Grada Kilomba

Grada Kilomba: "Acho que as artistas negras, como eu, estão no fundo da pirâmide"

Com um carreira internacional já longa, Grada Kilomba apresenta-se só agora pela primeira vez em Portugal. A sua estreia por cá coincide com a inauguração da nova Project Room no MAAT.

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Ela é mulher, é negra. E não é por acaso que começamos por aqui. Reflectimos o trabalho de Grada Kilomba, que só agora se apresenta em Portugal pela primeira vez, apesar do vasto currículo internacional. A artista, nascida em Lisboa, mas a viver em Berlim, obriga-nos a encarar o passado colonial, sem romantismos ou encenações. No MAAT, inaugura a nova sala, Project Room, com Secrets To Tell e faz o que promete: põe todos os segredos a descoberto.

Se em nenhum momento desta exposição, ou da outra que inaugura na Galeria Avenida da Índia, não parar para pensar um segundo que seja sobre aquilo que viu, então Kilomba não conseguiu o seu objectivo. A sua arte é política, como defende que toda a arte deve ser. Quer incomodar. Não quer apagar o passado, mas quer sobretudo olhar para o presente e apontar um caminho futuro.

“Acho que Portugal tem uma relação quase obsessiva com o passado, especialmente com o passado colonial que é extremamente glorificado e romantizado”, diz-nos, quando lhe perguntamos porque só agora, quase aos 50 anos, se estreia em Portugal. “Todos os trabalhos artísticos que têm uma visão mais futurista sobre temas pós-coloniais e de género, sexualidade, transsexualidade, não têm espaço”, continua, contando que o convite para se apresentar cá aconteceu depois do sucesso na Bienal de São Paulo, “o que outra vez desenha a relação colonial que Portugal tem com o mundo”.

Este discurso pode transparecer uma certa mágoa, mas não é disso que se trata. Grada Kilomba vive feliz com o seu percurso, acha apenas “esquizofrénico” apresentarse em países como Noruega ou Suécia, com quem não tem relação. “Há um trabalho de pesquisa à procura de um tema que tem a ver com a actualidade e a verdade é que se pesquisarmos esse caminho, encontramos determinados artistas”, defende. Foi isso que aconteceu no MAAT, que até adquiriu a peça The Desire Project para a sua colecção.

Um sinal de que os tempos estão a mudar, diz a artista. A inauguração no MAAT, que acontece depois da inauguração na Galeria Avenida da Índia, vai ser aberta ao público das 19.00 às 22.00 e terá dj set de Yen Sung – o que também não é por acaso.

Até que enfim, Grada Kilomba

Como é que te apresentarias ao público português?
Nunca pensei nisso, já estou há muitos anos a mostrar o meu trabalho internacionalmente e já não me apresento. Apresentar-me aqui é algo muito novo. Acho que me apresentaria como uma artista interdisciplinar que cruza uma série formatos e de narrativas e que tem mostrado o trabalho internacionalmente. Saí já há muitos anos com uma bolsa para Berlim. Voltei sempre a Portugal para visitar a minha família, para fazer férias, mas nunca houve uma plataforma para mostrar o meu trabalho aqui.

Porquê?
Acho que Portugal tem uma relação quase obsessiva com o passado, especialmente com o passado colonial que é extremamente glorificado e romantizado e por isso investe imenso na reencenação desse passado. Acho que depois todos os discursos e todos os trabalhos artísticos que têm uma visão mais futurista sobre temas pós-coloniais e de género, sexualidade, transsexualidade, e todos os temas que fazem parte da actualidade, não têm espaço nestas plataformas. Enquanto estivermos tão fixados no passado e com a reencenação dos Descobrimentos, é impossível ter um discurso que pertence ao presente, ao que até pertence ao futuro. Por isso é que depois o trabalho é visto em espaços que estão abertos para narrativas futuristas e aqui é desconhecido. Esta fixação ao passado torna impossível a muitos artistas mostrarem o seu trabalho. Mas acho que está a mudar, de repente há uma geração de novos produtores e curadores que estão a mudar a agenda e estão a dizer que é urgente chegarmos ao presente. 

Tendo em conta esse contexto, surpreendeu o convite para apresentar o trabalho em Portugal?
Não me surpreendeu, acho que veio a tempo. Não é por acaso que os museus de arte ficaram a conhecer o meu trabalho aqui em Portugal através da Bienal de São Paulo, o que outra vez desenha a relação colonial que Portugal tem com o mundo. Eu tenho mostrado o meu trabalho em inúmeros museus, bienais e eventos que são importantes para a arte contemporânea, mas Portugal tem uma relação realmente virada para a história colonial e por isso não foi por acaso o sítio que me descobriu. Já era a quarta ou quinta vez nesse ano que estava a mostrar o meu trabalho no Brasil – tenho mostrado o meu trabalho intensamente lá. Mostra de facto para onde estamos virados e o que é que conseguimos ver. Depois houve um espanto: 'como é que não sabemos que esta artista existe'. Mas depois olha-se para o currículo e não se percebe. É um pouco esquizofrénico. Mostras o teu trabalho em museus relevantes da Suécia e da Noruega e países com os quais não tens relação nenhuma. Na verdade, eles conhecem o meu trabalho porque há um trabalho de pesquisa à procura de um tema que tem a ver com a actualidade e uma visão futurista. Se pesquisarmos esse caminho, encontramos determinados artistas. Por isso, este convite não foi uma surpresa, foi mais: 'ah, até que enfim. Já não era sem tempo'. Ao mesmo tempo, fiquei muito contente porque acho necessário chegarmos ao presente. Há muitos artistas que são extraordinários e não têm visibilidade aqui. São especialmente artistas da diáspora africana e especialmente mulheres, mulheres negras. Há uma série de grupos que não têm visibilidade nas plataformas de arte contemporânea.

