A Time Out na sua caixa de entrada

Procurar
Aula da Esfera do Colégio de Santo Antão, ensino de ciências matemáticas — Hospital de São José
Arlei LimaAula da Esfera do Colégio de Santo Antão, ensino de ciências matemáticas — Hospital de São José

Há visitas guiadas pelos tesouros e segredos dos hospitais da Colina de Santana

Os hospitais da Colina de Santana guardam cinco séculos de arte e de histórias surpreendentes – e algumas só agora estão a ser descobertas.

Helena Galvão Soares
Escrito por
Helena Galvão Soares
Publicidade

São visitas a hospitais, mas ninguém vai ver familiares ou amigos internados. Todos os meses, o Gabinete do Património Cultural do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central organiza visitas guiadas a Santa Marta, aos Capuchos e a São José, levando os curiosos a locais que não imaginávamos que pudessem existir, com histórias e curiosidades de que ainda menos suspeitávamos.

Claustro do Convento de Santa Marta (tem uma esplanada!)
Arlei LimaClaustro do Convento de Santa Marta

“A nossa ideia, e é isso que entusiasma muitas vezes as pessoas nas visitas, é explicar o porquê de as coisas serem assim”, diz Carlos Boavida. “Mas sem um tom professoral, senão era uma seca”, remata. “E aproveitamos e contamos as histórias de algumas das personagens que fazem esta história”, acrescenta Fátima Palmeiro, a outra metade do Gabinete do Património Cultural. “Muitas destas pessoas estão completamente esquecidas. Toda a gente conhece o Hospital Curry Cabral, mas poucos sabem quem foi o Curry Cabral”, aponta Carlos. “Curry Cabral foi a pessoa que transformou este espaço onde estamos  [Santa Marta] num hospital”, vinca Fátima.
É mesmo assim, a duas vozes, que decorrem as visitas. E a primeira história que se conta é esta, versão resumida:  entre 1901 e 1910, o Convento de Santa Marta de Jesus, do século XVI, foi transformado num hospital moderno, com electricidade e até um elevador. Em 1910, o fervor da causa republicana afastou Curry Cabral do cargo de Enfermeiro-Mor (presidente do Conselho de Administração), interrompendo assim a reorganização hospitalar em curso que passava por encerrar os hospitais do Desterro e Arroios, uma vez que considerava preferível desistir de velhas instalações e criar hospitais novos e modernos, como o de Santa Marta. “O tempo veio dar-lhe razão”, explica Fátima. “Acabaram por ser encerrados, mas só quase um século depois.” 

Extracção da pedra da loucura, pormenor de painel do século XIX da Portaria do Colégio de Santo Antão — Hospital de São José
Arlei LimaExtracção da pedra da loucura, pormenor de painel do século XIX da Portaria do Colégio de Santo Antão — Hospital de São José

Enquanto passamos por painéis de azulejo como o da foto acima, a história da medicina em Portugal vai-nos sendo contada. É com espanto que, durante a visita aos Capuchos, ficamos a saber que em 1906 teve lugar em Lisboa, organizado e dinamizado por Miguel Bombarda, o XV Congresso Internacional de Medicina, que durou uma semana e trouxe à cidade mais de 2000 congressistas, entre os quais grandes expoentes da medicina mundial. Ou que o Museu da Dermatologia Portuguesa, instalado no Salão Nobre do Hospital dos Capuchos, tem uma colecção de figuras de cera única. É que estas peças, que ilustram as diferentes patologias, com ênfase na sífilis (prepare-se para ver genitália tenebrosamente deformada e caras com problemas que talvez o façam estremecer), não foram criadas a partir de estampas, como acontece nas outras colecções da época. Os moldes foram recolhidos nos próprios doentes tratados nos hospitais do Desterro e dos Capuchos. Depois, os positivos em cera foram pintados e foram-lhes acrescentados pêlos, cabelos naturais e olhos de vidro. Pode conhecer este museu, com visita guiada e gratuita, às quartas-feiras, das 10.00 às 12.30 e das 14.00 às 17.00.

Museu da Dermatologia Portuguesa Dr. Luís Sá Penella — Hospital dos Capuchos
Arlei LimaMuseu da Dermatologia Portuguesa Dr. Luís Sá Penella — Hospital dos Capuchos

O mais inesperado, no entanto, talvez sejam os espaços que vamos percorrendo e que jamais imaginaríamos num hospital. Houve a sensibilidade de manter parte do património de dois conventos, um palácio e um colégio jesuíta. Sabia que Santa Marta mantém o claustro do antigo convento, forrado a painéis de azulejo do século XVIII e com o jardim e a fonte barroca? E mais: que tem uma esplanada onde pode ir livremente beber um cafezinho? E que até pode dar uma espreitadela ao belíssimo fresco do século XVII da abóbada do antigo coro baixo da igreja (que é a actual capela do hospital)?

Fresco do século XVII na abóbada do antigo coro baixo da Igreja de Santa Marta; actual capela do hospital
Arlei LimaFresco do século XVII na abóbada do antigo coro baixo da Igreja de Santa Marta; actual capela do hospital

Na visita guiada são também dados a conhecer espaços fechados ao público, como a extraordinária sala do capítulo, coberta de alto a baixo de azulejos do século XVIII, que contam a história de São Francisco e de Santa Clara, e as histórias que Carlos Boavida e Fátima Palmeiro vão descobrindo. Exemplo: a do riquíssimo altar-mor em talha dourada que foi levado, inteirinho, para a Igreja de Santo António do Estoril, em 1927. Ou a do tecto com exuberante decoração em estuque do século XVIII, que só entrevemos por uma fresta, dado que outro mais recente foi colocado mais abaixo.

