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Um hino à tristeza na Rua das Gaivotas 6

Escrito por
Miguel Branco
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Fuck Me Gently! é a nova criação de Mário Coelho, para ver até domingo na Rua das Gaivotas 6. É uma vertigem referencial, satírica e profundamente triste. 

Várias imagens de teatros em ruína à boleia do “Hino à Alegria”. Começamos assim. O mesmo ecrã anuncia-nos ainda que em 2030 o teatro já não existe e que estes dois irmãos, Mário e Ana, decidem criar um projecto-combate a esta ideia de morte.

Uma enxurrada de hashtags (como #fucktheater ou #artistswhostillcare) situa-nos nas audições que levaram à escolha do elenco da peça dentro da peça. Uma das actrizes chamou à atenção dos criadores por ter um canal de YouTube onde diz os monólogos de grandes filmes da história da humanidade enquanto faz receitas – O Grande Ditador (1940) encontra-se com um arroz de marisco. Mas, na primeira reunião, fica claro que este processo não segue estradas com bom pavimento. A actriz-youtuber, durante o contrato de um ano que será celebrado, não pode publicar mais vídeos. A Rita, outra actriz, fazem-lhe cara feia por ter dado voz e parte do corpo a um videojogo onde uma guerreira mata zombies. É caso para dizer que isto cheira mal.

Fuck Me Gently! é a nova criação de Mário Coelho que está até domingo na Rua das Gaivotas 6 e que está inserida no YEP – Young Emerging Performers, parceria entre a Rua das Gaivotas 6 e o Espaço do Tempo que apoia três jovens artistas por ano. Não é novidade completa no trabalho de Mário Coelho, mas o teatro, em modo sátira, volta a estar aqui. “Quando apareceu o YEP não sabia ainda o que ia ser, tinha o título e uma rapsódia de ideias que era falar sobre um contexto de ruína no teatro, associar o teatro a uma reconstituição de família. Andava a pensar em coisas como 'eu enquanto criador gosto de ti porque me lembras o meu pai’, Parece que estamos sempre a servir meio de avatares de memórias de criadores. Interessou-me brincar com tudo isto num campo totalmente exagerado”, explica.

E explica bem. Este espectáculo é uma rapsódia de ideias, uma fusão de materiais – há vídeo constantemente, chega até a haver um remake de Os Verdes Anos, realizado por Miguel Leão, há reuniões e ensaios onde vemos o processo a desenvolver-se –, uma fricção latente entre os dois irmãos criadores do projecto e elenco. Mas percebe-se. Fuck Me Gently! é, afinal, a história de dois encenadores que decidiram fazer um espectáculo depois de os seus pais morrerem e aqui, com dinheiro deixado pelos progenitores, tentam reerguer essa memória, tentam – e por isso é que isto não deixa de ter um quê de filme de terror e de linguagem noir – juntar-se a eles pelo teatro. A frieza, a forma gratuita com que se diz que os actores não estão lá, não sabem o que estão a fazer, essa má onda, está lá toda e, convenhamos, tem muita piada. E sim, pode, admite Mário Coelho, ser um pouco exagerada, mas não assim tanto: “A agressividade de alguém dizer ‘não sabemos quando é que vai ser o espectáculo, mas temos aqui um contrato de um ano e queremos reservar a vossa imagem’ talvez seja um pouco extrema, mas, de facto, acho que todos já nos cruzámos com processos que começam a beirar a zona duvidosa. Já trabalhei com pessoas em que senti que havia uma posse perante a minha imagem e isso é muito perigoso”.

Portanto está cá o poder, está cá o excesso de informação – de tal forma que nestas linhas se torna impossível referir sequer a maioria dos acontecimentos – e está cá uma carga de inevitabilidade enorme. É inevitável que estes irmãos tentem dar uma volta à sua vida. Como é inevitável que sempre se vá dizendo: “a tristeza nunca termina”. Certinho, direitinho. 

Rua das Gaivotas 6. Qua-Dom 21.30. 5-7,5€. 

perfeito para desistir de tentar 

cena técnica 

De Mário Coelho

Com Ana Valente, Ana Valentim, Anabelo Ribeira, Bárbara Bruno, Carolina Dominguez, Cleo Tavares, Filipe Baptista, Margarida Correia, Mariana Medeiros, Mário Coelho, Pedro Baptista, Rita Rocha Silva



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