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Tobias Wögerer
©Reinhard WinklerTobias Wögerer

Dez obras clássicas para ouvir à noite

A noite tem sido inesgotável fonte de inspiração para poetas e músicos, como comprova esta escolha, que vai dos séculos XVII ao XX e contempla formações que vão do piano solo à orquestra sinfónica.

Escrito por
José Carlos Fernandes
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A noite pode ser um espaço de tranquilidade e repouso, mas também pode ser turbada por angústias e fantasmas, pode ser embalada por sonhos aprazíveis ou fervilhar de pesadelos tenebrosos, pode ser o momento para conquistar um coração arisco com uma serenata ou para meditar amargamente no fim de uma paixão. De Monteverdi a Szymanowski, passando por Mozart, Schubert, Chopin, Liszt e até por Mahler e a sua sinfonia mais mal-amada (a chave talvez esteja na abundância de dissonâncias e rupturas abruptas, na estranheza que causa a inclusão de uma guitarra e de um bandolim). Eis dez amostras de “música nocturna”.

Recomendado: Schoenberg pela Orquestra Juvenil Gustav Mahler

Dez obras clássicas para ouvir à noite

“Hor Che’l Ciel e la Terra”, de Monteverdi

Ano: 1638

Claudio Monteverdi (1567-1643) tinha 71 anos – uma idade provecta, para o século XVII – quando, em 1638 publicou em Veneza o seu VIII e derradeiro lívro de madrigais (após a sua morte, um editor reuniria alguns inéditos dispersos num Livro IX). O Livro VIII reúne obras compostas num período alargado e divide-se entre “madrigais guerreiros” e “madrigais amorosos”, uma dicotomia replicada dentro do madrigal “Hor Che’l Ciel e la Terra”, também ele dividido entre os sentimentos “amorosos” e “guerreiros”, e que é não só uma das peças mais preciosas do VIII Livro como de toda a História da Música.

Monteverdi recorreu a um soneto de Petrarca, que, embora falecido mais de dois séculos e meio antes, ainda continuava a ser um dos poetas favoritos dos compositores italianos, e a música de Monteverdi molda-se a ele na perfeição. A placidez domina a primeira estrofe, que traça o retrato de uma noite em que todo o movimento e fragor do mundo se suspendem: “Agora que o céu e a terra e o vento se aquietam/ E o sono as aves e as feras doma/ E a noite faz girar o seu carro estrelado/ E no seu leito o mar sem ondas jaz”.

Esta placidez contrasta com a agitação da segunda estrofe: “Velo, penso, ardo e choro, e aquela que me aniquila/ Está sempre perante mim, para minha doce pena/ Guerra é o meu estado, pleno de ira e dor/ E só nela pensando encontro alguma paz”.

[Pela Capella Mediterranea, com as vozes de Céline Scheen, Mariana Flores, Fabián Schofrin, Jaime Caicompai, Andrés Silva, Matteo Bellotto]

“Or Che la Notte”, de Rossi

Ano: meados do século XVII

Convém esclarecer que o autor deste madrigal é o genovês Michelangelo Rossi (1601-1656), já que no século XVII italiano estiveram activos dois outros notáveis músicos com o mesmo nome, ainda que sem relação de parentesco: Luigi e Salomone.

Michelangelo Rossi distinguiu-se como organista e violinista e na composição de música para tecla e madrigais e, em Roma, esteve ao serviço do cardeal Maurizio de Sabóia e do príncipe Taddeo Barberini (sobrinho do papa Urbano VIII) e foi organista na Igreja de San Luigi dei Francesi. Mudou-se depois para a corte de Francesco I d’Este, em Modena, mas regressou a Roma para desempenhar funções de camareiro do papa Inocêncio X.

As duas colecções de madrigais de Rossi que chegaram aos nossos dias foram compostas ao longo de três décadas, pelo que a datação das peças é nebulosa. “Or Che la Notte” recorre a um texto de Girolamo Muzzio, que denota forte influência de Petrarca: “Agora que a noite esconde as cores/ Dos exangues olhos dos mortais/ O céu recolhe-se silenciosamente/ Os ventos cessam e o mar acalma-se/ Nas margens dos rios e na sombra das árvores/ Não mais se escuta o canto das aves/ Tudo é silente e nem um eco/ Responde Às minhas lamentações/ Por todo o lado, os pobres mortais/ Repousam os seus membros e olvidam/ Todos os seus afãs, todas as suas penas/ O mundo está em paz e em paz estão as bestas/ Só eu não consigo que o amor de mim se apiede/ Pois é à noite que tu entras nos meus olhos e no meu coração”.

