Há coisas que parecem simples. Por exemplo: a verdade e a mentira, isto é, o bem e o mal, são princípios universais. A primeira é boa, a outra não. Pronto. Mas há sempre um mas. E se este mas põe o bichinho atrás da orelha é porque de quase todas as vezes as coisas não são bem assim. De quando em quando uma mentira... Por outras palavras: quem não atirou a primeira pedra...
Sem necessitar de citar o médico-filósofo pop Dr. House, a verdade é que toda a gente mente. Mais: sem a mentira (e a omissão, sua variante), principalmente sem aquela chamada mentira branca, alegadamente destinada a evitar um mal maior, o mundo seria muito diferente. Com certeza não giraria em torno do mesmo eixo sem o Pai Natal ou a Fada dos Dentes ou o Donald Trump ou – sei lá – a infidelidade. Pois aqui está o ponto da peça de Florian Zeller (n. 1979) – autor do comovente Pai, que o mesmo João Lourenço, que agora encena em simultâneo e com os mesmos actores esta A Mentira e na sala abaixo A Verdade, dirigiu em 2016.
Temos então Joana e Miguel, que convidaram Patrícia e Paulo para jantar. Falta pouco para chegarem os convidados quando Joana parece a Miguel estar – como se costuma dizer – com um amoque. E está. Está e por isso quer cancelar o jantar depois de nessa tarde ter avistado Paulo a beijar outra mulher que não a sua. Que fazer? Ela quer contar tudo. Ele relativiza, é um problema deles e tal, entre marido e mulher não se deve meter a colher, ele é o meu melhor amigo, enfim, essas coisas que geralmente evitam chatices e deixam o mundo girar mais ou menos descansado em torno do seu eixo. E uma hipocrisia, retorque a mulher, ela também é minha amiga, etc., lidando com o dilema de contar o que viu sabendo que haverá consequências desagradáveis. Está lançada a bola de neve.
Ao dramaturgo francês basta esta primeira cena para pôr em movimento a bola de neve, a qual, como lhe compete, vai descendo a ribanceira e crescendo; crescendo até se mostrar uma massa incontrolável de riso potencialmente destruidora da vida de um casal também com os seus segredos. Estamos, assim, perante uma comédia recheada de apetitosos condimentos, que a encenação – com a frenética e inspirada contribuição de Miguel Guilherme, levando atrás de si Joana Brandão, Patrícia André e Paulo Pires no caminho para o abismo da dúvida – desenvolve como uma pândega; em regime de vertigem ética e sentimental trazendo para o palco os cambiantes e as complexidades de uma relação, como todas vivendo a dinâmica da mentira e da verdade que faz a desgraça e a felicidade dos casais. E a Terra girar.
Por Rui Monteiro