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É preciso tê-los no sítio? Alexandra Prado Coelho, Constança Cordeiro e Marlene Vieira respondem antes de Mulheres com Tomates no Second Home

Escrito por
Catarina Moura
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Se o mundo da gastronomia – como todas as indústrias que fazem parte deste mundo – é uma paisagem masculina, é também cada vez menos sexista. E ainda assim vale a pena pensar e discutir o assunto. É o que vai acontecer esta quinta-feira, às 18.00, no Second Home do Mercado da Ribeira: Mulheres com Tomates vai ser uma conversa com sete mulheres da área da gastronomia e alimentação para perceber porque são uma excepção.

Falámos com três delas para conhecer as suas visões sobre o próprio trabalho e chegar a conclusões: é preciso ter tomates ou não são necessárias associações à anatomia masculina?

Alexandra Prado Coelho - Jornalista de Alimentação

Alexandra Prado Coelho, jornalista do Público
Fotografia: Joana Freitas

Que papel tem o jornalismo gastronómico neste momento que a comida está a viver?

A minha visão é mais ampla do que a gastronomia só, é mais a alimentação – áreas ligadas à gastronomia que cada vez mais os chefs estão também a trazer para o debate e que são tudo o que está por trás do restaurante, como os produtores, as questões de sustentabilidade, de saúde. O jornalismo gastronómico é essencial para as coisas poderem desenvolver-se como estão a desenvolver-se. É essencial que se fale sobre elas, que se discuta, que se partilhe o conhecimento. Cito sempre uma coisa que li uma vez – tinha a ver com a historia da revolução gastronómica em França e o aparecimento dos primeiros restaurantes. Eles diziam que as coisas começaram a mudar não porque as pessoas comiam mais do que antes (não se consegue comer muito mais do que as três ou quatro refeições por dia) mas porque as pessoas falavam e escreviam sobre o assunto. Quando começas a abrir o debate, quando as coisas passam do mero "existe este restaurante que serve isto" e podem falar sobre sustentabilidade, a forma como nos alimentamos... um chef pode trazer um produto diferente e de repente recuperar uma região só por causa disso. Isso tem de sair de dentro do restaurante, mesmo para aquelas pessoas que não conseguem ir àquele restaurante.

Provavelmente a maioria das pessoas que te lê não tem acesso aos restaurantes de que falas. É um jornalismo que causa necessariamente a acção de ir a um restaurante?

É verdade. Estive a falar sobre isso com o Toni Massanés [crítico e investigador]: até que ponto é que estas coisas são para uma elite que tem dinheiro e vai a estes restaurantes? Ou há, pelo contrário, uma espécie de democratização destas ideias que são discutidas numa esfera a que muitos não têm acesso? O que ele dizia – e eu concordo – é que elas vão gradualmente chegando a outros restaurantes mais baratos. Os espaços como aqueles que os chefs têm no Time Out Market é um exemplo, mas não é só isso. Um chef destes que faz um trabalho super exclusivo mas que depois aparece na televisão, é falado nos jornais, vai a congressos ou apresentações públicas, de repente influencia outros que se calhar têm um restaurante mais acessível e que começam a pensar 'se ele usa três tipos de batata, ou um vegetal qualquer que afinal nem é assim tão caro, por que é que não vou fazer também?'. A circulação de ideias permitem a democratização destas coisas.

Tu entrevistas muitos chefs, produtores, sommeliers, críticos, enólogos, investigadores... Dás-te conta muitas vezes de que estás entre homens?

Não, tenho uma grande dificuldade em pensar assim. Tenho dificuldade em dividir as coisas entre homens e mulheres. Há pessoas com todos os perfis, personalidades, maneiras de fazer as coisas. Não tenho muito aquela ideia de que as mulheres trazem uma visão muito particular, muito diferente às coisas. É muito interessante que as mulheres estejam presentes, que façam aquilo que querem fazer, em todas as áreas em que querem fazer. Claro que quando a gente olha para os chefs, às vezes isso salta à vista – há muitos homens com muito mais visibilidade. Temos é de tentar perguntar porquê. Eu não tenho uma resposta acabada sobre isso. Uma das coisas que eu gostava de discutir é se isto acontece porque os homens não deixam ou se acontece porque há mulheres que optam por não querer estar nas cozinhas. Quer queiramos, quer não, a história da maternidade tem de ser tida em conta – dizer que é tudo igual é complicado. É complicado pressionarmos as mulheres a fazerem tudo da mesma maneira que os homens. É preciso perceber que há aqui umas particularidades que têm de ser tidas em conta. É preciso não forçar a ideia de que ser chef, ter poder e visibilidade é o que todos nós queremos – não é.

