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São visitas a hospitais, mas ninguém vai ver familiares ou amigos internados. Todos os meses, o Gabinete do Património Cultural do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central organiza visitas guiadas a Santa Marta, aos Capuchos e a São José, levando os curiosos a locais que não imaginávamos que pudessem existir, com histórias e curiosidades de que ainda menos suspeitávamos.
![Claustro do Convento de Santa Marta (tem uma esplanada!)](https://media.timeout.com/images/106051524/image.jpg)
“A nossa ideia, e é isso que entusiasma muitas vezes as pessoas nas visitas, é explicar o porquê de as coisas serem assim”, diz Carlos Boavida. “Mas sem um tom professoral, senão era uma seca”, remata. “E aproveitamos e contamos as histórias de algumas das personagens que fazem esta história”, acrescenta Fátima Palmeiro, a outra metade do Gabinete do Património Cultural. “Muitas destas pessoas estão completamente esquecidas. Toda a gente conhece o Hospital Curry Cabral, mas poucos sabem quem foi o Curry Cabral”, aponta Carlos. “Curry Cabral foi a pessoa que transformou este espaço onde estamos [Santa Marta] num hospital”, vinca Fátima.
É mesmo assim, a duas vozes, que decorrem as visitas. E a primeira história que se conta é esta, versão resumida: entre 1901 e 1910, o Convento de Santa Marta de Jesus, do século XVI, foi transformado num hospital moderno, com electricidade e até um elevador. Em 1910, o fervor da causa republicana afastou Curry Cabral do cargo de Enfermeiro-Mor (presidente do Conselho de Administração), interrompendo assim a reorganização hospitalar em curso que passava por encerrar os hospitais do Desterro e Arroios, uma vez que considerava preferível desistir de velhas instalações e criar hospitais novos e modernos, como o de Santa Marta. “O tempo veio dar-lhe razão”, explica Fátima. “Acabaram por ser encerrados, mas só quase um século depois.”
![Extracção da pedra da loucura, pormenor de painel do século XIX da Portaria do Colégio de Santo Antão — Hospital de São José](https://media.timeout.com/images/106051527/image.jpg)
Enquanto passamos por painéis de azulejo como o da foto acima, a história da medicina em Portugal vai-nos sendo contada. É com espanto que, durante a visita aos Capuchos, ficamos a saber que em 1906 teve lugar em Lisboa, organizado e dinamizado por Miguel Bombarda, o XV Congresso Internacional de Medicina, que durou uma semana e trouxe à cidade mais de 2000 congressistas, entre os quais grandes expoentes da medicina mundial. Ou que o Museu da Dermatologia Portuguesa, instalado no Salão Nobre do Hospital dos Capuchos, tem uma colecção de figuras de cera única. É que estas peças, que ilustram as diferentes patologias, com ênfase na sífilis (prepare-se para ver genitália tenebrosamente deformada e caras com problemas que talvez o façam estremecer), não foram criadas a partir de estampas, como acontece nas outras colecções da época. Os moldes foram recolhidos nos próprios doentes tratados nos hospitais do Desterro e dos Capuchos. Depois, os positivos em cera foram pintados e foram-lhes acrescentados pêlos, cabelos naturais e olhos de vidro. Pode conhecer este museu, com visita guiada e gratuita, às quartas-feiras, das 10.00 às 12.30 e das 14.00 às 17.00.
![Museu da Dermatologia Portuguesa Dr. Luís Sá Penella — Hospital dos Capuchos](https://media.timeout.com/images/106051534/image.jpg)
O mais inesperado, no entanto, talvez sejam os espaços que vamos percorrendo e que jamais imaginaríamos num hospital. Houve a sensibilidade de manter parte do património de dois conventos, um palácio e um colégio jesuíta. Sabia que Santa Marta mantém o claustro do antigo convento, forrado a painéis de azulejo do século XVIII e com o jardim e a fonte barroca? E mais: que tem uma esplanada onde pode ir livremente beber um cafezinho? E que até pode dar uma espreitadela ao belíssimo fresco do século XVII da abóbada do antigo coro baixo da igreja (que é a actual capela do hospital)?
![Fresco do século XVII na abóbada do antigo coro baixo da Igreja de Santa Marta; actual capela do hospital](https://media.timeout.com/images/106051537/image.jpg)
Na visita guiada são também dados a conhecer espaços fechados ao público, como a extraordinária sala do capítulo, coberta de alto a baixo de azulejos do século XVIII, que contam a história de São Francisco e de Santa Clara, e as histórias que Carlos Boavida e Fátima Palmeiro vão descobrindo. Exemplo: a do riquíssimo altar-mor em talha dourada que foi levado, inteirinho, para a Igreja de Santo António do Estoril, em 1927. Ou a do tecto com exuberante decoração em estuque do século XVIII, que só entrevemos por uma fresta, dado que outro mais recente foi colocado mais abaixo.
