lo para a Jelly Jam, uma noite de improviso, que se continua a realizar na primeira terça-feira de cada mês, a partir das 19.00 (participar é grátis, para ver paga 1€).

“Comecei a improvisar no liceu. Nos EUA, em termos de improvisação de formato curto [jogos rápidos e focados em fazer o público rir], que é o que vemos mais aqui [em Portugal], tínhamos o Whose Line Is It Anyway?, um programa [de comédia de improviso] que estava na berra na altura, e era algo que [enquanto jovens, na escola, no dia-a-dia] fazíamos por diversão. Eventualmente comecei a levar o assunto a sério e a actuar no Colorado, onde cresci. Quando fui para Nova Iorque, foi para seguir representação, mas entre tirar retratos, ir a castings, arranjar um agente, nunca mais chegava a minha oportunidade e, de repente, percebi que se voltasse à improvisação poderia estar em palco três vezes por semana”, diz Stephen. “Durante oito anos, fiz muita, muita comédia [de improviso] e, às tantas, dei por mim a pensar que, se calhar, já estávamos só a repetir a mesma fórmula.”

Flux•us Stage
© Rui RaposoJoana Bastos, Inês Lucas e Mila Dores

Teatro de improviso não serve apenas para fazer rir. Inês e Stephen não são os únicos a pensar assim, mas essa continua a ser a regra – pelo menos, é o que o público espera. Talvez por isso, hoje (neste momento que já aconteceu e que pedimos que reviva connosco), o pedido de Rui faça particular sentido. No Flux•us (de fluir, deixar acontecer), cada espectáculo é um exercício de confiança. Num dia, temos um grupo de jovens escritores a sentir-se ridículos e inseguros porque, afinal, um deles não é quem dizia ser. Noutro, um casal de lésbicas e os seus filhos adoptivos são confrontados com a iminência da morte. Hoje, não sabemos, ainda só estamos no início e pedem-nos para confiar e descobrir à medida que tudo se revela em palco – aliás, à medida que os próprios actores (Inês Lucas, Rui Pedro Neto, Joana Bastos e Mila Dores) descobrem as suas personagens em palco. Se nos provocarem riso, não é porque estão a fazer comédia, é porque faz parte da história que estão a construir, cena a cena.

“Tem sido um processo muito divertido e exploratório”, assegura Stephen, que assume o papel de encenador. “Um professor meu, Scotty Watson, diz que ‘teatro de improviso é simplesmente actuar sem guião’, por isso não encontro diferença entre encenar uma peça de improviso e uma dita tradicional. Ambas recorrem aos ensaios para preparar os actores para espectáculos ao vivo, que é quando o encenador entrega a responsabilidade ao elenco e confia nos actores para cumprirem. Claro que, por exemplo, nos ensaios trabalhamos a improvisação e não o texto e, por outro lado, nunca paramos de ensaiar. Continuamos a reunir-nos uma vez por semana entre espectáculos”, acrescenta, antes de admitir o quão interessante é ver cada actor a explorar o seu espírito criativo e a sua individualidade. “Não há destino à vista, e há uma liberdade nisso que tem sido muito agradável de ver.” Inês não poderia concordar mais: “Temos uma hora para descobrir quem somos e dar o nosso melhor para estar no momento.”

Fluxus Stage
© Rui RaposoRui Pedro Neto e Inês Lucas

Não há cenário, nem objectos. A sala é uma chamada black box, com apenas 34 lugares. Quando os actores interagem com o que não está lá (como uma camisola de lã, que não pica e é “da cor que a Filomena gosta”), pedem-nos – adivinhou – que confiemos, e imaginemos com eles (mesmo quando não dizem qual é a cor favorita da Filomena). Por vezes, há momentos cómicos, coisas que nos fazem rir, à gargalhada ou ao de leve. Raramente são só piadas. Hoje, por exemplo, temos uma mãe e três filhos a tentar viver harmoniosamente debaixo do mesmo tecto. Os gémeos Simão e Andreia, que viveram separados durante anos, estão finalmente a reconhecer o vazio que isso causou e o quão precisam um do outro. A plateia aplaude e pensa que curioso e assustador é nada disto estar escrito. “Primeiro de tudo sinto só os nervos”, admite a actriz e cantautora Mila Dores, que hoje se descobriu mãe em palco. “Depois aceito-os e largo-os antes de entrar [em cena], porque quero focar-me em não deixar cair a bola quando ela vem ter comigo.”

Fazer de coração aberto e mente vazia, acreditar no que nos dão. Para Joana Bastos é este o segredo. Quando se sente bloquear, ouve, sente e reage com verdade. “Se é o que sentimos, então é o que está certo”, esclarece. Sentir e confiar no processo é, no fundo, mais ou menos a mesma coisa. Mila, por exemplo, confia que, em caso de dúvida, encontrará respostas no olhar dos colegas. É uma das técnicas que têm praticado. Além de uma escuta activa, conectarem-se com o outro e consigo próprios é fundamental, inclusive para o trabalho de objectos e espaço. “Não é uma tarefa fácil trabalhar com o imaginário, mas os companheiros de palco podem ajudar a ajustar”, garante Rui, que não hesita em reforçar a utilização de um objecto invisível sempre que pode. Se porventura tropeçar pelo caminho, abraça-se o momento como se fosse da personagem. O mais importante é evitar usar o que o encenador chama de “personagens de bolso” ou, pior, criar “bonecos”. “Se algum dia acontecer canalizar uma caricatura”, antecipa Mila, “lá jogarei com esse peão.”

Flux•us Stage. Rua Actor Vale, 16B. 21 Out-25 Nov, Sáb 19.00 (excepto dia 28), Dom (29) 16.00. 8,50€

Texto actualizado, originalmente publicado na edição de Verão 2023 da revista trimestral Time Out Lisboa.

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