Levou os últimos 12 anos atrás do sol, alimentando o público com estrofes emprestadas e biografias em recortes visuais. Esta sexta-feira sobe ao palco do Coliseu de Lisboa acompanhado de orquestra e de Orelha Negra mas sozinho na luz. Fomos a Chelas perceber este regresso de Sam The Kid.
Há muita existência a caber numa década. Discos que envelhecem, letras que se renovam, consagrações e amores e perdas. Uma década é uma bitola nem sempre justa; temível se a usarmos para medir uma pausa. Uma década foi o tempo que Samuel Mira esteve afastado do palco em nome próprio, como Sam The Kid. Isso não o abrandou, nem ao laboratório em que mora, serpenteando em colaborações, diluindo-se em projectos, aperfeiçoando a produção e fundando uma plataforma alimentada por todas as partes que lhe fazem parte da vida, a TV Chelas. A relação com os holofotes é quase paradoxal: se por um lado o trabalho dos últimos anos o foi empurrando para o ápex do movimento, por outro, a espera que sucedeu o disco de 2006, Pratica(mente), quase que o canibalizou.
“Sendo assim, a cena sai sem pressões/ sinto o som sem pensar em aceitações”. Em 2018, depois de 12 anos a meia-luz, “Sendo Assim” quebrou-lhe o interregno de assinatura a solo numa faixa que atinge todas as dores pungentes do público de uma só vez. A ausência prolongada, a geração digital, o posicionamento e saúde da mensagem, os valores que ainda o levam ao microfone. Do outro lado estava uma audiência que nada podia fazer senão fechar a boca e absorver, imóvel.
Sentámo-nos em Chelas, perto de casa, na Manuel Teixeira Gomes. O maço de Ventil já não tem lugar à mesa, a presunção nunca o teve. O regresso ao palco foi o tema grande, as expectativas, a vontade de criar uma experiência. Esta sexta-feira interrompe-se uma década de hiato para encher o Coliseu dos Recreios de tudo o que um dia coube num quarto kitsch. É ele, de orquestra, de Orelha Negra, de rimas e batidas e de tudo o que um dia quis ouvir a caber-lhe nas músicas. Sam The Kid está aqui, no activo, por mais décadas que passem. Porque o que interessa “é a maratona, não é o sprint”.
Primeiro concerto em dez anos.
Houve coisas que apareceram pelo caminho, que me levaram a uma ausência. Não foi planeada para ser tão grande. Inicialmente ia jogar o jogo de quando se lança um disco, ou seja, estás dois anos na estrada e paras. Mas depois apareceu Orelha Negra. E obviamente que as mortes do Snake e do GQ contribuíram muito para essa ausência em nome próprio, porque eles faziam parte da cena Sam The Kid. E as poucas vezes que toquei sem eles, senti-me vazio. Não queria isso, quero fazer o que gosto, ter prazer no palco, ser feliz. E ser feliz em palco passa por essa partilha. Agora encontro-a com o Mundo [Segundo], sinto felicidade, química. E para ser sincero, antes disso, os concertos do Pratica(mente) eram um bocado caóticos. Porque eu assim o quis. Mas em retrospectiva não gosto. A cena é, tenho o Barbosa [GQ] e o Snake, dois gajos – que eu não precisava de ter, mas eram importantes –, e além disso tinha a Eliza e o David. Quatro pessoas a dobrar raps. E visualmente quis fugir à norma e disse que queria a sinergia. Também não fui cirúrgico nos timings. Queria o equilíbrio. Há um caos tipo Wu-Tang e havia o contrário, os Saïan Supa Crew, que eram ensaiados ao milímetro. Agora se tivesse que escolher, escolhia os últimos. Isto porque ultimamente estive a ouvir uns mini-discs que tenho lá e se os ouvir numa perspectiva de editar, ‘blhec, não vou editar nada, isto não é nada prazeroso’. E isso pode ir ao encontro do facto de o hip-hop em concertos não ter uma grande fama em áudio. Por isso agora quero fazer algo mais contido nesse aspecto, mais pensado. Para chegar a essa emoção.
Acontece o mesmo com as letras. Envelhecerem mal?
Não sinto vergonha. Claro que escrevo melhor. Aliás, há músicas mais antigas que estou a ensaiar e tenho dificuldade. Uma das razões é a falta de memória muscular, nunca pratiquei, nunca andei de bicicleta com elas, aquilo parece que não é meu. Consigo dizer a delivery no sítio certo mas não estou confortável. Não tenho vergonha, mas a cena é essa. Mau era olhar para trás e pensar que nunca mais faria melhor.
