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John Coltrane
© Francis WolffJohn Coltrane

Dez versões clássicas de “Body and Soul”

A bolsa de valores e o jazz são dois mundo com pouco em comum, mas o jazz deve a um ex-corretor um dos standards mais populares de sempre: “Body and Soul”

Escrito por
José Carlos Fernandes
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É uma situação clássica: o rapaz, inteligente e talentoso, é apaixonado por música, mas o pai quer que ele siga uma carreira “séria” e empurra-o para a corretagem na bolsa de valores. John Waldo Green (1908-1989) acabou por rebelar-se, com o apoio da esposa, contra a imposição paterna e se nunca ficaremos a saber o que perdeu o mercado de valores mobiliários com esta mudança de campo, a música – e o jazz, em particular – ganhou vários standards imortais, como “Body and Soul”, “Out of Nowhere” e “I Cover the Waterfront”.

Johnny Green – como se tornou conhecido no meio musical – compôs o seu primeiro êxito, “Coquette”, aos 20 anos e trabalhou como arranjador para orquestras de dança e acompanhador de vários cantores, entre os quais estava a britânica Gertrude Lawrence, para quem compôs, em 1930 (com 22 anos) “Body and Soul”, com letra de Edward Heyman, Robert Sour e Frank Eyton. Reza a lenda que Green se esqueceu, num táxi, da partitura que acabara de terminar e ele e os seus letristas tiveram de a recriar de memória.

Embora lhe tivesse encomendado a canção, Lawrence nunca chegou a gravá-la, mas não tardou que outros músicos o fizessem. O primeiro entre os jazzmen foi Louis Armstrong, logo no ano em que foi composta, seguido por Benny Goodman (com Teddy Wilson e Gene Krupa), em 1935, e por Chu Berry e Roy Elridge, em 1938, para nomear apenas os mais sonantes. Entre as versões recentes, logrou imensa popularidade e um Grammy, a que foi registada em dueto, em 2011, por um Tony Bennett de voz puída e uma Amy Winehouse toda ela afectação e maneirismos, e que não faz bem nem ao corpo nem à alma.

10 versões clássicas de “Body and Soul”

Coleman Hawkins

Ano: 1939
Álbum: Body and Soul (RCA Bluebird)

Apesar do mérito das incursões de Armstrong, Goodman, Berry & Elridge e Tatum ao longo da década de 30, quem tornou “Body and Soul” numa peça central do repertório jazz foi o saxofonista tenor Coleman Hawkins, numa sessão de 11 de Outubro de 1939, em Nova Iorque, para a RCA Bluebird. A versão de Hawkins tem a particularidade de quase ignorar a melodia e usar a progressão de acordes da peça como base para uma ardente e lírica improvisação, que pode ser vista como prefigurando as abordagens do bebop. Foi com a gravação de Hawkins que “Body and Soul” deixou der “apenas” uma balada e se tornou num veículo improvisacional por excelência – o que faz com que alguns músicos descartem o conteúdo emocional da peça e a vejam apenas como um desafio técnico. Mas Hawkins não tem culpa disso.

Em 1939 ainda não existiam LPs, pelo que quem queira ter esta versão terá de recorrer a uma compilação, como a que acima se indica e que contém registos realizados entre 1939 e 1956.

Billie Holiday

Ano: 1940
Álbum: Lady Day: The Master Takes & Singles (Sony Legacy)

Esta não será das versões mais conseguidas do ponto de vista técnico, mas Holiday sabe como ninguém dar expressão à tristeza e absoluto desamparo da letra: “Os meus dias tornaram-se solitários/ Por ti choro, por ti apenas/ Como é que não percebeste/ Que eu sou tua, de corpo e alma// [...] O que tenho pela frente/ É um futuro tormentoso/ Um Inverno cinzento e frio/ Sem um golpe de magia, o fim será trágico/ Ecoando uma história tantas vezes repetida// A minha vida gira em torno de ti/ De nada sirvo sem ti/ Digo-te com toda a sinceridade/ Sou tua, de corpo e alma”.

O solo de trompete é de Roy Elridge.

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Art Tatum

Ano: 1953
Álbum: Solo Masterpieces vol. 1 (Pablo)

Embora a composição seja uma favorita dos saxofonistas, ninguém gravou tantas versões como o pianista Art Tatum: uma vintena, espalhadas por três décadas de carreira. Esta provém da série de gravações a solo – cerca de 120 faixas, maioritariamente standards –e realizadas para Norman Granz em 1953-56 e nela Tatum aplica os seus talentos desconstrutivos e subversivos e o seu humor imprevisível à composição.

