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ENTREVISTA: No 'Fear The Walking Dead' a compaixão é letal

Renata Lima Lobo
Escrito por
Renata Lima Lobo
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A continuação da terceira temporada de Fear The Walking Dead estreia-se segunda no AMC com um duplo episódio. A Time Out Lisboa foi a Madrid falar com Rubén Blades e Daniel Sherman, que interpretam Daniel Salazar e Troy Otto. E sobreviveu para contar.

 

Temos de falar disto. Há uma cena na terceira temporada em que um relâmpago atinge a cabeça de um zombie que avança para Salazar. Ninguém sabe a origem do vírus, até pode ser um acto de Deus. E Salazar é um homem religioso...

Rubén Blades (RB): Ele não é bem religioso. Na primeira temporada, Ophelia está a rezar num altar e o que está o Salazar a fazer? A olhar para as contas. Mas quando li esta cena pensei: “Uau, um relâmpago?”

Daniel Sherman (DS): Sim, tipo, "A sério?"

RB: Mas porque não? Se compras a premissa de alguém morrer e continuar vivo... Pela primeira vez em muito tempo o Salazar reza. E depois isto acontece.

Milagre ou sorte?

RB: O relâmpago atingiu o zombie porque ele era muito alto [risos]. Se um relâmpago caísse num dia de sol seria mais estranho.

E neste momento da história, Daniel Salazar e Troy Otto são os vilões?

RB: O Salazar está a viver o seu segundo apocalipse, já tem uma ideia do que é o terror. Mas a sua motivação agora é encontrar a filha, que não sabe se está viva.

DS: O Troy não tem um propósito como o Salazar, nem sabe o que é estar numa situação destas. Vejo os dois personagens como o oposto um do outro.

O apocalipse acordou os fantasmas de Salazar e provavelmente vai acabar com os fantasmas de Troy.

DS: Acho que o Troy está a tentar perceber quem é. E a chegada dos Clarks tem ajudado. Ele passou tanto tempo sozinho que agora ser forçado a lidar com pessoas, fazer compromissos, ter empatia e todas estas coisas que ele nunca teve de sentir...

Ambos são soldados. Acreditam que há menos probabilidades de os vossos personagens morrerem?

RB: Não. Porque não sabemos quem vai morrer, é um facto. As pessoas acham que nós sabemos. Lembro-me de toda a conversa à volta do The Walking Dead sobre quem vai morrer. Eu não sei o que vai acontecer de um episódio para o outro. Por isso descubro coisas chocantes, não há garantias.

Mas os dois têm calcanhares de Aquiles...

RB: O meu é a Ophelia [a filha]. Fora isso, o Salazar faz o que for preciso. Mas com a Ophelia ele tem um buraco moral.

DS: O calcanhar de Aquiles é sempre sobre compaixão e amor. Isso não funciona num apocalipse. Se criares laços podes não sobreviver muito tempo. E Troy está a criar esses laços.

Mas achas que o Troy se preocupa realmente com a família e com a comunidade ou está só a tentar provar alguma coisa?

DS: Está a aprender. Muitas coisas são novas para ele e está a desenvolver. É como se estivesse a viver uma espécie de adolescência.

RB: A forma como esta série está escrita confronta os espectadores com problemas deste tipo. O calcanhar de Aquiles é gostar de alguém. Ao ponto de acharem que nada mudou no mundo. O que não é racional. Os seres humanos foram, na verdade, treinados para gostarem uns dos outros. A compaixão é uma circunstância relativamente nova. Começa com Constantino. Não havia compaixão no início. Se vires a diferença entre o Velho e o Novo Testamento, o Velho Testamento era olho por olho, dente por dente. E depois Deus teve este filho e as coisas acalmaram. Em que dás a outra face e de repente tudo muda. Mas como estamos treinados é difícil livrarmo-nos da compaixão. Mas isso pode desaparecer, porque não é natural.

DS: E há muito pouca compaixão entre os outros animais se estiveres a falar em sobrevivência egoísta. Não há espaço para esse tipo de coisas.

Há uma cena onde a Madison diz-te que és o único que pode salvar o rancho. Achas que o Troy acredita mesmo nisso?

DS: O que acho realmente interessante no argumento é que achas que a Madison está lá a brincar com a cabeça do Troy. E tentar manipulá-lo de alguma forma. Mas eu acho que ele sabe que está a ser manipulado. Ele não é um pateta que pense “Ah, esta mulher adora-me”.

Ele está a alinhar no jogo da Madison?

DS: Está porque gosta de fazer isso. Só alinhar o jogo é maravilhoso. Ele é esperto demais para ser manipulado. Há algo muito interessante no argumento que é “Eu adoro ser manipulado e vou permiti-lo, porque isto é uma relação para mim”.

