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©Joana Linda

Entrevista a João Canijo: “A peregrinação a Fátima a pé é uma das coisas mais portuguesas que há”

João Canijo gosta dos seus filmes bem chegadinhos ao real. Em 'Fátima', o tema é uma peregrinação de 11 mulheres, sempre a andar desde Trás-os-Montes até ao santuário. A Time Out falou com o realizador sobre esta odisseia na estrada (e na fé)

Escrito por
Eurico de Barros
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É conhecido pelo trabalho preparatório exaustivo que faz com as suas actrizes antes de rodar os filmes. O que é que lhes infligiu desta vez?

Foram a Fátima a pé!

Quantas vezes?

Duas. Fizeram uma peregrinação real, todas elas, sendo que algumas a fizeram em toda a sua extensão. Desde Bragança. E depois fizemos uma peregrinação falsa, mais soft, de preparação para o filme. Falsa porque embora as condições fossem as reais, ou seja, elas andavam e dormiam e comiam nas condições que se vê no filme, com aquela caravana e com aquela carrinha, mas iam todas juntas, não iam num grupo de peregrinos reais. Iam só elas e não andava tanto como na realidade, andavam metade do que andariam na realidade. Mas também bastante intensa do ponto de vista da relação entre elas. Aí foi mais árduo.

A filmagem foi então uma espécie de destilação dessas duas peregrinações?

Não foi uma espécie, foi mesmo uma destilação.

Tudo em nome desse efeito máximo de real de que tanto gosta.

E acho que neste filme, mais do que nunca.

Foram mais longe do que tinham ido em qualquer filme anterior?

Era essa a ideia. E isso consegui sem alguma dúvida.

Quando é que começou a pensar neste filme?

Em 2011. Só que depois houve a crise. O filme teve o dinheiro do apoio em 2011, mas durante a crise ficou bloqueado. De maneira que deu-se, por causa da crise, o feliz acaso da estreia coincidir com o centenário e com a vinda do Papa. Mas foi absoluta coincidência. O filme devia ter saído há dois anos. Entretanto fizemos outras coisas, claro.

Nunca foi sua ideia fazer um filme sobre o fenómeno de Fátima, que o questionasse?

Não, nada. A ideia foi centrar-me na peregrinação a Fátima a pé, que é uma das coisas mais portuguesas que há. E digo isto comparando com as peregrinações a Santiago de Compostela, que não têm nada a ver com esta. Mas tudo começou com a ideia de filmar as relações de grupo, num grupo de mulheres, em situação de tensão extrema.  Pensei em várias coisas e de repente veio-me a epifania: evidentemente, é uma peregrinação a Fátima a pé. Depois disso apareceu outra coisa tão importante como essa: a relação com a necessidade de fé. E isso tornou-se tão importante quanto as relações entre as mulheres, até porque são paradoxais.

O filme segue um grupo que está junto durante algum tempo em condições bastante duras, com todas as tensões, dissensões e fricções que isso causa, bem como as aproxinações e os afastamentos entre as pessoas que isso causa. Mas o facto de ser uma ida a Fátima, intensifica o que se passa no grupo? E se fosse uma excursão normal, ou um campismo selvagem, seria tão diferente?

Seria absolutamente diferente, por duas razões. Pelo extremo cansaço que potencia os conflitos ou o contrário, os afectos. E porque há a componente da necessidade de fé. E o existirem conflitos durante uma peregrinação feita em nome da fé, agudiza os conflitos, porque eles tornam-se deslocados, condenáveis. E dissonantes. 

Fala-se muito pouco de religião durante a peregrinação. Seria inverosímil se isso acontecesse?

Não há peregrinações iguais. Na minha experiência, das que eu conheço, eram todas bastante parecidas com esta, embora houvesse grandes diferenças entre a peregrinação de Bragança e a de Vila Flor. Mas tirando o ritual de rezar o terço e de cantar alguns cânticos, fala-se muito pouco de religião. O que não quer dizer que não haja peregrinações onde se fale muito de religião. Mas não estas que eu conheci.

Como é que foi o seu encontro com este fenómeno das peregrinações a pé a Fátima?

Fui eu próprio em peregrinação. Só que foi mais suave. Foram só dois dias e fiz quarenta e tal quilómetros num dia e trinta e tal no outro. Foi quando eu julgava que o filme ia ser feito, em 2011.

Portanto, não há por trás disto experiências e histórias de família, ou de pessoas amigas?

Não, não. Fiz a minha própria peregrinação. E foi por a ter feito que percebi que elas tinham obrigatoriamente que fazer a delas. Senão nunca conseguiam representar e interpretar uma peregrinação. Sem saber o que é que é.

As actrizes fizeram um “estágio” em Trás-os-Montes, um laboratório, para trabalhar as personagens. Como é que correu?