[Pelo Huelgas Ensemble, com direcção de Paul van Nevel, do álbum La Poesia Cromatica (Deutsche Harmonia Mundi)]

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Concerto para flauta RV 439 La Notte, de Vivaldi

Ano: c. 1728

Não se sabe ao certo quando foi composto o Concerto de câmara RV 104, que Vivaldi viria depois a converter no Concerto para flauta RV 439, que faz parte da colecção op.10, publicada c.1728 em Amesterdão.

Vivaldi abre aqui uma excepção à forma tripartida – rápido-lento-rápido – usual nos seus concertos e escolhe um formato em cinco andamentos, em que o II, intitulado “Fantasmi”, inclui um Presto muito agitado, e o IV, “Il Sonno”, é um Largo quase imóvel.

[Por Marco Brolli (flauta) e Ensemble Imaginarium, em instrumentos de época, com direcção de Enrico Onofri, ao vivo em Ambronay, 2016]

Eine Kleine Nachtmusik K.525, de Mozart

Ano: 1787

No tempo de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), o termo “serenata” confunde-se com o de “divertimento” e designa uma peça de toada graciosa e elegante, destinada a quatro a dez instrumentos (quase sempre de sopro) e cuja finalidade era abrilhantar ocasiões festivas, que, amiúde tinham lugar à noite.

Todas as 13 serenatas compostas por Mozart foram compostas por encomenda para ocasiões específicas, mas desconhece-se a finalidade da mais famosa delas, a n.º 13, conhecida como Eine Kleine Nachtmusik, que tem a particularidade de não recorrer a sopros: destinava-se originalmente a dois violinos, viola e violoncelo (podendo este, opcionalmente, ser reforçado por um contrabaixo). Hoje costuma ser tocada por orquestras de cordas, o que lhe retira alguma graça e transparência.

[I andamento (Allegro), pelo Ivy String Quartet]

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Nacht und Träume D.827, de Schubert

Ano: 1825

Entre as cerca de seis centenas de canções (Lieder) compostas por Franz Schubert (1797-1828) abundam as que têm a noite como tema. Uma das mais belas é Nacht und Träume D.827, sobre texto de Matthäus von Collin, que, décadas mais tarde, Max Reger arranjaria para voz e orquestra. É uma peça de uma admirável serenidade, em que voz e piano deslizam imperturbavelmente e onde não há princípio nem fim, como se estes quatro minutos fossem uma fracção de uma noite que se prolonga indefinidamente.

“Noite sagrada, sobre nós desces/ E contigo descem os sonhos/ Como os raios de lua penetram/ No peito silencioso dos homens/ Que escutam, jubilosos, o que lhe contam os sonhos/ E clamam, quando o dia nasce/ ‘Regressa, noite sagrada!/ Sonhos encantadores, voltai!’”.

[Por Matthias Goerne (barítono) e Alexander Schmalcz (piano), do álbum Nacht und Träume (Harmonia Mundi)]

Nocturno op.48 n.º 1, de Chopin

Ano: 1841

Não foi Frédéric Chopin (1810-1849) a inventar o “Nocturno” para piano – o mérito cabe ao irlandês John Field (1782-1837) – mas foi ele que o levou à perfeição e lhe conferiu a fama de que hoje desfruta. Chopin compôs duas dezenas de Nocturnos, todos de qualidade superlativa, pelo que, nesta selecção, em vez do op.48 n.º1 poderia estar outro.

Os Nocturnos não têm uma definição precisa: envolvem quase sempre uma melancólica melodia cantabile que evolui sobre um acompanhamento que faz lembrar uma guitarra (uma alusão às serenatas nocturnas), numa toada quase sempre intimista – ainda que, a meio, o op. 48 n.º 1, atinja momentos de forte dinâmica e grande intensidade emocional.

O op.48 foi dedicado a Laure Duperré, filha de um almirante e uma das alunas favoritas de Chopin.

[Por Valentina Lisitsa]

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La Notte S.516a, de Liszt

Ano: 1864

Das Trois Odes Funébres que Franz Liszt (1811-1886) compôs entre 1860 e 1866 existem 15 versões. A n.º 2, intitulada La Notte, existe em transcrições para orquestra, órgão, violino e piano e piano solo (cada uma delas com um diferente número de catálogo) e é um desenvolvimento de Il Penseroso, uma das peças do II caderno dos Années de Pèlerinage, inspirada numa estátua homónima de Michelangelo. A peça parece ser uma meditação do compositor sobre a própria morte, para a qual a “noite” funciona como metáfora. Na partitura, Liszt deixou a indicação de que pretendia que esta obra fosse tocada nas suas exéquias, o que acabou por não acontecer.

