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Longe vai o tempo de bandas como os Grateful Dead, que, nos anos 60, reuniam uma base de jovens fãs tão fiéis que estavam dispostos a abandonar o “ninho” criado pelos pais para acompanhar as digressões dos seus conjuntos favoritos. Hoje em dia, até pelos preços inflacionados dos bilhetes de concertos, isto parece uma realidade distante e, quiçá, utópica. Mas existe uma banda... melhor, uma comunidade de fãs, a manter este espírito vivo. E passaram por Portugal.
Entre os dias 18 e 20 de Maio, os King Gizzard and the Lizard Wizard estiveram no Coliseu dos Recreios para o início da mais recente digressão europeia. Esta tour tem uma particularidade inédita para o grupo. Em vez de actuar numa cidade, fazer as malas e partir para o próximo destino, a banda australiana vai fazer residências com três concertos por localidade. Depois de Lisboa, seguem-se Barcelona, Vilnius, Atenas e Plovdiv.
Tal como explicou à Time Out Ambrose Kenny-Smith, membro do grupo responsável por instrumentos como a harmónica, sintetizador ou saxofone, esta digressão é uma forma mais eficaz de conhecer as cidades e de apresentarem o seu extenso reportório (27 álbuns editados desde 2012). Além disso, estes locais foram escolhidos, propositadamente, por não serem destinos “óbvios”, permitindo assim aos locais uma forma mais acessível de ver o sexteto ao vivo.
No entanto, como pudemos presenciar nos concertos em Lisboa, era mais fácil encontrar na audiência pessoas a falar qualquer idioma que não fosse o de Camões. Isto podia ser justificado pela intensa gentrificação que se vive na cidade, mas, desta vez, o fenómeno era outro: estávamos perante o Weirdo Swarm, nome da comunidade de fãs dos King Gizzard. Podem ser identificados por envergarem merchandise dos australianos ou por se disfarçarem de crocodilos ou feiticeiros (figuras que fazem parte do imaginário do grupo). Alguns chegaram inclusive a percorrer milhares de quilómetros para conseguirem acompanhar a digressão.
Falhar um concerto? Só na lua-de-mel
Ben Bacon, de 24 anos, trabalha como estafeta de entregas de pizzas e é um artista de tie-dye, de Orlando, na Florida, e pode facilmente ser descrito como um dos fãs mais acérrimos de King Gizzard. Aterrou em Portugal a 13 de Maio e, além de aproveitar para conhecer o país, esteve a preparar-se para ver a banda pela 57.ª, pela 58.ª e pela 59.ª vez.
“Tenho planos para ir a todos os concertos até ao fim do ano”, diz-nos. Além desta digressão europeia, os australianos já anunciaram uma levada de concertos para o final do ano que inclui espectáculos com orquestra (para apresentar Phantom Island, a ser lançado a 13 de Junho) e em formato de rave (onde poderão explorar minuciosamente a música que têm criado com sintetizadores em discos como The Silver Cord), assim como um acampamento de três dias, o Field of Vision.
“Já vi 56 concertos dos King Gizzard nas Américas. Sigo a banda porque o amor que têm pela música e pelos fãs ultrapassa as barreiras entre arte, artistas e público”, justifica. “Deixei o meu trabalho em casa – como já era de esperar, tendo em conta que esta é a terceira vez que faço isto. Sinto mesmo que os concertos dos King Gizzard são uma segunda casa para mim, e sinto-me sempre seguro no meio dos fãs”, continua, acrescentando que consegue financiar estas viagens através da venda de t-shirts tie-dye.
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Outro membro desta comunidade é Matt Seldin, um ex-jogador profissional de poker online e antigo trader de commodities, natural de Erie, no Colorado, que nos contou que vai “estar em praticamente todos os concertos deste ano, excepto durante a lua-de-mel".
Uma vez que está reformado (aos 42 anos...), este fã norte-americano passou a organizar a vida em função das digressões da banda. “Este ano vou viajar duas vezes para a Europa, cruzar os Estados Unidos e ainda vou à Austrália. É uma forma incrível de conhecer o mundo”, reflecte. “[Terça-feira], foi o meu 46.º concerto dos King Gizzard – nos Estados Unidos e três em Lisboa.”
Matt dá o seu melhor pelo Weirdo Swarm e tenta difundir actividades para que esta comunidade possa continuar a crescer. Ele é responsável pela conta de Instagram @intraswarm, uma página que divulga memes do sexteto, mas que também ajuda a estabelecer pontes entre os vários fãs. Através desta rede social, organizou um encontro de fãs, antes do primeiro concerto da residência, à porta da Amor Records, um espaço que é parte loja de discos, bar e café nos Anjos. O convívio teve tanta adesão que teve de ser cancelado, uma vez que um vizinho ameaçou ligar para a polícia devido ao barulho feito pelas pessoas à porta do estabelecimento.
