Uma velha discussão é se se inventa mesmo alguma coisa na cozinha ou se se está sempre a reinterpretar receitas e conceitos. É uma discussão que parte de um equívoco sobre o que é inovação – esta só existe a partir da tradição e conhecimento consolidados. Inova-se a partir de alguma coisa ou com base nalguma coisa. Sem conhecimento do que existe não há inovação. A tecnologia de uma câmara digital é radicalmente diferente das câmaras anteriores, mas sem o conceito de fotografia ou sem o conhecimento do impacto da luz e dos ângulos de abertura que as anteriores câmaras trouxeram, uma câmara digital não seria o que é. Podemos aplicar isso também à gastronomia e, desde logo, à abordagem do “nose to tail” (do nariz à cauda).
Nos anos 90, um movimento envolvendo vários chefs (que teve como símbolo Fergus Anderson, autor de Nose to Tail Eating) adoptou uma abordagem sustentável nos seus restaurantes, usando e valorizando todas as partes de um animal. Mais uma vez, a inovação partiu da tradição. Durante muitos anos, a designada cozinha pobre tinha como base o não desperdício, usando as partes supostamente menos nobres dos animais. Os cultores do “nose to tail” fizeram da necessidade de então uma virtude de hoje, a virtude da sustentabilidade. Acontece que, na comida, só a virtude não nos satisfaz. O sucesso depende da capacidade de transformar a virtude em sabor, neste caso, valorizando as diferentes partes dos animais (ou vegetais), incluindo com novas técnicas e alguma criatividade nas receitas.
É isso que consegue o Pigmeu. Tal como em muitos dos primeiros projectos “nose to tail”, no Pigmeu, no início está o porco. No início e no fim. Do nariz à cauda ou, conforme a tradição culinária portuguesa: dos pezinhos à cabeça.
O jantar começou com um excelente pão de massa mãe e uma óptima banha de porco batida com pimenta e sal. A acompanhar uns pickles de cenoura, agradáveis, mas a que faltava alguma acidez (ainda mais importante para equilibrar a banha de porco).
Seguiram-se uns pastéis de massa tenra ditos da avó Mercedes. Só posso agradecer à avó e dizer que ficaria seguramente orgulhosa da execução da sua receita. Massa perfeita e um recheio incrível de coração e chouriço de sangue com fermentação de couve e pêra. Uma combinação surpreendente, mas muito boa. Igualmente fantásticos os croquetes, com um pouco de mostarda caseira a acompanhar.
Dos petiscos, passámos às entradas. A primeira entrou para os melhores pratos do ano até ao momento. Uma patanisca de torresmo acompanhada de umas amêndoas laminadas e um creme que, de tão bom, me esqueci de apontar nas minhas notas de que era feito (e do qual já não me recordo)... Ficou o apontamento escrito do impacto e a memória de um grande prato que representa aquilo que é uma fusão perfeita de tradição e criatividade. Também extraordinários os ovos mexidos com papada e espargos. Um prato mais comum, mas com óptimo produto e executado na perfeição. A simplicidade pode ser a forma mais sofisticada de luxo (só é preciso executá-la na perfeição). É o caso de uns ovos mexidos como estes. Sobre esses ovos repousavam os espargos, cuja grelha e toque fumado exaltavam a textura e sabor fazendo um casamento perfeito com a untuosidade dos ovos e papada.
Sempre num nível altíssimo, os pratos principais. Primeiro, uns pezinhos de coentrada com feijões a que os coentros e um toque cítrico conferiam uma dimensão diferente. Depois, uns secretos de porco num ponto de cozedura muito bom (agora que a ciência permite não cozinhar demais o porco...) e beneficiando muito de umas acelgas que cortavam a gordura e davam o equilíbrio perfeito ao prato. Vieram também umas boas (não extraordinárias) batatas fritas. A não perder, igualmente, a famosa bifana porcalhona (prato ícone do Pigmeu e por boas razões).
A sobremesa tinha de incluir... porco. E a que nível. Comendo o porco da cauda ao nariz, dando-nos prazer dos pés à cabeça, uma refeição no Pigmeu tinha de terminar com a receita de um Abade que descobriu que o porco – com gemas de ovos, açúcar, canela, casca de limão e vinho do porto – podia ser o caminho para o céu. O pudim Abade de Priscos é para mim um dos melhores doces que existem. E este talvez seja o melhor pudim Abade de Priscos que já comi (e não foram poucos...).
O espaço é simples, mas simpático. Mesas em madeira agradáveis e copos de vinho a melhorar. É certo que o ambiente (e preços muito razoáveis) se inserem na linha tasca moderna, mas a comida merece copos melhores. A lista de vinhos tende para o alternativo, com algumas alternativas interessantes.
O pigmeu é um homem ou animal de pequeno porte. Este Pigmeu pode ser pequeno no tamanho, mas é grande no sabor. Do nariz até à cauda ou dos pés à cabeça e sem nos esfolar a carteira. Merece bem as cinco estrelas.
Crítica publicada originalmente na edição da Time Out de Primavera de 2025