O ambiente é menos sexista, as mulheres é que não querem chegar-se à frente?

Sim, das pessoas com quem falei para me preparar para esta conversa [Mulheres com Tomates], o ambiente é menos sexista e há muitas mulheres a trabalhar nas cozinhas, em cargos com menos visibilidade e em alguns casos essa visibilidade é uma coisa que elas não têm por opção. Não querem chegar a este modelo de chef mediático e de estrelas Michelin e de tudo o que isso implica. Temos de ver cada caso e não achar que esse tem de ser o caminho para toda a gente, e que quem não segue esse caminho está a ser pouco ambicioso. Mas acho realmente importante discutir-se isto abertamente. Para as que querem é importante que tenham condições e que não haja discriminação – e isso acho que ainda há em alguns casos. Os próprios clientes quando dizem que querem conhecer o chef, muitas vezes ficam surpreendidos se for uma mulher.

Como é que as mulheres saíram a determinado momento das cozinhas?

Aquele modelo da tasca com o homem na sala e a mulher na cozinha é a coisa mais comum para todos nós. Houve uma fase em que a ideia das mulheres na cozinha era completamente banal, havia imensas mulheres cozinheiras, chefs de cozinha, à frente dos seus restaurantes – uma geração mais antiga. Foi quando os chefs começaram a ter esta visibilidade toda e a serem mediáticos desta maneira é que as mulheres perderam visibilidade. Porque é que as mulheres perderam visibilidade? Foi a questão da competição pelas estrelas que as afastou porque não querem entrar nesse campeonato?

Não sei se isso é uma pergunta que esteja a ser feita e para que tenhamos uma resposta para já: como é que um espaço que cultural e historicamente é tão feminino, se tornou uma coisa masculina?

Não conheço nada de muito aprofundado sobre isso e acho que é importante perceber.

Constança Cordeiro - Bartender

Constança Cordeiro, bartender do futuro Toca da Raposa
Joana Freitas

O que é a Toca da Raposa e a Raposa Silvestre?

Vai ser um bar em que vamos vender cocktails, mas especialmente um espaço para te sentires bem, em que pensas que o teu dia melhorou porque vieste à Toca da Raposa. Ambiente cool, descontraído, para conhecer pessoas interessantes, onde vou trabalhar só com produtos frescos portugueses. A Raposa Silvestre sou eu, é o meu nome profissional.

É possível trabalhar só com produtos frescos portugueses?

É facílimo. Estou agora a viver no Alentejo e no jantar do Lobo e a Raposa [aconteceu dia 8 de Novembro] só vou usar ingredientes que apanhei no Alentejo – louro, musgo, casca de eucalipto, marmelos, citrinos que ainda estão verdes mas que já têm sabores e são interessantes usar.

Como é que esses ingredientes vão entrar no copo?

Eu não faço os destilados de raiz, faço infusões, macerações, aromatizo os destilados. E faço fermentados: por exemplo fiz um vinho de amora que é uma brincadeira, sabe a vinho tinto e é fermentado de amora, de ameixa e uma infusão de whisky commadeira queimada. Hei-de ter uma máquina para poder fazer redestilações.

Há muita gente a fazer isto?

Aqui em Portugal não há, na cozinha já se vê muito, especialmente para reduzirem o desperdício. Em Londres sim, no Peg + Patriot [onde trabalhava] fazíamos 85 por cento do que usávamos.

Há muitas mulheres no mundo da cocktelaria?

Já começa a haver, não há é muitas boas. O problema reside no favorecimento das mulheres por serem mulheres – a ideia de que a mulher gira atrás do bar vende mais. Há muitas mulheres em bares não especializados porque são mulheres, em bons bares não se vê muito. Acho que se está a começar a combater essa imagem da miúda gira bartender com decote, mas acontece muito estarem em painéis de jurados por serem mulheres – “nós não somos machistas vêem? Temos uma mulher”. Quando chegava a finais de concursos pensava “será que estou aqui porque sou mesmo boa ou porque têm de ter uma mulher?”. É uma linha ténue.

Como é que se combate isso?

Quando eu era gerente de bar, a minha chefe disse-me “Constança, vamos contratar uma mulher” e eu disse “Não, vamos contratar uma pessoa que tenha qualificações, vamos contratar a melhor pessoa para este trabalho, se for uma mulher, óptimo”. Eu combato desta forma.

Por causa da história da mulher com um decote atrás do balcão, achas mais difícil reconhecerem a qualidade, verem para além do decote?

