Abriu como a extensão de uma cozinha que em Évora já se tinha dado a conhecer e tem, nas lides, o mesmo nome responsável. António Nobre, chef de Beja, trouxe da terra mãe as receitas e deitou-as à mesa sem cerimónias, fazendo deste Degust'AR um novo altar à gastronomia da região do Alentejo.
O espaço enche-se de pequenos recortes. Tachos de cobre na parede, fotografias do quotidiano eborense, candeeiros a meio gás para adensar o ambiente. O Degust'AR chegou a Lisboa como uma aposta do grupo M'AR De AR Hotels – responsável pelo M'AR de AR Muralhas e o M'AR de Ar Aqueduto em Évora – na cozinha alentejana, fazendo-a chegar à capital pela mão do mesmo homem que havia pensado a carta a sul, António Nobre.
Crítica
O Degust’AR é o muito aguardado restaurante de António Nobre. O projecto vem na linha de outros do mesmo chef e do mesmo grupo, o M’AR De AR Hotels, de Évora, quer na comida quer na nomenclatura com terminação em apóstrofo e em letras maiúsculas, artifício indecifrável que parece ter sido inventado para aborrecer quem escreve sobre restaurantes. Em mais de 300 críticas aqui publicadas, não me lembro de um nome tão mau para um restaurante, um nome em que tudo é mau. Mesmo admitindo que não havia o apóstrofo e o AR, Degustar já cheiraria a restaurante de hotel com empratamento em aro de metal, um restaurante para pessoas que não comem mas degustam, pessoas que levam a comida à boca e depois cerram os olhos e meditam enquanto o cação circula na cavidade bucal, para depois sentenciarem com elevação: “O coentro está bem presente”.
Naturalmente, estou a ser excessivo e desagradável – o costume – porque há muita coisa boa neste restaurante de cariz alentejano, ainda que com toques-tiques de chef.
Mas vamos ao relato dos acontecimentos, ocorridos num almoço de sexta-feira, mais de meia casa, muita gente de gravata e tailleur, afinal estamos na área do Saldanha, esse bastião do executivo e do ex-yuppie.
Começou malzinho. Chegou o couvert sem ser pedido, cobrado a quatro euros e meio. Pão tipo alentejano, do industrial mas com ligeiro azedo típico, depois duas bolinhas cozidas no restaurante, gulosas. Para barrar uma manteiga de linguiça forte de pimentão, bem boa, e outras congéneres olvidáveis. Pediram-se ainda três empadinhas de galinha, mesmo empadinhas, pequeninas, para comer de uma vez, mais massa do que recheio, bem feitas sem encantarem.
De imediato para os principais, com boa gestão dos tempos por parte da cozinha e do serviço. Menos bem o empregado quando serviu o vinho. A garrafa tinha TCA, a célebre rolha, no caso muito evidente logo no nariz. Detectei o defeito na prova, sinalizei-o, e, nessa altura, o empregado, que já tinha cheirado a rolha, assumiu: “Também me pareceu, era só para ter a certeza”.
Eis que nisto chegou o arroz de coentros com pataniscas. O arroz caldoso razoável, ainda por abrir. Acho que os chefs andam a exagerar nisto do arroz al dente. O arroz caldoso tradicional precisa que o caldo ensope ligeiramente o bago e, com a entaladela que lhe dão, mais os tempos curtos da cozedura, nem sempre isso acontece. Pataniscas no formato bolacha, bem fritas e crocantes, um pouco mais de bacalhau não tinha estragado o conjunto.
No timing perfeito aterra a sopa de cação, o caldo separado do dito. O peixe estava genial, sobretudo as postas da barriga, suaves e húmidas; o caldo líquido sem sinal de farinha, contido no vinagre, abundante de coentros, tudo bem quente como tem de ser, uma maravilha. Lembrar que o cação é um tubarão e que a sopa de cação é um prato típico do Alentejo. Devíamos questionar as razões que levaram a que um tubarão se tornasse num prato típico do Alentejo. Não fosse a vida ser trabalhar e ver o casados de não sei quê e o Benfica, e as pessoas talvez se interrogassem como raio é que um tubarão saiu do Atlântico, pulou o Litoral e foi fixar-se na região mais quente do país – e isto quando não havia auto-estradas nem transporte com refrigeração.
As pessoas não se questionam, mas mesmo assim eu respondo. A história é simples. O cação era dos peixes mais baratos do mercado (hoje nem tanto), o Alentejo era das regiões mais pobres. O cação tinha ainda outra característica: apodrecia muito rapidamente e quando apodrecia largava amoníaco, que é uma coisa que cheira aos interstícios dos ladrilhos dos urinóis das estações de serviço.
Ora, foi para disfarçar esse aroma que se inventou a marinada do cação. Antes de ser imerso num caldo enfarinhado de coentros, o cação marinava – e marina – numa espécie de desinfectante natural, feito de muito alho e muito vinagre. Foi deste antibacteriano que nasceu um dos pratos mais extraordinários da cozinha portuguesa, em geral, e da cozinha do Degust’AR, em particular.
A terminar os pratos salgados, migas de espargos com lombinho de porco ibérico. A carne tenra, em troços condimentados de pimentão, as migas pouco intensas de pingo e de espargos (fora de época).
Para sobremesa pediu-se a sericaia, caseira, com ameixa que não era de Elvas.
No fim, pagou-se, com a garrafa de tinto mais barata da carta (Argilla tinto, 16€), 22 por pessoa, mas à noite muda a carta e mudam os valores, que sobem e muito.
Em síntese. O Degust’AR é aquilo que acontece quando um restaurante de hotel encontra um restaurante alentejano. A comida é correcta, o serviço atencioso e competente, a apresentação clássica – e isto já é muito, quando falamos de uma cozinha regional muito maltratada nos últimos anos. Falta só mais António Nobre na cozinha, mais paixão e mais receituário que não seja só o alentejano do costume.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.