Os restaurantes portugueses têm uma dificuldade crónica em conseguirem bons produtos de forma consistente. Ora, o chef João Rodrigues tem lutado contra isso. O Projecto Matéria, criado por si, reúne alguns dos melhores talhantes, apicultores, olivicultores, pescadores e criadores de gado deste país.
Há uns anos, o chef do Feitoria, restaurante do hotel Altis Belém, percebeu que todos teriam a ganhar se houvesse uma bolsa digital que juntasse o melhor que se faz em Portugal. E meteu mãos à obra. Andou de norte a sul a falar com produtores e a dar-lhes palco, e assim nasceu um site com os seus contactos. Esse trabalho tem sido largamente reconhecido, inclusive no estrangeiro. Em 2021, o Projecto Matéria venceu o galardão Game Changer, dos prémios franceses La Liste.
Não foi a única condecoração. Nos prémios Mesa Marcada, nome do blogue de Miguel Pires e Duarte Calvão, João Rodrigues e o Feitoria venceram, consecutivamente, nos últimos seis anos, nas categorias de melhor chef e de melhor restaurante – destronando José Avillez e o seu Belcanto. A votação conta com gastrónomos, foodies e jornalistas da área.
Sucede que o guia Michelin Espanha/ Portugal tem tido entendimento diferente do da comunidade pátria. Apesar dos protestos, o Feitoria mantém-se apenas com uma estrela, ficando atrás de outros restaurantes nacionais duplamente estrelados, como o Vila Joya, o Ocean ou o The Yeatman. Uma injustiça, diz a nação.
Foi, por isso, com muita expectativa, que visitei recentemente o Feitoria. Já é mais do que fez a maioria dos votantes do ranking do Mesa Marcada, mas ainda assim não permite conclusões definitivas sobre inspecções galácticas. O que permite dizer, claramente, é que esta experiência, nesta noite, esteve longe de se encaixar naquilo que é uma refeição num duas estrelas Michelin, em Portugal ou em Espanha.
Dito isto, à escolha, estavam quatro menus de degustação, todos apelidados de Caminho: dois deles omnívoros – um de sete momentos (125€), outro de nove (145€) – e dois vegetarianos, também de sete e nove momentos (100€ e 120€).
Fui pelo Caminho omnívoro de nove momentos. A abrir, uma partilha de vários amuse-bouches. Tudo bom, mas com demasiadas coisas dominadas por maioneses e fritos. Exemplos: truta (pouca), gamba (repetida: com maionese e num charuto frito) e chamuça de lentilhas.
Soube bem refrescar o palato com o caranguejo real e o caviar, o bicho desfiado na carapaça de uma navalheira, que terá dado os seus sucos ao manifesto: delicioso. Nesta altura, já estava na mesa o couvert, com dois pães, um de trigo e outro de milho, nenhum deles à altura da situação. O pão de trigo infantilmente falhado, sem ar, sem untuosidade, sem côdea. Salvaram-no os azeites, dois, ambos da Quinta de Ceis, magníficos exemplares durienses.
O problema foi que, com os azeites, começaram as trapalhadas com o serviço. Questionada sobre os ditos, a pessoa que estava a servir ficou embaraçada e começou a falar em “castas de azeitona”. Oh, diacho. Mais à frente, na apresentação do prato de “tutano vegetal, brócolos e moamba de ginguba”, a mesma pessoa tropeçou na moamba e na ginguba. Não fazia ideia do que era e teve de pedir ajuda a quem estava a chefiar a sala e os vinhos, posto normalmente ocupado por André Figuinha – nessa noite ausente.
O apoio chegou depressa e bem, até porque a sala estava meio vazia. Talvez devido a essa tranquilidade, parte dos empregados teve tempo para conversa e provas na zona da garrafeira, fechada com vidros, mas passível de ser vista da sala, durante o serviço. Essa vozearia era particularmente notória, tanto mais que o Feitoria tem uma austeridade que impõe silêncio.
Nisto, aliás, é um restaurante pouco emocionante. Não que seja feio. É elegante, na sua negritude e simplicidade, com os janelões apontados ao Tejo como peça essencial. Mas a verdade é que à noite, sobretudo, o rio está longe demais para nos salvar da monotonia.
Mas regressemos à comida. A partir daqui correu tudo como é suposto num restaurante com uma estrela Michelin, à excepção de uma batata mal confitada, ainda que com indicação de origem (Raul Reis, único produtor a merecer menção na carta).
Pontos altos: a abóbora com queijo da Ilha, pinhões e espuma de alho; e o arroz carolino do Sado com cogumelos e pombo – o cereal, o jus e o ponto da ave perfeitos, ainda hoje não me sai da cabeça.
Na pastelaria, tudo bem feito e doce na medida certa, com um clássico de Alcácer do Sal a fazer suspirar, combinando eucalipto, pinhões e mel.
Em síntese. Apresentação irrepreensível de todos os pratos, ritmo rápido, comida boa. Mas havia a ideia, propagada por todo o lado, de que teria uma experiência única, assente na matéria-prima portuguesa. Ora, isso só aconteceu muito a espaços. O menu é saboroso, agradará a americanos e alemães, mas não me parece que marque a nossa portugalidade, nem na apresentação, nem no receituário. Quanto ao serviço, sem empatia nem entrega.
João Rodrigues é feito de outra matéria e dará, com certeza, novo impulso à casa. Ou isso ou está na hora de mudar de freguesia.