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Quando Margaret Atwood publicou A História de Uma Serva, em 1985, dificilmente esperaríamos que o fanatismo religioso voltasse a poluir a vida pública como hoje. Dificilmente esperaríamos que viesse a ser espinha dorsal para fenómenos de massas capazes de polarizar povos e vencer eleições nos EUA ou no Brasil em pleno século XXI – e no entanto aqui estamos, a braços com populistas, nesses e noutros países, a cavalgar nacionalismos cristãos. E Moscovo a funcionar como Santa Sé, como se o Grande Cisma nunca tivesse ocorrido. Quem diria. Pelo contrário, quando a adaptação de Bruce Miller chegou à televisão, em 2017, as comparações com a realidade tornaram-se inevitáveis. “Adoraríamos ser menos relevantes”, diz agora o criador. “Não estamos sempre a tentar antecipar a realidade. Mas, infelizmente, o mundo tende a acompanhar [a série].”
The Handmaid’s Tale está num ponto de inflexão. A quinta temporada – que se estreia no TVCine Emotion esta segunda-feira, às 22.10, com apenas (!) um mês de atraso face aos EUA – explora os inesperados acontecimentos da anterior: a gravidez de Serena (Yvonne Strahovski), o que lhe conferirá renovada importância nos corredores do poder de Gilead; a morte de Waterford (Joseph Fiennes), que também acabará por favorecer Serena; a ascensão de Lawrence (Bradley Whitford) e de Nick Blaine (Max Minghella), que vão tentar reformar Gilead por dentro; e a fuga de June (Elisabeth Moss) para o Canadá sem conseguir levar a filha Hannah (Jordana Blake), o que a vai consumir. Mas o extremismo não fica na fronteira, e isso também é um reflexo da realidade. “Nós escrevemos o Canadá como um santuário. No entanto, sentimos que não deve ser seguro em lado nenhum. Que a influência de Gilead pode penetrar no Canadá”, diz o produtor Warren Littlefield, em resposta à Time Out, numa entrevista colectiva por videochamada. “Muitas das nossas personagens, que se refugiaram na segurança do Canadá, descobrem que talvez as coisas não sejam exactamente como elas pensavam que eram. Uma parte dos canadianos quer que estes imigrantes se vão embora. Lá está, reflectimos o mundo em que vivemos de uma forma que serve as nossas personagens.”
Na mesma chamada está Bruce Miller, o criador da série, que há muito extravasou a história do livro original. Perguntámos o que pretendia dizer com este alastramento do fanatismo. A distopia avança? “Estamos a olhar para o mundo de Gilead e a tentar perceber o que se segue. Portanto, acho que o que estamos a tentar dizer é que há uma certa inevitabilidade na propagação de algo como [os ideais de] Gilead. Espalhou-se certamente o suficiente para tomar conta dos EUA, portanto é atractivo para bastantes pessoas.” Contudo, Bruce Miller, que caracteriza a sua equipa de argumentistas como um “bando de viciados em notícias”, não quer tirar conclusões pelos espectadores: “No que toca ao que se leva daqui, quero que as pessoas levem o que quiserem, não o que eu lhes quero dar.”
Bradley Whitford é menos reservado. Numa outra videochamada, o actor (que esta temporada se estreia também a realizar) fala em nacionalismo branco, em “malucos religiosos” (“religious wackadoos”) e na reversão de “Roe v. Wade”, que determinava o direito ao aborto nos EUA, para ir ilustrando a conversa por oposição ao seu ponto de vista. Achará, tal como a sua personagem, o Comandante Lawrence, que uma ditadura violenta como Gilead pode ser mudada por dentro? “É uma excelente questão. Um dos temas desta temporada é: especialmente num mundo em que parece que uma sociedade aberta não funciona, ou se funciona tende a destruir o nosso delicado planeta, ataca-se o sistema, tenta-se reformá-lo por dentro, será que assim se perpetua esse sistema, será que desse modo nos deixamos seduzir pelo poder? É uma pergunta sem resposta, e foi uma das mais interessantes de explorar este ano. Pelo menos do ponto de vista do Lawrence. O que acho que ele pensa é: não vamos ser ingénuos, vamos ver o que se consegue fazer por dentro.”
Ingenuidade. Ora aí está um prato que Serena já provou – e não gostou. Agora, vai usar tudo o que tiver ao seu alcance para alavancar a sua posição. Seja o funeral do marido como um acto de relações públicas, seja o imprevisto filho que lhe cresce no útero (as esposas, supostamente, são inférteis). Mas seria uma mulher capaz de liderar um sítio de opressão para as mulheres? Yvonne Strahovski, que interpreta a personagem, não tem dúvidas: “Sim”. “Se fosse oferecida a Serena uma posição de liderança, não estou certa de que algo mudasse. Fundamentalmente, ela quer sobreviver e jogar o jogo. É um empreendimento egoísta”, afirma, numa terceira videochamada. “Acho que há mulheres como a Serena que o fariam, sim.” Se mulheres como June as deixassem, claro.
TVCine Emotion. Seg 22.10 (estreia T5)