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Necrópole Romana
©DRNecrópole Romana da Calçado do Lavra

Os 15 grandes achados arqueológicos da última década em Lisboa

Uma visita guiada pelas maravilhas arqueológicas desenterradas ao longo de dez anos: navios, muralhas, necrópoles, mosaicos e objectos raros.

Escrito por
Beatriz Silva Pinto
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A reabilitação urbana tem impulsionado descobertas debaixo de terra, mas a comunicação dos achados ao grande público continua a meio gás. Porquê? “Os arqueólogos têm um grande defeito: falam arqueologuês”, resume Maria Catarina Coelho, arqueóloga e directora do departamento dos Bens Culturais da Direção Geral do Património Cultural – “Às vezes, é muito difícil fazermo-nos entender ao outro, que é apenas um simples curioso.” Mas a legislação, adianta, tem feito um esforço nesse sentido: “O regulamento de trabalhos arqueológicos que saiu em 2014 diz que uma das obrigações do director científico de uma escavação é dizer quais são os planos de divulgação pública que tem dos seus trabalhos. Um desses planos até pode ser abrir a escavação a uma visita em fase de obra.” E já se sabe que a receptividade do público é, geralmente, muito boa – como se comprovou na obra do Campo das Cebolas, que os lisboetas puderam visitar uma vez por semana.

Mas nem sempre é fácil, quando se trata de uma empreitada privada. Muitas vezes, os arqueólogos ficam sujeitos à vontade do cliente, que prefere o silêncio perante os achados. Os cemitérios debaixo de condomínios ou empreendimentos turísticos são a combinação menos favorita, explica Miguel Lago, da Era-Arqueologia: “Ainda não houve capacidade de dar uma efectiva dimensão pública aos trabalhos arqueológicos que são feitos na cidade. E, no limite, é isso que dá sentido ao nosso trabalho.”

Pela mão de vários arqueólogos, a Time Out fez uma viagem no tempo e encontrou navios e muralhas, acampamentos pré-históricos e necrópoles romanas, mosaicos raros e potes das calhandreiras. Conheça as os mais importantes achados arqueológicos desenterrados nos últimos dez anos, em Lisboa. 

Esta cidade é um achado

1. Cinco mil anos enterrados em palácios

Acampamento do Neolítico antigo no Palácio dos Lumiares, Palácio Ludovice e Rua dos Mouros

O Palácio Ludovice foi desenhado por João Frederico Ludovice – o arquitecto alemão que projectou o Palácio Nacional de Mafra – como sua luxuosa residência. Mas, bem antes dele, há mais de cinco mil anos, o local tinha já sido escolhido por uma população do Neolítico antigo para pousar as trouxas. Atrás de si, deixaram lareiras, fragmentos de artefactos de pedra lascada, pequenas valas e carvões encontrados por diversas equipas de arqueólogos em várias localizações, como no Palácio dos Lumiares e na Rua dos Mouros. “É quase um nascimento, são os primeiros momentos de aparecimento de uma cidade”, explica Miguel Lago, da Era-Arqueologia: “O Neolítico é o momento em que as populações se começam a sedentarizar. De alguma forma estas são as primeiras populações que se começam a fixar naquilo que hoje é Lisboa.”

Escavado em: 2009–2019

Banco de Portugal muralhado
©Arlindo Camacho

2. Banco de Portugal muralhado

Muralha de D. Dinis na Sede do Banco de Portugal 

É um dos poucos achados arqueológicos dos últimos anos que pode ser visto ao vivo e a cores: a muralha que D. Dinis mandou erguer no final do século XIII, para proteger a população dos ataques vindos do Tejo – e anterior à Cerca Fernandina. A estrutura foi usada apenas ao longo de 80 anos (depois, serviu de apoio a outros edifícios), mas o Terramoto de Lisboa danificou-a e escondeu-a durante dois séculos e meio. Em 2010, escavações arqueológicas no âmbito da remodelação da sede do Banco de Portugal trouxeram um troço de 41,5 metros de comprimento à 
luz do dia, que hoje pode ser visitado no Museu do Dinheiro –acompanhado de música medieval, animações 3D, filmes e, claro, umas quantas ossadas.

