[title]
Em 2008, um advogado belga chamado Victor Hissel foi detido pela polícia, sob a acusação de posse de pornografia infantil no computador. A notícia não teria grande impacto, não fosse Hissel ter sido, 12 anos antes, o advogado das famílias de duas das crianças assassinadas por Marc Dutroux, um dos mais tristemente célebres criminosos e pedófilos da história. Representando os familiares das pequenas Julie Lejeune, de oito anos, e Mélissa Russo, de nove, Hissel distinguiu-se pela veemência com que então atacou magistrados, polícias e investigadores do caso, apontando-lhes a incompetência, o desleixo e mesmo a possível corrupção, assim como eventuais tentativas de encobrimento.
Criticado por alguns pelo carácter “excessivo” de algumas das suas declarações e pelo seu estilo e discurso “inflamatórios”, o causídico ganhou uma imensa popularidade na Bélgica, e mesmo fora do país, e transformou-se na figura maior e mais emblemática da luta contra a pedofilia. Após a sua prisão em 2008, Victor Hissel defendeu-se das acusações dizendo que havia sido vítima de abusos sexuais por um familiar próximo na infância, e que não tinha imagens nem filmes de pornografia infantil no seu computador (o que a investigação policial confirmou), tendo-se limitado a visitar sites da mesma para conhecer esta realidade, no âmbito da defesa das vítimas de Marc Dutroux. Só que o fez por milhares de vezes, e em parte após se ter retirado do processo.
Houve nessa altura quem adiantasse que Hissel estava a ser vítima de uma campanha por parte de forças obscuras (uma possível aliança de gente do mundo do crime e de polícias corruptos) que se queriam vingar dele pela sua actuação no caso Dutroux. Em 2010, e após, um ano antes, ter sido vítima de uma tentativa de assassínio à facada pelo seu próprio filho, Romain, de 20 anos, o advogado foi condenado a 10 meses de prisão com pena suspensa, tendo também sido suspenso de actividade durante um ano pela Ordem dos Advogados da Bélgica. Em 2011, o filho foi absolvido da tentativa de parricídio. Estes dois escândalos destruíram a família Hissel.
Não é preciso conhecer em pormenor o caso de Victor Hissel para o filme ver Um Silêncio, do belga Joachim Lafosse, cujo enredo se baseia neste, mas convém ter algumas luzes sobre o sucedido, tanto mais que a abordagem do realizador é tão elíptica e tão escassamente explicada (não é por acaso que a palavra “silêncio” faz o título), que o espectador poderá ficar um pouco à nora com o que está a ver. Daniel Auteuil interpreta François Schaar, um advogado muito mediático e com um discurso muito afirmativo, que está a defender as famílias de duas crianças vítimas de um horrível caso de rapto, pedofilia e assassínio. Ele é casado com Astrid (Emmanuelle Devos) e têm um filho adoptivo adolescente, Raphaël (Matthieu Galoux).

Em Um Silêncio, Lafosse segue de muito perto o caso de Victor Hissel, introduzindo no entanto algumas modificações, sendo uma delas muito importante. Enquanto que Hissel disse que havia sido molestado sexualmente quando era criança por um parente, no filme Schaar não foi molestado mas sim molestador, na pessoa de um irmão da mulher, quando este era adolescente, 30 anos antes. Um facto que quer ele, quer a mulher, ocultaram a Raphaël, que só o fica a conhecer quando o pai adoptivo é detido pela polícia. Joachim Lafosse quis rodar uma fita anti-sensacionalista, recatada em termos dramáticos em vez de explosiva, e em que o caso de pedofilia e assassínio é secundário em relação ao tema central: a implosão de uma família média causada pelo silêncio e pela ocultação de dois terríveis segredos de ordem sexual no seu interior, ambos relacionados com o pai: um envolvendo incesto, o outro, pulsões pedófilas.

O cineasta deixa também sugerido (e este é um filme todo ele feito à base da sugestão e nunca da afirmação) que o empenho e o fervor postos por François Schaar na defesa dos seus clientes são a forma do advogado e pai de família tentar compensar publicamente os seus desvios e pecados privados, atenuando assim o seu sentimento de culpa, bem como os problemas de consciência que o atormentam (tal como Victor Hissel, Schaar está há muito a ter acompanhamento médico e psicológico). Produção franco-belga, Um Silêncio valeu a Joachim Lafosse o prémio de Melhor Realizador no Festival de Roma de 2023.
🏡 Já comprou a Time Out Lisboa, com as últimas aldeias na cidade?
🏃 O último é um ovo podre: cruze a meta no Facebook, Instagram e Whatsapp