A partir do momento em que se escolhe a peregrinação mais longa, que é a que vem de Bragança, que é em Trás-os-Montes, elas para serem minimamente transmontanas tinham que lá estar. Juntou-se o útil ao agradável porque aproveitámos isso para fazer o laboratório. Foi o que deu o argumento final, embora ele seja só um guia. Há um argumento, só que é só como um mote para a improvisação, como no jazz.  No filme é quase tudo improvisado, embora elas respeitem tudo o que tinha que se passar, e quando, em cada cena.

Há momentos que são de conflito real, ou estamos sempre no domínio da encenação e da representação?

Confunde-se. Confundem-se elas com elas. Sendo que elas são elas (risos). Essa foi a ideia inicial de juntar um grupo de mulheres que estivessem que ficar juntas 24 horas sobre 24 horas.

Como é que elas reagiram quando lhes explicou como era o filme, e o que lhes exigia?

Reagiram todas bem. Depois, as reacções durante a peregrinação é que foram díspares… E as soluções encontradas para as resolver também foram díspares.

Quantas câmaras foram usadas?

Tudo o que é a andar é uma.

Há também imagens de telemóvel

O telemóvel é da personagem da Céu. Não é irrealista porque toda a gente em Trás-os-Montes tem smartphones. Nos acampamentos são duas câmaras. Mas não há montagem das duas. Ou é uma, ou é outra.

Foi uma filmagem “leve”?

Sim, mas mesmo assim, foi mais pesada do que eu queria. Mas na série de não, aí foi como numa série de televisão, e portanto, nos acampamentos, as duas câmaras são usadas em montagem. As versões para cinema e para televisão são completamente diferentes neste aspecto. E a série é bastante maior. A série tem quase cinco horas e a versão longa do filme tem mais 50 minutos. São 5 episódios, para passar de segunda a sexta-feira, com 50 e tal minutos cada um.

No filme, as personagens falam todas como de onde vêm, coisa rara no cinema português, onde quase toda a gente, onde quer que esteja, fala como em Lisboa. Os sotaques estão muito bons.

Podiam estar melhor. Mas está bom, sim. O vernáculo está perfeito, isso aí não falha. Em relação aos sotaques, precisavam de mais um mesito, para contagiar mais.

Durante as filmagens, houve algum episódio insólito na estrada?

Correu tudo bem. Houve sempre interacção com as pessoas, que também há no filme. Nunca houve problemas, pelo contrário. Houve sempre adesão. E tínhamos figurantes. Há verdadeiros e há falsos. Sempre, de preferência, pessoas que já tinham ido a Fátima a pé.

Como foi depois o trabalho de montar tudo para três versões?

Tínhamos tudo já planeado. Demorámos mais tempo do que no Sangue do Meu Sangue. Começámos a montar em Junho e acabámos no fim de Setembro. Tínhamos muitas horas e fomos depurando. Ainda chegámos a fazer uma projecção de quatro horas e 10 minutos. Depois cortámos e fizemos uma de três horas e 48 minutos, a seguir chegámos á versão final da versão longa, e depois cortámos radicalmente para a versão curta, o que foi difícil, mas teve que ser.

O que tem a versão longa a mais?

Tem as cenas cómicas todas e tem mais cenas de acampamento, que para mim são as melhores, foi onde eu consegui fazer exactamente aquilo que queria. A andar, acho que não tem mais. Esta versão curta tem, acho, menos densidade que a longa. Porque os conflitos, que são os mesmos que existem na curta, são mais densos porque têm antecedentes. E tem outras cenas sem conflito, o que também lhes dá mais densidade.

Qual é a sua opinião sobre o fenómeno de Fátima?

A minha opinião é absolutamente irrelevante. Continua a ser a opinião que eu tive quando fiz a minha peregrinação. Mas o que é isto, que sofrimento é este, e porquê? E continuo sem resposta, porque não sou crente. E o filme não dá nenhuma resposta. Nem era para dar, nem pretende ser crítico. Nem apologético, também.

Como classificaria este filme? É uma ficção? Uma ficção documental? Um documentário ficcionado?

Eu gostaria que Fátima fosse confundido com um documentário. Era a ideia inicial. E foi tudo feito nesse sentido. Gosto muito quando me perguntam se elas são todas actrizes. E lá fora perguntam-me mais do que cá em Portugal, claro.

E a seguir? Há mais alguma barreira a ser ultrapassada, ou já chegou ao limite do que queria fazer em termos de encenação do real, de trabalho sobre o real?

Não sei se irei fazer uma encenação do real nos termos deste filme. Vai ser  em termos da veracidade das personagens, Isso será levado mais longe do que neste Fátima. Elas são como são e elas são o que são. E depois há um desafio que não é um desafio, é uma necessidade minha. Quero fazer um filme como fiz o É o Amor, praticamente sem equipa. E vai ser só com mulheres também.

+ Leia a crítica ao filme Fátima

+ Fátima vista pelo cinema 

Entrevistas Time Out Lisboa

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