Como é que vês esta espécie de regresso?
Não estou nada preocupado com isso. Estamos a ensaiar devagarinho, as coisas estão a evoluir aos poucos. Ainda estou só com a banda e o maestro manda os midis para ver as ideias por teclado. Claro que depois devem aparecer impasses, mas a cena é que estou bem rodeado de pessoas que me transmitem confiança. Eu também já tive essa experiência com Orelha Negra, já tocámos com orquestra, e inclusive até cantei. Por isso não é super- -estreia mas é, em nome próprio. E de ser um concerto em que ouves a orquestra em todas as faixas, apesar de não ser a toda a hora. O critério é: músicas que gostaria de ouvir com orquestra, e a epifania foi a “Sendo Assim”. Pensei que gostava de a ouvir dessa forma e isso levou-me a pensar ‘e se desse um concerto só de músicas que gostava de tocar com orquestra?’. O ponto de partida não era o espaço, era o conceito.
Consideras que é um passo ambicioso?
Completamente. Eu nunca fiz isto, nunca dei um concerto ‘sozinho’, em nome próprio. Um concerto em que as pessoas pagam bilhete para me ver. Claro que já fiz coisas em que estava no cartaz, mas isto é outra coisa. Aqui é um espectáculo que estás a preparar especificamente para a situação. E eu nunca me senti confortável nesse aspecto, não sei porquê. Se eu fosse uma pessoa que quisesse comunicar bué em palco, fazia-o com o Mundo, mas agradeço que ele faça esse trabalho. Aqui tenho de ser eu. Já o fiz no passado, mas se pudesse abdicar disso, preferia. Isto para dizer que vai ser tudo novo. É o meu público que lá está, vou tentar criar uma cena íntima, isso é o que eu quero propor para este espectáculo. O que pode ser ambicioso, porque não é uma sala pequena, fica no limite. E por razões de memória, de me lembrar dos raps todos. E de tentar passar uma vibe íntima, introspectiva, de emoções. É isso que eu quero fazer. Daí ter falado nos meus áudios. Nunca liguei muito a concertos, não é a minha cena, mas por que é que as pessoas só ficam com a ideia de que foi um bom concerto se estiver tudo lá em cima? A saltar, a fazer mosh, ‘ele disse obrigado em português’. Isso é a noção óbvia de um grande concerto, o caminho mais fácil. A minha cena é uma alternativa. Claro que há músicas de celebração mas eu quero interpretação, quero mais um ‘silêncio vai-se cantar o fado’, e que tu sintas esse momento. Sou eu. Quero que te toque na alma e que saias de lá com um ‘foda-se B, foi uma cena forte, foi especial’. Por isso é que é ambicioso.
Como é que vais gerir a expectativa do público?
Eu não faço ideia daquilo que as pessoas estão à espera. Nem me vou preocupar com isso, mas pelo menos há uma certeza: vou estar lá a rappar. Se vires bem, em termos de defraudar o meu público, com Orelha Negra, estou mais do que habituado. ‘Ei, não cantaram aquela’. Tenho a certeza que não vai acontecer defraudar. O que é que pode defraudar? Não haver mosh? Não cantar a “Solteiro”? Posso já dizer que não vou cantar. Se o meu critério é tocar músicas que gostava de ouvir com orquestra, não é por aí. Não é pelos sucessos, é pela orquestra. Por isso é que até vou tocar coisas que nunca toquei. Vou tocar músicas do Entre(tanto), vou tocar Orelha Negra.
O público pode sentir-se defraudado, ou até não perceber o ponto. Foi o que aconteceu com o Valete?
A reacção ao vídeo é descabida e desproporcional. Ele tem estado a explorar o storytelling. Já é quase um estilo esperado. Tem uma que é a “Mulheres da Minha Vida”, que culmina com o suicídio de um homem. Se quiseres pegar nisso, também podes. Sei que o vídeo faz toda a diferença, é mais impactante, mas a cena é: se quiseres ser polémico e pegar nisso, podes. E a meu ver, em relação à música, até acho bem que não haja opinião [de Valete no seu próprio tema]. O “Roleta Russa” era muito in your face, muito panfletário, e estava tudo ok. E agora, se no fim desta música, ele fizesse um anúncio ‘peço desculpa mas isto não é o que eu aprovo’, já estava tudo bem?