Tiago Guedes instalou-se no Ribatejo para filmar A Herdade, uma história muito portuguesa sobre poder, família e apego à terra, que começa antes do 25 de Abril e se resolve em tragédia nos anos 90. A Time Out conversou com o realizador sobre este filme com sabor a western ribatejano.
Impedidos pela pandemia de prosseguir com os projectos que tinham em mãos, Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro fecharam-se numa quinta com três actores – Crista Alfaiate, Carloto Cotta e João Nunes Monteiro – e um punhado de técnicos, para, reproduzindo as condições do confinamento, rodarem, em menos de um mês e com um orçamento diminuto, sem apoios do ICA (o dinheiro foi posto pelos produtores e pela RTP), Diários de Otsoga. Que, tal como o título sugere, é contado de trás para diante. Conversámos com os dois realizadores, na presença da bebé do casal, que quase ia nascendo durante as filmagens.
Diários de Otsoga é uma vítima das circunstâncias – a pandemia – ou um aproveitamento dessas mesmas circunstâncias?
Miguel Gomes – As duas coisas são a mesma. Não tínhamos outra hipótese. Filmámos dois ou três meses depois do primeiro confinamento, e o filme foi o resultado da experiência desse primeiro confinamento, que todos nós fizemos. Os nossos outros projectos eram completamente impossíveis de fazer naquele contexto, e por isso começámos a imaginar que filme é que seria possível fazer num contexto destes. E ele nasceu de uma conversa com a actriz, a Crista Alfaiate. Fomos a casa dela e de um dos técnicos, o Rui Monteiro – que é o namorado dela e é desenhador de luz para teatro –, logo que foi possível, e estávamos a comentar a situação e a queixar-nos da forma como o Ministério da Cultura não estava a fazer absolutamente nada relativamente ao teatro e ao cinema, e surgiu a ideia de fazermos um filme juntos e de inventar uma maneira de, neste tempo, criar o filme possível. Mas com tudo aquilo que é o contrário do que, em termos cinematográficos, esta pandemia produziu, ou seja, aqueles filmes de telemóvel, por Zoom, filmados na sala de estar ou a partir da janela. Decidimos ir para uma casa, fazermos testes, fecharmo-nos lá e improvisar, inventar um filme a partir dessa experiência de vivermos umas semanas juntos.
De onde veio a ideia de inverter a cronologia da história?
Maureen Fazendeiro – Quando fomos filmar já sabíamos que o filme ia ser contado ao contrário e isso teve a ver com a maneira como experienciámos o tempo durante a pandemia. Perdemos as referências habituais, os dias começaram a parecer-se todos uns com os outros, todos iguais, o futuro passou a ser uma coisa muito abstracta. Era preciso uma maneira de transportar isso para o filme e daí veio a ideia de o tempo andar para trás, e de ser um diário, algo muito simples, com os dias a passar – só que ao contrário.
Mas o filme foi rodado na sequência normal?
MF – Sim, foi rodado em ordem cronológica. Porque não sabíamos o que podia acontecer no dia seguinte, já que o filme era escrito a partir das coisas que aconteciam na rodagem. E foi-se construindo à medida que o tempo passava. Nós entrámos na casa com a Mariana Ricardo, a outra argumentista, e escrevemos esse movimento. A primeira semana foi preenchida a percorrer o território da casa, a inspirarmo-nos em situações relacionadas com ela e escrever esse movimento de tempo que podia funcionar para a frente e para trás.
Portanto, havia uma ideia central, uma estrutura, que foi sendo acrescentada à medida que o tempo passava. Não foi tudo improvisado.
MF – Sim, isso mesmo. Na primeira semana trabalhámos muito esse movimento que referi, e sabíamos que íamos trabalhar primeiro a equipa e depois íamos fechar-nos na história dos três actores.
Este filme tem, salvo as devidas e óbvias diferenças, alguns pontos de contacto com Aquele Querido Mês de Agosto. Podemos dizer que Diários de Otsoga é assim como que o lado B de Aquele Querido Mês de Agosto? Ou estou a dizer um disparate?
MG – Não, não estás, apesar de não ser verdade. Ou seja, faz todo o sentido o que estás a dizer, porque Aquele Querido Mês de Agosto tem um registo mais documental inicialmente e depois a realidade e a ficção fundem-se, e aqui sucede o contrário. Têm ambos “Agosto” no título, sendo que no primeiro há uma movimentação constante entre aldeias, e aqui estávamos confinados. Mas essa afirmação tem toda a lógica. Sendo que as coisas no cinema e na vida não são assim tão lógicas. Porquê? Porque só filmámos em Agosto porque havia a questão do nascimento desta criança que está aqui aos berros [choro de bebé] e não podíamos arriscar os últimos meses. Tivemos a ideia em Maio e quando conseguimos filmar já era Agosto. Calhou assim.
Há uma equipa de filmagem em destaque em ambos os filmes.
MG – Exacto, há também a questão de este ser um filme em que aparece a equipa, como Aquele Querido Mês de Agosto. Tem-se falado muito do lado de metacinema do filme – e é verdade, é um filme também sobre o processo de criação, sobre a fabricação de um filme –, sendo que para nós o filme é mais sobre a vida, sobre a nossa vida naquele momento, do que sobre esse processo de fabricação. Que está lá, mas digamos que isso é a história do filme, está lá de uma maneira bastante ficcionada. Por exemplo, o Carloto Cotta não foi um dia fazer surf e furou o confinamento, nem os actores se dirigiram a nós dizendo que estavam perdidos. Mas poderiam tê-lo feito. E eu digo que o filme é mais sobre a vida porque o impulso de o fazer nasce como uma reacção ao isolamento do confinamento.
