É difícil imaginar o que foi o Saraiva’s, um dos históricos restaurantes da década de 70. O ambiente é agora tropical e luminoso, contrastando com os estofos de veludo e os recantos obscuros da anterior encarnação. O fundador do sítio foi o famoso restaurador Gelásio Saraiva Ruas, também dono do Belcanto e do Lorde, salões à porta fechada onde empresários e profissionais liberais comiam e bebiam do bom, muitas vezes em companhia de profissionais da sedução.
Hoje esse conceito desapareceu dali e da cidade – enfim, não completamente –, mas a parte da comida no Saraiva’s continua a ser relevante. Agora nas mãos dos mesmos donos do Tágide, o restaurante sofreu uma remodelação em 2018. À nova decoração juntou-se um chef competente, Gonçalo Costa (ex-Eleven), que tratou de actualizar a carta e redefinir toda a cozinha.
No dia em que lá jantei, soube que o chef tinha deixado o grupo há algumas semanas, mas permanecem lá vários dos seus pratos de assinatura, a começar no couvert. A abrir não há pão tradicional, mas o chamado flatbread, bolachas finas com sementes de sésamo, muito boas, para se ir barrando com uma pasta de beterraba e manjericão, pasta que teria outro encanto se usasse queijo fresco a sério. Quem preferir algo mais substancial, encontra ainda no mesmo “cesto” uma focaccia de banana acolitada com chips da mesma.
Num jantar a dois, pediu-se comida a mais, desmerecendo-se o tamanho das doses, isso sim à antiga portuguesa. Nas entradas, destaque para uns croquetes de cozido em formato de bolas de pingue-pongue, crocantes e leves, o recheio saborosíssimo, à parte mostarda de Dijon, só levemente picante. Igualmente interessantes os ovos rotos, anunciados como sendo em memória do “Professor”, em referência aos célebres ovos à Professor. Reza a história que foram criados pelo famoso médico cardiologista Cid dos Santos (1907-1975), no Lorde, e depois transferidos para as restantes casas do proprietário, Saraiva’s incluído. O antigo crítico do Expresso, José Quitério, sustentava que os do Saraiva’s eram os melhores, ainda que sublinhasse a simplicidade da receita, “bocadinhos de chouriço e de pão salteados em manteiga a que se juntavam ovos batidos”. Teria no entanto o célebre cardiologista tido uma síncope se provasse os ovos actuais, que do professor já só preservam a citação na carta. Na base está agora uma tomatada com chouriço, batatas pala-pala fritas e ovo estrelado por cima, uma javardice boa que não precisava do enjoativo óleo de trufa a aromatizar.
Outro clássico da casa era a sopa de cebola, prato fundado na tradição francófona da restauração de bandeja de prata da Lisboa de 1960s e 70s. Também aqui houve actualização relativamente à clássica soupe à l’oignon, nesta versão moderna passada com natas, cebola frita por cima, sem pão e com uns fiapos (poucos) de queijo chèvre gratinado, boa mas em dose exagerada.
Ainda sem sair das entradas, muito satisfatório também o bobó de camarão, sem arriscar no óleo de dendê, com uns picles de micro-chiles raros, em forma de ás de espadas, e sabor particular – bem interessantes. Sinal de que há boa grelha foram os legumes de Outono, fumo q.b., pena as variedades serem banais e pouco sazonais, só abóbora, curgete e uns brócolos já amarelados.
Para principal, continuou-se na carne e no espírito da época, cachaço de porco e castanhas, a acompanhar abóbora assada e puré da mesma, mais maçã para cortar a gordura. O cachaço foi desfiado e reformatado em quadrados, o que teve a virtude de redistribuir a gordura da peça.
Nas sobremesas, um óptimo leite creme, por cima gelado de limão para desenjoar; e uma salada de fruta cortada em cubinhos (brunoise), vulgar na fruta (quase só maçã e kiwi), cara no preço (4,50€).
Em síntese. Há boa comida neste Saraiva’s e a bom preço, num sítio airoso e informal. Pode-se ter aqui um belíssimo almoço ou jantar por 20 euros – e isso já vai sendo raro.
Outra coisa de que gostei foi do cuidado com o serviço e os tempos de espera. Ciente das limitações actuais da cozinha, neste dia a gerência só aceitou reservas até pouco mais de meia casa (o restaurante senta umas 60 pessoas).
De resto, é pena que não se tenha preservado alguma da antiga patine. Quando os proprietários tomaram conta do espaço, em 2018, fizeram questão de anunciar que iriam preservar essa memória: o bar manteria um painel de azulejos original, ficaria também um candeeiro icónico e receitas antigas, patati-patatá. Mas isso era areia para os olhos da comunicação social. A verdade é que a redecoração foi radical, acabou completamente com o antigo ambiente e meteu o receituário na gaveta.
Enterrado o morto, felicidade aos vivos.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.