“Esta banda e as pessoas que a rodeiam significam o mundo para mim. Esta comunidade está cheia de algumas das melhores pessoas que conheci. Adoro a música deles – toca-me das mais variadas formas e preenche a alma!”, descreve. “Os King Gizzard desafiam o gosto e o entendimento musical. Sinto que, graças a eles, passei a valorizar muito mais a música no geral. Não consigo dizer coisas boas suficientes”, argumenta.
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Para D.J. DeLaRosa, fotógrafo e designer de estruturas suspensas, de Houston, Texas, que vai acompanhar toda a digressão europeia dos King Gizzard, estes concertos são um espaço em que se sente integrado e onde pode conhecer pessoas com quem partilha um amor em comum. “Sinto-me seguro no 'Gizzverse'. No início da digressão do ano passado fui sozinho e acabei por fazer imensos amigos – senti-me sempre bem-vindo.”
Segundo Andrew Mendez, de 30 anos, que trabalha no Departamento de Serviços Animais da cidade de Los Angeles – e que também vai assistir a todos os concertos da digressão europeia, à after party em Barcelona e ao Primavera Sound Porto, depois da tour dos australianos –, a comunidade que se forma à volta dos King Gizzard é como nada que alguma vez tenha vivido. “O primeiro dia da digressão soube como o primeiro dia de aulas: caras conhecidas, novos amigos. É a melhor sensação do mundo”, confessa. “O amor genuíno que têm pela música e pelas pessoas é algo tribal. Enquanto continuarem a fazer música e a andar na estrada, vão ter sempre o meu apoio”, admite.
De onde vem esta devoção?
Os King Gizzard têm tudo aquilo que é necessário para se tornarem uma banda de culto. Ao longo da sua prolífica carreira – que os viu editar cinco discos em 2017 e em 2022 (o único ano em que não lançaram nenhum trabalho de longa duração foi em 2018) – trabalharam com os mais diversos estilos musicais, do rock psicadélico ao thrash metal, do boogie à electrónica, do folk ao rap, ao jazz ou ao Anatolian rock (uma espécie de rock psicadélico de origem turca), e criaram um profundo universo nas suas canções com histórias apocalípticas e personagens envolventes, como o Lord of Lightning ou o Han-Tyumi (um robot colocado no corpo de um ser humano). Os diferentes discos estão interligados por easter eggs e linhas musicais que criam aquilo que ficou conhecido como "Gizzverse".
Nesta residência foi possível ver como este espírito “geek” se materializou com inside jokes entre os fãs, que levaram bóias de crocodilos e um cartão gigante com o formato do vocalista, Stu Mackenzie (até o sintetizador modular que utilizaram no último concerto tem direito a um nome: Nathan).
Apesar da promessa da banda de que cada espectáculo seria diferente do anterior e não seriam tocadas canções repetidas, quem esteve nas três datas foi recompensado pela sensação de conexão entre concertos. Com mais tempo para actuar, a interpretação de cada faixa era mais morosa e dava espaço para improvisar e tocar alguns trechos de outros temas. Por exemplo, na primeira noite, durante “People-Vultures", o grupo cantou parte de “Iron Lung”, faixa que serviu para abrir o concerto da segunda noite. Tal como o Universo Cinematográfico da Marvel, fica no ar a sensação de que cada concerto é imperdível e uma peça de um puzzle.
Mas a música não seria suficiente para criar esta comunidade – há uma parte humana que reforça estas ligações. Antes de o concerto começar, é projectada uma mensagem sobre o mosh ser um espaço seguro e para alertar os seguranças caso alguém esteja a ser um “idiota” (citando os australianos); durante a segunda data, Stu convidou dois fãs para subirem ao palco e soltarem um grito gutural no microfone repleto de efeitos; e, no clímax da primeira noite, o vocalista rapou o cabelo (ver vídeo abaixo), oferecendo a máquina a um fã para terminar o serviço.

Mesmo depois de o concerto (de duas horas) terminar, de a audiência ter saltado, dançado, participado no mosh ou feito crowdsurf, a sensação era geral: “que músicas será que vão tocar amanhã?”, “será que devia ter comprado outro bilhete?”.
Para fãs como Ben, Matt ou Andrew, que viajam para mais uma residência, isto significa mais uma noite suada e de pernas cansadas, mas para os que continuam por Portugal, como nós (ou os que regressam para os seus países), temos sempre o conforto de saber que os concertos do sexteto vão continuar a ser transmitidos por live stream no YouTube – e podemos continuar a acompanhá-los à distância.
Não sabemos se os King Gizzard um dia voltarão a lançar cinco álbuns no espaço de um ano, mas, enquanto mantiverem esta comunidade, independentemente do volume de produção, vão existir sempre pessoas interessadas em ouvir as suas canções – e em segui-los até ao fim do mundo.
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