Sentes que o reconhecimento nacional só vem depois do internacional?
Acho que sim, acho que há uma certa estupidez logística aqui. Lembro-me de acabar os estudos e começar a desenvolver projectos. Candidatei-me para uma bolsa na Alemanha e recebi imediatamente essa bolsa e depois não te deixam sair de lá. Dão valor. É uma inteligência, eles mantêm-te na cidade, querem que os artistas mais proeminentes fiquem ali a viver. É por isso que eu vivo lá, eu gosto de viver lá. Estamos tão fixados no passado que somos incapazes de reconhecer os discursos e as narrativas e a visibilidade que os artistas estão a criar no presente. Queremos tanto romantizar um passado que não há espaço para um discurso crítico e um outro olhar. Isso deixa-nos para trás, isolados e vazios. Espero que este seja um momento de transformação.

O MAAT está a ajudar nisso?
Claro. Têm novos curadores que se calhar não estavam aqui há 4 anos. Há uma nova geração a fazer a diferença e que querem chegar ao presente e querem acompanhar a agenda e os currículos dos outros museus internacionais. Acho que há uma reconfiguração de poder e conhecimento de pessoas e artistas que têm acesso a novas plataformas e querem novas narrativas nestes espaços.

O público também está cada vez mais exigente?
Sim, acho que o público é muito mais vanguardista. As estruturas e os museus são como velhos dinossauros. Estão lá muito tempo e dizem: não, nós precisamos de manter este currículo e esta agenda. Mas o público está mais do que pronto para receber novos trabalhos e novos artistas, com novas biografias e com novas visões e perspectivas. Estes novos curadores apercebem-se dessa urgência e dessa importância e isso tem muito valor.

E o que vais mostrar no MAAT?
Intitulámos esta exposição de Secrets to Tell. É sobre uma série de temas sociais e políticos que se revelam nas nossas biografias e que se tornaram segredos, coisas que não podemos contar, que não podemos visualizar. E a instalação principal é o Desire Project, um dos projectos principais da Bienal de São Paulo. É uma instalação de vídeo contada em três actos. Tive como grande inspiração uma identidade religiosa e política que é a escrava Anastácia, uma imagem de uma senhora que foi escravizada e obrigada a usar uma máscara na boca para não poder falar e incutir o medo. É uma imagem que conheço da minha infância e que teve sempre muito presente. É sobre o que podemos falar e o que é que acontece se nós não tivermos esta máscara na boca, o que é que falamos, o que é tem de ser ouvido. Eu queria fazer essa passagem do passado para o presente, trabalhar com esta intemporalidade que tem muito a ver com os temas da pós-colonialidade, com o género, a sexualidade. Estamos no presente mas estamos sempre a ser confrontados com estruturas do passado que não nos deixam falar, verbalizar e visualizar certas coisas. Quis trabalhar apenas com imagem, o texto como imagem, para tornar a mensagem proeminente.

Depois há a música de Moses Leo, com quem trabalho em colaboração. Ele compôs a música até que a música se tornasse quase orgânica. Isso para mim foi muito importante porque a música teve e tem um papel político muito importante na diáspora africana. Foi, e é, tantas vezes uma forma de narrativa, de falar e de ocupar espaços que muitas das vezes não podiam ser penetrados. É algo de metafísico que não pode ser filtrado, que ultrapassa espaços. E era exactamente isso que eu queria trabalhar. Depois há aqui uma reflexão/making of desta instalação. É uma conversa no Maxim Gorki Theatre, em Berlim, onde trabalho há muitos anos. Há ainda uma outra peça que é Plantation Memories, baseado num livro que escrevi em 2008 e que lancei num festival inetrnacional de literatura e que de repente ficou muito conhecido e esgotou logo depois de ser lançado. Já vai na 5.ª edição mas não existe em Portugal. No Brasil, já querem traduzir. Aqui, lembro-me de ter contactado na altura uma grande editora portuguesa. Disseram-me que não estavam interessados. É provável agora que apareçam. Lá está, temos imensa dificuldade em chegar ao presente. É assim que vamos ficando para trás. Com discursos do passado.

E depois há a exposição na Galeria Avenida da Índia.
Sim, e apesar de serem peças diferentes estão em diálogo. É como se começasse com The Most Beautiful Language e depois Secrets to Tell. É um caminho que se pode fazer. Ambas as exposições abrem no mesmo dia.

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