Ou seja, vocês queriam voltar a ligar-se ao mundo e uns aos outros através do filme?
MG – Sim, queríamos filmar uma espécie de reconexão, voltarmos a estar com técnicos, com actores, estarmos juntos a fazer um filme. A Maureen falou do trabalho sobre o tempo, da nossa alteração da percepção do tempo durante a pandemia, que deu a inversão cronológica, mas isso também teve a ver com questões muito práticas. Introduzir um beijo no filme era algo completamente proibido naquele momento. Havia uma impossibilidade total de cenas de intimidade entre actores. E nós queríamos ter esse beijo e sabíamos que o podíamos filmar no último dia de rodagem, porque então já estaríamos confinados o tempo suficiente para o risco ser muito pequeno. Mas queríamos que essa cena abrisse o filme. Uma das razões porque a cronologia está invertida é porque pensámos: OK, vamos filmar um diário que vai terminar com uma cena de beijo, mas que tem que começar com essa cena de beijo. Portanto, vamos trocar as páginas do diário, começar pela última página, e ir progressivamente para aquilo que sucedeu no dia anterior, e no anterior, e assim sucessivamente, até ao primeiro dia. E sabíamos que ao fazer isso, como o filme segue o processo de fabricação de um filme, íamos abrir o filme para a vida. Esse era também o nosso objectivo, propor um modelo alternativo de confinamento onde o distanciamento social pudesse existir de outra maneira.
Dentro do espaço daquela quinta há outros espaços confinados mais pequenos, caso do borboletário e da rulote, como se fossem caixas dentro de caixas. Isso foi deliberado?
MF – Sabíamos que íamos filmar uma construção, não sabíamos era que tipo de construção era. O borboletário veio do facto de a casa ser cheia de gaiolas, de nós sairmos de meses confinados e entramos numa quinta que tinha exteriores, mas também gaiolas por todo o lado. E pensámos no que podíamos construir que fizesse sentido e que se pudesse integrar nesta quinta. E assim surgiu o borboletário, que é um espaço onde todas as personagens se vão refugiar, isolar, a certo momento. É um refúgio e ao mesmo tempo é uma gaiola. Só que na altura pensámos mais na sua construção do que na interpretação que podia ser feita dele.
MG – Aqui, em vez de algo a ser construído, temos algo a começar a desaparecer. Apesar de estar lá no filme a indicação dos dias que passam, muita gente não liga nenhuma a essa informação que damos, e só descobre que o filme está a andar ao contrário ao sentir que os actores estão no mesmo espaço mas que este está a desaparecer pouco a pouco.
Este é o primeiro filme que ambos fazem em conjunto. Como é que tomaram essa decisão?
MF – Acho que teve a ver com o momento. Não houve muita discussão. O momento era tão especial que tínhamos que encontrar uma maneira especial de o fazer. E teve a ver com essa necessidade de fazermos coisas com os outros. Ela começou logo connosco, com o querermos trabalhar juntos.
Houve mais fricções entre a equipa pelo facto de o filme ter sido rodado em confinamento? Ou isso não aconteceu?
MG – Não, surpreendentemente, não houve muitas fricções. Eu até estava à espera de mais luta da parte da Maureen [risos]. Mas uma particularidade desta rodagem foi haver o risco do nascimento prematuro do bebé, porque a Maureen estava grávida. Ela foi a uma consulta passados seis dias de rodagem e a médica disse-lhe que tinha que parar e que ficar deitada, porque havia o risco de um nascimento prematuro. E isso está no filme. Nós esperámos uns dias para ver o que dava a situação, porque naquele momento a rodagem podia não ter continuado se tivesse havido um agravamento do estado dela, se esse risco do nascimento prematuro tivesse continuado a crescer.
MF – E isso obrigou-nos a reformular o que tínhamos pensado para o filme e a maneira de trabalhar, em conjunto e com a equipa. Porque acabei a ter de trabalhar como quando do confinamento, com Zoom e walkie-talkies, para poder acompanhar a rodagem sem estar presente.
MG – Isso deu ainda origem a uma série de cenas, caso daquela em que eu e a Maureen, os realizadores, saímos da casa para ir fazer uma ecografia e dizemos aos actores que continuem o filme sem nós, com os técnicos. E de facto foi mesmo assim. Aquela cena específica não é da nossa responsabilidade, é da inteira responsabilidade dos actores. Que aliás filmaram mais duas, mas achámos que nos tínhamos que defender e decidimos cortá-las [risos]. É que o filme tinha que ser aberto o suficiente para integrar coisas que iam acontecendo, como o caso do outro actor, o João Nunes Monteiro, que teve uma dor de dentes. Não sabíamos como essa dor de dentes iria evoluir, por isso tratámos de a pôr no filme. E o Carloto Cotta propunha-nos várias cenas por dia. “Hoje vou dar banho aos cães, querem filmar?” OK, vamos filmar. “Hoje vou lavar a carrinha, querem filmar?”. Não, pá, já chega de mangueiradas! [Risos.] E foi assim que tudo se fez.