![Carlos Boavida e Fátima Palmeiro na Sala do Capítulo do Convento de Santa Marta](https://media.timeout.com/images/106051557/image.jpg)
Do Convento de Santo António dos Capuchos, sobrevive pouco mais do que a igreja, que foi saqueada em 1911, aquando da implantação da República, pelo que actualmente resta quase só o tecto restaurado e os azulejos, do século XVIII, onde pode ver vários milagres de Santo António. Mas há muita história, e historietas, para contar. Há registo de que no exterior da igreja existiram onze capelinhas da Via Sacra que eram alvo de grande devoção popular, atraindo o incrível número de 2000 a 3000 peregrinos na Quaresma. No fim do século XIX, entre esses devotos, circulava uma senhora de fora de Lisboa dedicada à pouca católica actividade de roubar os bens e dinheiro dos peregrinos. “Consta que morreu rica”, conclui Carlos Boavida.
Com as esmolas e doações dos peregrinos e com o aluguer de cadeiras no Passeio Público nas festas e quermesses durante a Quaresma (sim, existia esta actividade económica), o Asylo da Mendicidade, que entretanto se tinha instalado no convento na sequência da extinção das ordens religiosas, e que chegou a albergar mais de 1000 pessoas, comprou o adjacente Palácio Abreu e Mello em 1854, com o objectivo de aumentar os seus dormitórios. Neste palácio podem admirar-se os painéis da escadaria da entrada, com azulejos do século XVIII de grande qualidade representando cenas de batalha. No piso nobre, o dos salões, festas e bailes, é isso mesmo que vemos representado num painel de oito metros: o baile a tomar forma, com damas e cavalheiros galantes a ensaiar passos de dança; noutros há uma barca com os músicos e personagens da commedia dell’arte.
![São Miguel segurando a balança para pesar as alminhas do Purgatório e decidir o seu destino: Céu ou Inferno, painel do século XVIII — Hospital de Santa Marta](https://media.timeout.com/images/106051551/image.jpg)
As próprias visitas guiadas já estão a contribuir para aumentar o conhecimento sobre o património cultural do CHULC. Fátima e Carlos costumam contar uma história particularmente surpreendente: com o saque da igreja dos Capuchos, em 1911, a imagem de Nosso Senhor da Ressurreição foi levada por um homem que a vendeu, tendo-se perdido o seu rasto. “Mas aqui há um mês descobrimos o resto da história”, conta Carlos. “Numa visita, uma senhora disse: ‘Ah! Mas eu sei onde a peça está. Está numa igreja da terra do meu pai.’” E, sim, está mesmo em Ervedal da Beira, Oliveira do Hospital. Existe até uma fotografia dela porque, quando a imagem foi doada, na Páscoa de 1987, o pároco fez um postal para oferecer aos paroquianos.
Por fim, o Hospital de São José, instalado no antigo colégio jesuíta de Santo Antão-o-Novo. Poderiam fazer-se aqui várias visitas sem temer repetição. É muita história. É muita coisa para ver. É por isso que a visita começa com um Powerpoint que nos dá um breve enquadramento histórico. Estamos na famosa sala da Aula da Esfera, onde desde o século XVI, durante 170 anos, se ensinou o que de mais avançado se sabia de tudo o que estava ligado às ciências matemáticas (geometria, óptica, perspectiva, engenharia, arquitectura, cosmografia, náutica). São alegorias de todo esse conhecimento científico que podemos admirar nos painéis de azulejo que nos rodeiam.
![Sacristia da Igreja do Colégio de Santo Antão, que resistiu ao terramoto — Hospital de São José](https://media.timeout.com/images/106051520/image.jpg)
Incontornável também é a sacristia, de dimensões inauditas, com arcazes de 20 metros de comprimento em pau-santo, chão de embrechados de mármores e imponente abóbada em caixotões de cantaria. Aqui se encontra a lápide do túmulo da mecenas da igreja, D. Filipa de Sá, condessa de Linhares, que era filha do 3º Governador do Brasil e, tendo pai, marido, irmãos e filhos morrido antes dela, foi herdeira de uma imensa fortuna, que deu aos jesuítas. Só na sacristia, do arquitecto João Antunes, o mesmo do Panteão Nacional, podia passar-se bem mais de meia hora à volta do que vemos e das suas histórias, mas regressamos ao objectivo destas visitas: saber o porquê das coisas. E deixamos no ar as perguntas iniciais de Carlos Boavida: "Porque é que o Hospital Real de Todos os Santos passa para o Colégio de Santo Antão? Há o mito de que foi destruído pelo terramoto. Não foi, continuou a funcionar durante mais 20 anos, chegou a ter 20 enfermarias a funcionar." O que terá acontecido então?
Próximas visitas: Hospital de Santa Marta: 14 Out (Sáb), 15.00 | Hospital de São José: 19 Out (Qui) , 15.00 | Hospital dos Capuchos – 20 Out (Sex), 15.00. Mais info no Facebook do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central