E é uma espécie de figura maternal.

DS: Certo. Ela diz que ele deve mandar no rancho, mas ele sabe que a Madison é que quer mandar no rancho. Ele não é um tolo.

O irmão do Troy tem mais compaixão em relação aos outros.

DS: Sim, mas será que isso funciona?

Rubén, o Salazar está só à procura da filha ou também à procura de redenção?

RB: Ele já tentou encontrar redenção antes quando fugiu de El Salvador com a mulher e a filha. Então torna-se um barbeiro em Los Angeles, a sua forma de dizer que quer viver uma vida normal. Mas agora tudo o que há de horrível nele funciona [a seu favor].

Não se passa o mesmo com o Troy?

DS: Estes dois acabam por ser o espelho um do outro.

E há muita política envolvida na série. Ruben, tu que és um homem da política, qual é a tua opinião sobre isto? Cada comunidade tem as suas regras e crenças. Vemos supremacistas brancos, nativos americanos e até um sistema de distribuição de água tomado por um grupo.

RB: Acho que o apocalipse não suspende a capacidade das pessoas de não serem solidárias umas com as outras. Apenas exacerba a questão. Mas antes as coisas podiam ser discutidas. Agora as pessoas defendem-se baseando-se numa crença. É uma questão de manter as coisas estreitas e vedadas e quem se sente da mesma forma vai unir-se numa causa que os une numa altura em que tudo está em pedaços. Agora é isto que somos. Os nativo-americanos estão juntos, os supremacistas brancos estão juntos. As únicas pessoas que não estão juntas são os latinos. Estão só em família ou sozinhos a tentar sobreviver.

Se o apocalipse não tivesse acontecido, o Salazar continuaria a ser barbeiro?

RB: A cortar cabelo, a fazer de conta... E pobre daquele que tentasse sair sem pagar.

Seria fixe se a arma do Salazar fosse uma navalha.

RB: Sim, um Sweeney Todd de Los Angeles.

Por outro lado, o que teria acontecido a Troy?

DS: O rancho é uma ideia interessante. E existe mesmo. Pessoas que têm ranchos vivem as suas vidas à volta desta noção de que o mundo anda atrás deles. Isolam-se numa comunidade. Se não tivesse acontecido o apocalipse, acho que o irmão do Troy continuaria a ser advogado. Provavelmente o Troy ficaria mais isolado e a viver nesta área remota do Arizona. O que é interessante nesta comunidade isolacionista é de repente ter sido forçada a confrontar as suas morais e ética. Sem isso eles são auto-sustentáveis.

Que tipo de sobreviventes vocês seriam na vida real? Revêem-se em algum dos personagens?

DS: Não sei. Já viajei muito sozinho, estive em situações perigosas. A natureza humana é um jogo, nunca sabes como vais reagir se a tua vida estiver em perigo o tempo todo. É um regresso aos primórdios, quando os humanos tinham uma existência nómada. Já me aconteceu algumas vezes e posso ser um absoluto cobarde. Outras gosto de me surpreender. Mas principalmente acho que andaria sempre assustado de morte.

RB: Trabalhei com prisioneiros, porque sou advogado. Gosto desse lado mais activo da profissão, não de fazer teses sobre lei comparativa do sistema bancário e coisas do género. Por isso no terceiro ano do curso comecei trabalhar para uma prisão. No quarto e quinto ano entrevistava pessoas nas prisões. Havia uma colónia penal numa ilha do Pacífico chamada Coiba [Panamá]. E havia uma ditadura na altura, os militares não estavam muito contentes com a minha presença. Eu vivia lá, não era fácil entrar nem sair. E vivia noutro mundo, tinha de ter muito cuidado. Eu não tinha mais medo dos prisioneiros do que tinha da polícia. Todos os dias não sabia o que podia a acontecer. Desde verificares o que estás a comer a evitares olhar para alguém da forma errada. O que o Daniel diz é verdade: precisas de ter uma espécie de experiência. Eu venho de uma classe operária, percebo algumas regras. Não tocas na cara das pessoas, sabes quando afastar o olhar, coisas que podes fazer para acalmar uma situação. Sabes lidar com isso, mas não sei como sobreviveria às emoções. Cortar com a empatia, a compaixão, a solidariedade. Como é que fazes isso sem cair numa depressão? Não somos animais.

O Salazar e o Troy vão encontrar-se brevemente pela primeira vez?

DS: Vamos ver.

RB: Esta terceira temporada tem sido uma experiência fantástica.

AMC. Seg 22.10 (estreia T3B)

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