Acho. Infelizmente a mulher tem de provar mais. Eu sou assim porque não gosto de falhar – é checklist atrás de checklist, é provas de plano para se falar, é planos para se tudo falhar – mas a provação é maior. É triste. No dia em que se deixar de falar nisto é que chegámos a algum sítio. Aqui ainda estamos a começar a ir no bom caminho.

Há uma perspectiva feminina sobre os cocktails?

Há quem defenda que as mulheres têm cérebro diferente e que têm mais sensibilidade, sabem falar melhor com as pessoas e por isso o serviço é melhor. O melhor serviço que eu tive na minha vida foi por homens, há mulheres que não têm tacto nenhum. Não concordo com nada disto. As mulheres que eu conheço que são excelentes profissionais da minha área não têm papas na língua – não é aquele perfil sensível que se imagina.

Não há um traço distintivo.

Organização, são mais organizadas. Igualmente criativas... É engraçado pensar que os Cristianos Ronaldos da minha área são a Monica Berg e o Alex Kratena, que são uma casal. São os dois igualmente bons e se não soubesses que um era homem e outro mulher e descrevêssemos cada perfil, a personalidade, diríamos que o Alex era a mulher – tem mais toque para conversar.

Marlene Vieira - Chef 

Marlene Vieira, chef do Panorâmico
Fotografia: Joana Freitas

Como é que é possível a mulher estar tradicionalmente tão ligada à cozinha, mas a um nível gastronómico haver poucas chefs?

Há mulheres na cozinha. Eu acho é que elas gostam de estar na cozinha e quando se é chef deixa-se de estar na cozinha. Aquilo que acho é que as mulheres querem cozinhar, não querem ter outro tipo de responsabilidades.

Mas, pela sua experiência, isso é uma característica das mulheres?

Acho que as mulheres querem fazer bem o seu trabalho e a maior parte não quer cargos de chefia.

Quando querem, há alguma resistência?

Claro que sim – aí partimos para outro campo. Há resistência de alguns cozinheiros, os ordenados não são os mesmos, há muitos obstáculos. As poucas mulheres que há enfrentam alguns desafios, mas também estão dispostas a isso.

O facto de haver poucas mulheres chefs tem a ver com o facto de não quererem passar por esses obstáculos?

Não, acho que simplesmente não querem gerir equipas.

Esses muitos obstáculos de que fala estão no dia-a-dia, no local de trabalho?

Cada vez menos, até há bem pouco tempo havia mais essas dificuldades. Hoje as gerações já são preparadas, a geração a seguir a mim já não faz tanta diferença entre mulheres e homens. As mulheres a seguir à minha geração  entre os 37 e os 45 – cada vez menos vão ter esses obstáculos. Mas eu acho que não é por aí, as que querem chegar lá, chegam e ponto final – com ou sem dificuldades. Acho é que simplesmente não querem.

Nestas gerações há mais mulheres a quererem ser chefs?

Sim, há uma atitude diferente – a chefia cada vez menos se vê como a pessoa que está lá em cima, vê-se como a pessoa que está ao nosso lado com um pouco mais de responsabilidades. Acho que as mulheres vão aderir a isso, mas não tenho a certeza, até porque não há gerações a seguir à minha – há a Ana Moura, mas que neste momento não está a exercer.

Sente alguma responsabilidade no incentivo de outras mulheres?

Não, não é isso que me move, apesar de fazer questão de ter mulheres na cozinha. Eu gostava que houvesse mais mulheres chefs, mas cada um tem de fazer aquilo que sente que tem de fazer, porque há uma pressão para que as mulheres sejam chefs. Esta questão de toda a gente querer saber porque é que há tão poucas mulheres na cozinha cria uma pressão e isso não vai fazer com que haja mais ou menos mulheres chefs. Isto tem a ver com a paixão na cozinha, porque quando se chega a chef a parte da cozinha fica um bocadinho para trás e muitas mulheres não querem abdicar disso. Já não acho que seja por uma questão de preconceito como há uns anos atrás, em que a mulher nem sonhava em ser chef, não lhe passava pela cabeça assumir um cargo de responsabilidade.

Há alguns nomes a que devamos ficar atentos?

Há muitas mulheres a aparecer nas cozinhas, mas ainda não têm experiência – os homens são capazes de se aventurarem e com dois ou três anos de experiência já acham que são capazes de ser chefs. As mulheres acho que não têm essa confiança ainda. Elas sentem que têm de ganhar mais confiança para assumir um cargo de chefia. Mas vem aí uma geração que ainda está nas escolas. Têm uma forma de estar diferente e o ambiente nas cozinhas já não é o mesmo que era há uns anos.

 

Second Home, Mercado da Ribeira. Quinta-feira, 9 de Novembro, 18.00.

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