Depois de conquistar o prémio Un Certain Regard, em Cannes, o filme A Vida Invisível, de Karim Aïnouz (Madame Satã), era o candidato brasileiro ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro (mas não chegou a entrar na pré-lista). Carol Duarte, de 27 anos, uma das protagonistas, esteve em Lisboa antes da estreia em Portugal e conta que se surpreendeu por descobrir “que as coisas não mudaram assim tanto desde essa altura até 2020”. Essa altura era o Rio de Janeiro da década de 50 do século passado, a época em que se passa A Vida Invisível e na qual se faz o retrato de duas irmãs cariocas.
Como descreveria a sua personagem, a Eurídice?
É uma menina da década de 50, filha de pais portugueses imigrantes no Rio de Janeiro, que tem o sonho de ser pianista. Ela tem uma irmã, o grande amor da vida dela, que vai embora e passa a vida toda a tentar achá-la. Casa com o Antenor [Gregorio Duvivier], um homem muito médio, e os seus sonhos começam a ficar para trás por conta desse casamento.
Já tocava piano antes do filme?
O engraçado é que não toco nenhum instrumento. Não sabia onde ficavam as notas musicais no piano. Foi um trabalho muito difícil, mas tive a sorte de ter uma professora incrível, que também é portuguesa, e que foi um ponto de conhecimento da cultura portuguesa.
O que aprenderam mais para se prepararem para essa época?
A gente teve uma preparação longa de um mês, um mês e meio. Aprendemos a bordar, por exemplo, no set de filmagem. Demora-se muito a gravar e isso para o actor pode ser um pouco cruel, vamos ficando sem energia. Também tivemos aulas de etiqueta, o que foi meio cómico.
É verdade que não podia falar com a outra protagonista, Julia Stockler, durante as filmagens?
É verdade. Quando estávamos mais avançadas na dramaturgia a gente não podia nem se falar nem se encontrar. Por orientação do director, Karim [Aïnouz], não podíamos interagir com a equipa nem usar celular. Essa regra tinha a ver com a concentração, ele dizia que dispersava energia e foco no filme.
Falaram com pessoas que viveram nessa década. Algum testemunho que a tivesse marcado?
Foi uma surpresa não muito boa descobrir que as coisas não mudaram assim tanto desde essa altura até 2020. A gente mergulhou um pouco no Rio da década de 50 e conversou com uma senhora que mora na Tijuca há muitos anos, também imigrante. Tinha curiosidade de lhe perguntar sobre o aborto naquela época e sobre a primeira noite da relação sexual dela com o marido ou com outra pessoa. Quando a gente chegou no apartamento, ficámos o tempo todo com o marido ao lado.
A controlar.
Aquilo para mim já era uma análise da personagem, esse marido que não saía. Fiz uma pergunta sobre aborto, ela respondeu que isso não existia na época. Vi que estava ali um pouco da Eurídice, que vai sendo silenciada o tempo todo. O calar dessas mulheres diz muito. E quando falei com essa senhora, consegui reconhecer várias pessoas ao meu redor – e com a minha idade [27 anos]. Isso foi uma coisa bem espantosa para mim.
Por isso diz que há coisas que continuam iguais.
É, é esse o tema principal do filme, a invisibilidade dessas mulheres, uma violência mais surda, um homem que te vai castrando nos desejos – e disso há muito na nossa sociedade. Não digo só no Brasil e em Portugal, mas no mundo inteiro. Existe uma discrepância absurda entre salários de homens e mulheres. No meu país, quando houve uma presidenta ‘impeachada’, os xingamentos que ela levou não são os mesmos xingamentos que um presidente que também foi ‘impeachado’ na década de 90 levou.
Acha que seria diferente da Eurídice se tivesse nascido nos anos 50?
Uma menina fez-me essa pergunta na exibição do filme no Brasil. Não sei quanto teria sido diferente. Acho que não faltou coragem ou absoluta paixão pelo piano [à Eurídice]. Não faltou nada. Não sei se na década de 50 seria diferente dessas mulheres. Essa sociedade patriarcal é muito enraizada e muito difícil de combater.