Escavado em: 2010

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Os navios da EDP
©DR

3. Os navios da EDP

Embarcações entre os séculos XVII e XVIII
na sede da EDP

Há meia dúzia de anos, em plena Avenida 24 de Julho, emergiram duas grandes embarcações de transição do século XVII para o século XVIII. Não foram os primeiros navios encontrados na frente ribeirinha, até porque já se sabe que aquela 
foi, outrora, uma zona privilegiada para a construção, reparação 
de navios e restante actividade portuária. Mas estes suscitaram uma curiosidade especial – estavam demasiado próximos da costa
 para resultarem de naufrágios e demasiado distantes para terem sido abandonados. Depois de uma pista lançada por uma investigadora, e de muito vasculharem as notícias, os arqueólogos suspeitam agora que os navios encontrados na actual sede 
da EDP terão sido apanhados numa terrível tempestade que, nos anos vinte do século XVIII, arremessou inúmeras embarcações contra a costa de Lisboa. O que hoje é certo é que, no local em que se encontravam, a sua derradeira função foi a de fonte de matéria-prima para construção naval.

Escavado em: 2012

Ajuda pré-histórica
©DR

4. Ajuda pré-histórica

Povoado pré-histórico da Idade do Cobre na Travessa das Dores e no Rio Seco

Se costuma passear-se pela Ajuda, saiba que é muito provável que esteja a caminhar sobre a “casa” dos seus “primos” distantes de há cinco mil anos. Não se conhecendo ainda os seus limites, é hoje absolutamente claro que naquela zona existiu uma grande povoação, ou várias povoações, durante a pré-história recente. “São os vestígios do Calcolítico mais bem preservados e com esta dimensão dentro da actual fronteira de Lisboa”, explica Nuno Neto, arqueólogo da Neoépica.

Escavações na Travessa das Dores e no Rio Seco colocaram a descoberto várias fossas/silos, conjuntos de conchas e ossos de animais, uma grande quantidade de objectos em cerâmica e em pedra lascada e polida e, ainda, uma parede robusta, eventualmente uma antiga muralha que defendia os primeiros moradores da Ajuda em tempos de conflito.

Escavado em: 2013-2018

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História romana atirada pela borda fora
©DR

5. História romana atirada pela borda fora

Fundeadouro romano entre os séculos I a.C. e V na Praça D. Luís I

Não é todos os dias que se desenterra meio milénio de História num só local. Mas foi isso que aconteceu aquando da construção de um parque de estacionamento subterrâneo
na frente ribeirinha. Debaixo
 de uma enorme estrutura de madeira, construída nos inícios do século XVIII e utilizada como estaleiro naval, foi encontrada uma quantidade imensa de restos de cerâmica romana, do século I a.C. até ao século V, entre os quais meia centena de ânforas (que serviriam para exportar garum, o preparado de peixe produzido em tanques na actual Rua Augusta ou em Belém) e cerâmicas importadas de Espanha e de Itália. Ao longo de cinco séculos era ali que os maiores navios romanos estacionavam, para que as mercadorias fossem passadas para embarcações mais pequenas que as transportariam até à costa.

“À época do período romano, aquilo era rio e nós encontrámos vestígios relacionados com mercadorias que caíam ou eram atiradas à água”, recorda Miguel Lago, da Era-Arqueologia. Vestígios que provavelmente teriam sido destruídos, não fosse a estrutura de madeira que depois foi assente sobre eles e os protegeu do maremoto de 1775 e da implantação do Aterro da Boavista no século XIX. Entre os achados estava ainda uma grande peça, com cerca de 8,5 metros de comprimento, que mais tarde se concluiu ser parte que terá navegado no Atlântico – a primeira madeira de navio inequivocamente romana em Lisboa. Inaugurado em 2014, o parque de estacionamento da Praça D. Luís I tem integrados no seu interior vários elementos provenientes destes trabalhos arqueológicos.

Escavado em: 2013

A muralha fernandina 
e uma torre inédita
©DR

6. A muralha fernandina 
e uma torre inédita

Hotel Corpo Santo

Se espreitar pelas janelas do piso térreo do Hotel Corpo Santo, na Rua do Arsenal, consegue ver 
um troço da Cerca Fernandina, construída entre 1373 e 1375 junto ao rio. São 32 metros de muralha em excelente estado
 de conservação e, ainda, o que sobra da chamada Torre de João Bretão, com a sua inusitada planta quinada que não tem paralelo na cidade de Lisboa, explica Maria Catarina Coelho, da DGPC: “Até ao momento não se sabia que existia na muralha fernandina uma torre pentagonal. Presumem os investigadores que lá estiveram que a torre funcionaria também como talha-mar.”