Carlos Boavida e Fátima Palmeiro na Sala do Capítulo do Convento de Santa Marta
Arlei LimaCarlos Boavida e Fátima Palmeiro na Sala do Capítulo do Convento de Santa Marta

Do Convento de Santo António dos Capuchos, sobrevive pouco mais do que a igreja, que foi saqueada em 1911, aquando da implantação da República, pelo que actualmente resta quase só o tecto restaurado e os azulejos, do século XVIII, onde pode ver vários milagres de Santo António. Mas há muita história, e historietas, para contar. Há registo de que no exterior da igreja existiram onze capelinhas da Via Sacra que eram alvo de grande devoção popular, atraindo o incrível número de 2000 a 3000 peregrinos na Quaresma. No fim do século XIX, entre esses devotos, circulava uma senhora de fora de Lisboa dedicada à pouca católica actividade de roubar os bens e dinheiro dos peregrinos. “Consta que morreu rica”, conclui Carlos Boavida.
Com as esmolas e doações dos peregrinos e com o aluguer de cadeiras no Passeio Público nas festas e quermesses durante a Quaresma (sim, existia esta actividade económica), o Asylo da Mendicidade, que entretanto se tinha instalado no convento na sequência da extinção das ordens religiosas, e que chegou a albergar mais de 1000 pessoas, comprou o adjacente Palácio Abreu e Mello em 1854, com o objectivo de aumentar os seus dormitórios. Neste palácio podem admirar-se os painéis da escadaria da entrada, com azulejos do século XVIII de grande qualidade representando cenas de batalha. No piso nobre, o dos salões, festas e bailes, é isso mesmo que vemos representado num painel de oito metros: o baile a tomar forma, com damas e cavalheiros galantes a ensaiar passos de dança; noutros há uma barca com os músicos e personagens da commedia dell’arte.

São Miguel segurando a balança para pesar as alminhas do Purgatório e decidir o seu destino: Céu ou Inferno, painel do século XVIII — Hospital de Santa Marta
Arlei LimaSão Miguel segurando a balança para pesar as alminhas do Purgatório e decidir o seu destino: Céu ou Inferno, painel do século XVIII — Hospital de Santa Marta

As próprias visitas guiadas já estão a contribuir para aumentar o conhecimento sobre o património cultural do CHULC. Fátima e Carlos costumam contar uma história particularmente surpreendente: com o saque da igreja dos Capuchos, em 1911, a imagem de Nosso Senhor da Ressurreição foi levada por um homem que a vendeu, tendo-se perdido o seu rasto. “Mas aqui há um mês descobrimos o resto da história”, conta Carlos. “Numa visita, uma senhora disse: ‘Ah! Mas eu sei onde a peça está. Está numa igreja da terra do meu pai.’” E, sim, está mesmo em Ervedal da Beira, Oliveira do Hospital. Existe até uma fotografia dela porque, quando a imagem foi doada, na Páscoa de 1987, o pároco fez um postal para oferecer aos paroquianos.

Por fim, o Hospital de São José, instalado no antigo colégio jesuíta de Santo Antão-o-Novo. Poderiam fazer-se aqui várias visitas sem temer repetição. É muita história. É muita coisa para ver. É por isso que a visita começa com um Powerpoint que nos dá um breve enquadramento histórico. Estamos na famosa sala da Aula da Esfera, onde desde o século XVI, durante 170 anos, se ensinou o que de mais avançado se sabia de tudo o que estava ligado às ciências matemáticas (geometria, óptica, perspectiva, engenharia, arquitectura, cosmografia, náutica). São alegorias de todo esse conhecimento científico que podemos admirar nos painéis de azulejo que nos rodeiam.

Sacristia da Igreja do Colégio de Santo Antão, que resistiu ao terramoto — Hospital de São José
Aelei LimaSacristia da Igreja do Colégio de Santo Antão, que resistiu ao terramoto — Hospital de São José

Incontornável também é a sacristia, de dimensões inauditas, com arcazes de 20 metros de comprimento em pau-santo, chão de embrechados de mármores e imponente abóbada em caixotões de cantaria. Aqui se encontra a lápide do túmulo da mecenas da igreja, D. Filipa de Sá, condessa de Linhares, que era filha do 3º Governador do Brasil e, tendo pai, marido, irmãos e filhos morrido antes dela, foi herdeira de uma imensa fortuna, que deu aos jesuítas. Só na sacristia, do arquitecto João Antunes, o mesmo do Panteão Nacional, podia passar-se bem mais de meia hora à volta do que vemos e das suas histórias, mas regressamos ao objectivo destas visitas: saber o porquê das coisas. E deixamos no ar as perguntas iniciais de Carlos Boavida: "Porque é que o Hospital Real de Todos os Santos passa para o Colégio de Santo Antão? Há o mito de que foi destruído pelo terramoto. Não foi, continuou a funcionar durante mais 20 anos, chegou a ter 20 enfermarias a funcionar." O que terá acontecido então? 

Próximas visitas: Hospital de Santa Marta: 14 Out (Sáb), 15.00 | Hospital de São José: 19 Out (Qui) , 15.00 | Hospital dos Capuchos – 20 Out (Sex), 15.00. Mais info no Facebook do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central

Últimas notícias

    Publicidade