[Por Jenó Jandó (Hungaroton)]

Noite Transfigurada op.4, de Schoenberg

Ano: 1899

“A lua segue-os sob os altaneiros carvalhos/ Nem um fiapo de nuvem vela a radiância do céu nocturno/ Uma voz de mulher diz:/ ‘Carrego dentro de mim uma criança e não é tua/ Caminho contigo em pecado/ Cometi uma grave ofensa contra mim mesma’”. A mulher prossegue na sua confissão e recriminação, enquanto caminha pelo bosque dentro, lamentando as escolhas que fez, mas o homem que caminha ao seu lado tem uma reacção inesperada. Diz-lhe “Não deixes que a criança que concebeste seja um peso para a tua alma/ Olha quão deslumbrante é o brilho do mundo/ O fulgor derrama-se sobre tudo o que nos rodeia/ Viajas comigo por um mar gélido,/ Mas há o resplendor de um calor interior/ De mim para ti, de ti para mim”.

A música de Noite Transfigurada (Verklärte Nacht) segue o trajecto emocional do poema homónimo de Richard Dehmel: sombria e angustiada a princípio, neutra enquanto o homem reflecte sobre as palavras da companheira, luminosa quando o homem afirma o poder redentor do amor e aceita aquela criança que não é sua.

Arnold Schoenberg (1874-1951) compôs Noite Transfigurada no início da carreira – foi, na verdade, a sua estreia na música orquestral. É possível que a escolha do poema de Dehmel como inspiração esteja associado à paixão que o compositor então nutria por Mathilde von Zemlinsky, irmã do seu professor de contraponto, Alexander von Zemlinsky, e com quem acabaria por casar em 1901, dois anos após ter concluído esta obra.

Noite Transfigurada foi concebida para sexteto de cordas e foi sob esta forma que estreou em 1902, mas é mais ouvida no arranjo para orquestra de cordas que o próprio compositor realizou em 1917 (e reviu em 1943). Por esta altura, a música de Schoenberg já se afastara do tardo-romantismo opulento das suas primeiras obras, abraçando a linguagem dodecafónica que concebeu no início da década de 1920 e que influenciou decisivamente o rumo da música do séc. XX

[Pela Orquestra Filarmónica da Radio France, dirigida por Pierre Boulez, ao vivo em 2009]

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Sinfonia n.º 7, de Mahler

Ano: 1905

Mahler deu aos andamentos II e IV da sua Sinfonia n.º 7 os títulos de Nachtmusik, mas o I andamento também tem um clima nocturno e o IV, um Scherzo, leva por título Schattenhaft, o que, em tradução literal equivale a “como uma sombra”, mas que também tem o significado de “espectral”. Após quatro andamentos passado entre sombras, algumas vagamente inquietantes, outras ameaçadoras, outras grotescas, a sinfonia desemboca num luminoso e triunfal Finale. Enquanto para as suas outras sinfonias Mahler associou os desenvolvimentos musicais a um programa, por vezes bastante detalhado, para a n.º 7 Mahler limitou-se a declarar que representava uma progressão da noite para o dia.

É a sinfonia mais mal-amada de Mahler, talvez por causa da abundância de dissonâncias e rupturas abruptas. Tem a particularidade de fazer intervir, no IV andamento, uma guitarra e um bandolim, instrumentos alheios à tradição sinfónica.

[I parte do II Andamento (Nachtmusik I: Allegro moderato), pela Filarmónica de Viena, dirigida por Leonard Bernstein]

Sinfonia n.º 3 op.27 Canto da Noite, de Szymanowski

Ano: 1916

Embora a Sinfonia n.º 3 do compositor polaco Karol Szymanowski (1882-1937) tenha sido composta na Ucrânia e incorpore influências de Wagner e Scriabin, está impregnada das impressões recolhidas pelo compositor nas viagens que realizou no Norte de África e Próximo Oriente. A sinfonia compõe-se de três andamentos, executados sem intervalo, e requer um solista vocal e um coro, que durante a maior parte do tempo canta sem palavras – no I e III andamentos, Szymanowski recorreu a um poema do místico persa Jalal ud-Din Runi (1207-73), em tradução polaca: “Não adormeças, amigo!/ Se eu dormisse até à alvorada/ Nunca, nunca mais veria esta noite!/ O Leão e Orion, Andrómeda e Mercúrio têm um resplendor de sangue nesta noite!”

[II andamento (Vivace scherzando), pela Filarmónica de Viena, com direcção de Pierre Boulez (Deutsche Grammophon)]

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Desde Mozart até aos nossos dias, o concerto para piano é um dos géneros mais apreciados, ao equilibrar a imponência e colorido orquestral com o brilho e virtuosismo do solista, e muitos foram os compositores que nele investiram a sua melhor inspiração.

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