Escavado em: 2013

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A História da cidade cabe num hotel
©DR

7. A História da cidade cabe num hotel

Achados desde o Neolítico antigo até à actualidade no Hotel Eurostars Museum

Esta é a opinião mais consensual entre os arqueólogos com quem 
a Time Out falou: os achados 
nos antigos Armazéns Sommer ilustram de forma única a história da cidade de Lisboa desde a sua fundação aos dias de hoje, com um registo de uma sequência ocupacional contínua desde, pelo menos, a Idade do Ferro até à época Contemporânea. Lá, foi encontrado aquele que foi considerado “um dos achados da década” pela National Geographic: uma estela funerária escrita em fenício, que é uma 
das manifestações de escrita em fenício mais antiga da Europa Ocidental. Hoje, tem direito a lugar de destaque no circuito expositivo que pode ser visitado por hóspedes ou curiosos no Hotel Eurostars Museum. Há ainda vestígios de um dos enterramentos mais antigos conhecidos na cidade, do Neolítico antigo, e um impressionante mosaico único em Portugal,
com um grau de preservação elevadíssimo, em que figura Vénus a descalçar a sandália, mito antigo da cultura romana. Em suma, este é, aos olhos dos arqueólogos, 
um caso exemplar de como
 um projecto de arqueologia e reabilitação urbana devem ser conjugados.


Escavado em: 2014-2015

Um pobre cemitério islâmico
©DR

8. Um pobre cemitério islâmico

Necrópole islâmica de Alfama na Calçadinha do Tijolo, no Largo de Santa Marinha e no Largo do Sequeira


Debaixo de vários pontos de Alfama, têm sido desenterrados vários elementos da necrópole islâmica oriental, datada entre os séculos XI e XIII – e cujo paradeiro era desconhecido até 2014. A descoberta de novos esqueletos no ano passado, conta a arqueóloga Vanessa Filipe, trouxe uma
 nova noção da dimensão deste cemitério de gente humilde, proveniente de uma zona muito pobre – algo descoberto através de análises aos dentes e ao cálcio dos ossos, que desvendaram as dietas alimentares daqueles antigos habitantes de Alfama.


Escavado em: 2014-2018

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Os esqueletos romanos
 do Solar dos Presuntos
DR

9. Os esqueletos romanos
 do Solar dos Presuntos

Necrópole romana entre os séculos III e IV na Rua das Portas de Santo Antão, na Rua de Santa Marta e na Calçada do Lavra


Esta necrópole viu, pela primeira vez, a luz do dia numas escavações na Rua das Portas de Santo Antão, mas ganhou fama quando cerca de 60 esqueletos emergiram durante obras no restaurante Solar dos Presuntos. Taças, potes, bilhas, jarros, anéis, moedas e um compasso romano – um dos mais antigos conhecido em território português – foram alguns dos achados deste cemitério que se descobriu ser mais amplo do que se calculava. Também em Lisboa, os romanos enterravam os mortos ao longo das estradas de acesso à cidade. Esta partia para norte de Olisipo –
 da Rua das Portas de Santo Antão, seguindo pela Rua de Santa Marta até a Rua de São Sebastião da Pedreira.

Escavado em: 2016

Os navios do Campo das Cebolas
©DR

10. Os navios do Campo das Cebolas

Várias embarcações do século XIX no Campo das Cebolas

Quatro anos depois de terem sido descobertos os dois navios seiscentistas na Avenida 24 
de Julho, oito embarcações do século XIX foram encontradas no Campo das Cebolas, onde agora está um parque de estacionamento subterrâneo. Com dimensões reduzidas, a maior parte destes barcos 
terá servido para transportar mercadorias – alimentos e 
cortiça – ao longo do estuário do Tejo. Das oito embarcações, duas ficaram no exacto sítio em que foram encontradas. As outras 
seis foram levadas para longe
 dos olhos do público. Tal como aconteceu com as restantes 60 toneladas de materiais recolhidos, entre os quais se encontram cachimbos holandeses, cerâmicas espanholas, vidros italianos, porcelana chinesa, peças em marfim africano ou cerâmica romana. Actualmente, no parque de estacionamento, o que é possível ver é um bom exemplo da construção portuária da época pombalina – um paredão de cais da segunda metade do século XVIII.

Escavado em: 2016-2017

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A fábrica metalúrgica que salvou um cais e um estaleiro
©DR

11. A fábrica metalúrgica que salvou um cais e um estaleiro

Cais e estaleiro naval do século XVIII no Boqueirão do Duro

Entre o Largo do Conde Barão e a Rua D. Luís I, na obra de requalificação de um edifício que outrora foi uma das mais antigas fábricas metalúrgicas
 da cidade de Lisboa – inserido naquele que foi o primeiro bairro industrial de Lisboa, no tempo da Revolução Industrial – foi desenterrada mais uma página de história da zona ribeirinha da cidade. Debaixo do piso 
térreo da fábrica, os arqueólogos encontraram vestígios de um
 cais de madeira com mais de 
cem metros de comprimento,
 um estaleiro naval, troncos de madeira para exportação com 
15 metros de comprimento (que iriam ser usados na construção
 de navios) e, ainda, uma zona 
de armazenamento de peças de barcos. Entre tudo isto surgiu também uma impressionante âncora, uma pequena embarcação e diversos materiais do século XVII e XVIII, que ficaram aterrados pela construção da fábrica.