Al Haig

Ano: 1954
Álbum: The Al Haig Trio (Esoteric)

O pianista Al Haig (1922-82) foi um pioneiro do bebop, ao lado de Charlie Parker e Dizzy Gillespie, mas deixou escassos registos em nome próprio e os três álbuns – dois em trio, com Bill Crow (contrabaixo) e Lee Abraams (bateria), e um em quarteto – que gravou em 1954 pouco reconhecimento obtiveram na altura, o que levou a que desaparecesse de circulação durante duas décadas. Este “Body and Soul” mostra quão injusto foi o seu esquecimento.

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Serge Chaloff

Ano: 1955
Álbum: Boston Blow-Up! (Capitol)

O saxofonista barítono Serge Chaloff (1923-1957) foi um dos Four Brothers (os outros eram Al Cohn, Zoot Sims e Herbie Steward) da orquestra de Woody Herman e seria certamente um nome bem mais famoso se não tivesse falecido aos 33 anos, deixando apenas três álbuns em seu nome. Nesta versão de “Body and Soul”, com Herb Pomeroy (trompete), Boots Mussulli (saxofone alto), Ray Santisi (piano), Everett Evans (contrabaixo) e Jimmy Zitano (bateria), Chaloff evidencia o lirismo ardente e majestoso que fez dele um incomparável intérprete de baladas.

Gerry Mulligan & Paul Desmond

Ano: 1957
Álbum: Gerry Mulligan/Paul Desmond Quartet (editado também como Blues in Time) (Verve)

Os superlativos saxofonistas Gerry Mulligan (barítono) e Paul Desmond (alto) tinham tanto em comum que é pena que só tenham gravado juntos por duas vezes, em 1957 e 1962. Esta versão provém do primeiro encontro, que contou também com Joe Benjamin (contrabaixo) e Dave Bailey (bateria) e mostra o entendimento telepático entre os dois sopradores.

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Duke Ellington

Ano: 1958
Álbum: The Cosmic Scene (Columbia)

Ao contrário do que o título do álbum pode sugerir, Ellington não se lança aqui em explorações com teclados electrónicos e sonoridades exóticas. The Cosmic Scene, embora seja gravado por uma formação reduzida da orquestra usual (creditada como Duke Ellington’s Spacemen) não se desvia da linha usual dos álbuns de Ellington nesta época; acontece que o Sputnik 1 fora lançado em Outubro de 1957, sete meses antes destas gravações, e a excitação geral com assuntos espaciais era tal, que qualquer título que aludisse a “espaço”, “astronautas” ou “satélites” era uma boa jogada comercial.

“Body and Soul” começa em toada lânguida e sensual, por obra do saxofone tenor de Paul Gonsalves, mas depois ganha uma excitação e vertigem invulgar nas leituras desta composição.

John Coltrane

Ano: 1960
Álbum: Coltrane's Sound (Atlantic) “Body and Soul” foi uma composição que tanto foi abordada por músicos da “velha guarda” como pelos desbravadores de novos caminhos. Em 1960, John Coltrane estava a tornar-se cada vez mais aventureiro, mas não deixou de incluir a composição do seu repertório do seu quarteto, com McCoy Tyner (piano), Steve Davis (contrabaixo, que daria lugar, pouco depois, a Jimmy Garrison) e Elvin Jones (bateria).

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Ella Fitzgerald

Ano: 1962
Álbum: Ella Swings Gently With Nelson (Verve)

O “Nelson” aqui é Nelson Riddle, um dos grandes arranjadores e chefes de orquestra das décadas de 1950 e 1960, que já colaborara com Ella no George & Ira Gershwin Songbook e que, em 1961-62, rubricou uma dupla de álbuns de natureza contrastante, Ella Swings Brightly With Nelson e Ella Swings Gently With Nelson. Claro que este langoroso “Body and Soul” só poderia fazer parte do segundo. Os arranjos são sumptuosos e a interpretação de Ella é uma verdadeira masterclass de canto, cada sílaba judiciosamente ponderada, cada inspiração e expiração perfeitamente controladas, cada inflexão exemplarmente gerida.

Freddie Hubbard

Ano: 1962
Álbum: Here to Stay (Blue Note)

O trompetista Freddie Hubbard e o saxofonista Wayne Shorter oferecem-nos uma leitura plena de lirismo, na companhia de Cedar Walton (piano), Reggie Workman (contrabaixo) e Philly Joe Jones (bateria). No ano seguinte, em The Body and the Soul (Impulse!), Hubbard voltaria a gravar “Body and Soul”, com os mesmos músicos e uma orquestra de jazzmen de primeira água arranjada e dirigida por Shorter, mas não logrando uma versão tão memorável como esta.

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