Escavado em: 2016

Cristãos, judeus e muçulmanos sob a mesma terra
©DR

12. Cristãos, judeus e muçulmanos sob a mesma terra

Necrópoles da Idade Média com sepulturas de três ritos diferentes na Rua dos Lagares

“O que está debaixo dos nossos pés pode ser uma lição para aspectos que são muito relevantes para a nossa contemporaneidade e este local é um deles. Lisboa é uma cidade habitada por diferentes culturas que sempre coexistiram.” Quem o assegura é Mafalda Capela, da Era-Arqueologia, quando conversa com a Time Out sobre os mais recentes achados na Rua dos Lagares. Aquele lugar foi inicialmente usado como espaço de necrópole cristã ou judaica, tornando-se depois numa área de despejo de resíduos industriais das várias olarias que ali funcionavam. Mais tarde, o cemitério volta a dominar o propósito do local,
mas, desta vez, associado ao culto islâmico. Foram identificadas cerca de cem sepulturas de três ritos diferentes e, apesar de o estudo ainda não estar concluído, suspeita-se que alguns dos indivíduos encontrados sejam africanos. “Provavelmente
temos lá alguns dos mais antigos africanos que vieram na sequência das viagens de descobertas dos portugueses, para servirem como escravos”, explica Miguel Lago, da Era-Arqueologia

Escavado em: 2016

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13. Olisipo periférico

Lagar romano na Rua de Santa Marta

Aos olhos de Maria Catarina Coelho, da DGCP, este achado do qual ainda pouco se falou é dos mais relevantes dos últimos tempos. Mas porquê? Porque trabalhos de diagnóstico arqueológico a que um futuro hotel daquela rua foi condicionado revelaram estruturas romanas relativamente bem conservadas de uma unidade de produção e armazenagem de azeite ou vinho dos séculos I e II. “É um vestígio da actividade produtiva da cidade romana, mas que lhe é exterior,
está nos arrabaldes de Lisboa. E é notável porque lança alguma luz na compreensão da periferia da cidade romana e não da urbe propriamente dita”, argumenta a directora do departamento dos Bens Culturais. A importância da descoberta levou a que o promotor da obra alterasse o projecto e incluísse uma área museológica na cave do hotel.

Escavado em: 2016-2019

Comércio ultramarino: de missangas a pederneiras
©DR

14. Comércio ultramarino: de missangas a pederneiras

Armazém do século XVIII na Rua Nova do Carvalho

Abandonado no dia do Terramoto de 1755 com
 as mercadorias que havia recebido ou com as quais iria abastecer os barcos aportados nas imediações, este armazém foi aterrado e escondido dos lisboetas até a Cota 80-86 tê-lo encontrado, acidentalmente, aquando de uma escavação prévia à instalação de um ecoponto subterrâneo. “Para colocarmos os ecopontos, tínhamos de destruir o muro
que limitava o compartimento. 
E enquanto o destruíamos, começamos a ouvir ‘tlin-tlin- tlin’. Eram sacas e sacas de pederneiras [peças que dão a ignição a espingardas]”, relata
a arqueóloga Vanessa Filipe. Encontraram botões, cachimbos anéis, fivelas de sapatos e milhares de missangas de 40 tipos diferentes. Se tivessem escavado mais, suspeita Vanessa, teriam encontrado as espingardas abastecidas pelas pedras de sílex que tilintaram muro abaixo.

Escavado em: 2017

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Os escravos do Rossio
©Duarte Drago

15. Os escravos do Rossio

Casa do Rossio com prováveis testemunhos da presença de escravos na Praça D. Pedro IV


Numa casa do Rossio aterrada no pós-terramoto, apareceram umas panelas peculiares, feitas à mão através de uma técnica que, em Portugal, era só usada na pré-história. “Os únicos indivíduos que tinham essa cultura, essa forma de fazer a cerâmica, eram os escravos”, conta José Pedro Henriques, arqueólogo da Cota 80-86.

Análises clínicas revelam que nenhuma destas peças é feita em Portugal e a “tentação” dos arqueólogos é assumir que estas chegaram do Brasil, pela mão de escravos africanos. Foram também encontrados penicos, produzidos em Lisboa, outrora transportados pelas calhandreiras, escravas negras que, numa cidade sem rede de esgotos, iam despejar no Tejo os penicos cheios de excrementos das famílias nobres.


Escavado em: 2017

Lisboa subterrânea

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