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Lorenz Hart e Richard Rodgers
©DRLorenz Hart (à esquerda) e Richard Rodgers, c. 1938

Dez versões de “Bewitched, Bothered and Bewildered”

Uma canção cantada do ponto de vista de uma mulher a quem a paixão por um homem deixa num lamentável estado de desatino.

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Será uma canção como “Bewitched, Bothered and Bewildered” aceitável no nosso tempo em que alastra uma noção exorbitante do que é a “correcção política”?

Depois de, em 2017, Chico Buarque ter sido queimado na fogueira das redes sociais por causa do suposto conteúdo machista de “Tua Cantiga”, ficámos todos conscientes de que os esquadrões do “politicamente correcto” andam por aí, prontos a linchar compositores suspeitos de visões sexistas, homofóbicas ou racistas do mundo. Não tardará que a turba justiceira comece a escrutinar o passado e aplique a sua distorcida grelha de análise aos grandes clássicos do American Songbook. E nesse afã inquisitorial, é provável que vejam em “Bewitched, Bothered and Bewildered”, do musical Pal Joey (1940), com música de Richard Rodgers e letra de Lorenz Hart, um flagrante atentado à dignidade feminina.

“Os homens não são novidade para mim/ E até me tenho saído bastante bem/ Mas esse meia-leca/ Deixou-me a bater mal// Estou mais uma vez em ebulição/ Mais uma vez cativada/ Uma criança que choraminga e sorri como uma tola/ Enfeitiçada, perturbada e desnorteada, assim estou// Não conseguia adormecer nem por nada/ E veio o amor e disse-me para não dormir/ Enfeitiçada, perturbada e desnorteada, assim estou// Perdi o meu coração, mas que importa?/ Ele é frio, é verdade/ Ele é capaz de rir, e eu adoro/ Ainda que ele se ria de mim// Cantarei para ele, todas as Primaveras/ E suspiro pelo dia em que poderei abraçá-lo/ Enfeitiçada, perturbada e desnorteada, assim estou// Ele é um tonto, bem sei/ Mas um tonto pode ter os seus encantos/ Estou apaixonada, e isso nota-se,/ Como um bebé de colo”.

E a canção prossegue com uma descrição do estado apalermado e subserviente – “ultimamente não consigo pregar olho”, “estou como se tivesse outra vez 17 anos” – em que esta mulher madura ficou devido à sua paixão por um homem que, admite ela, está longe de ser perfeito. Não haverá aqui motivos de sobra para que os vigilantes do “politicamente correcto” decretem o banimento da canção, a perseguição de quem ouse cantá-la e a queima da efígie de Rodgers & Hart?

Seria uma conclusão tola, mesmo que as letras das canção devessem ser interpretadas literalmente ou como expressão daquilo que os seus criadores pensam. Para mais, o inefável aparvalhamento causado pelo amor afecta os sexos por igual e acontece apenas que, no enredo de Pal Joey, faz sentido que seja uma personagem feminina a cantá-lo. A prova é que “Bewitched, Bothered and Bewildered” foi apropriada por intérpretes masculinos e também cantada em dueto masculino/feminino. No musical, a canção é cantada pela personagem Vera Simpson, uma mulher casada de meia-idade que se deixa lubdibriar pelos encantos de “Pal” Joey Evans, um dançarino de nightclub manipulador e e com inclinações de Don Juan. Mas a canção surge duas vezes no musical e na segunda vez o embeiçamento de Vera já se desfez: pôs uns patins em Joey (o final mostra-o só, no meio da rua) e a letra da canção mudou drasticamente:

“Finalmente, ganhei juízo/ Os meus olhos vêem-te como realmente és// Não mais ficarei enfeitiçada, perturbada e desnorteada// Muito penei, mas muito aprendi/ E agora que perdeste todo o crédito/ Não mais ficarei enfeitiçada, perturbada e desnorteada// Não comia, fiquei dispéptica/ A vida tornou-se-me impossível/ Agora o meu coração tornou-se anti-séptico/ Desde que partiste// O romance acabou, a tua oportunidade passou/ As formigas que corriam pelas minhas calças foram-se/ Não mais ficarei enfeitiçada, perturbada e desnorteada”.

Esta segunda versão é muito menos conhecida do que a primeira e mesmo os poucos cantores que recorrem a ela apenas costumam empregar alguns dos seus versos.

Dez versões de “Bewitched, Bothered and Bewildered”

Ella Fitzgerald

Ano: 1956
Álbum: The Rodgers & Hart Songbook (Verve)

Nesta versão com orquestra e arranjada por Buddy Bregman, Fitzgerald é dos poucos intérpretes que escolhe cantar na íntegra a parte que diz respeito à desilusão amorosa.

Sarah Vaughan

Ano: 1956
Álbum: Sings Broadway: Great Songs From Hit Shows (Mercury)

Uma versão esplendorosamente dramática com a orquestra de Hal Mooney, por uma voz portentosa no auge das suas capacidades e com a qualidade de som de que a Mercury tinha o exclusivo (quem diria que a gravação tem 61 anos?).

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Frank Sinatra

Ano: 1957
Álbum: The Ultimate Sinatra (Universal)

Esta leitura sumptuosamente lenta, gravada com a orquestra de Nelson Riddle a 13 de Agosto de 1957, não faz parte de nenhum dos excelentes álbuns da dupla Sinatra/Riddle editados nos anos 50 mas pode ser encontrada nalgumas compilações 8como a que acima se indica). Sinatra e Riddle voltariam à canção, com arranjos idênticos, no álbum The Concert Sinatra, registado em Fevereiro de 1963, e Sinatra, já na fase decadente da carreira, gravá-la-ia em dueto com Patti Labelle no álbum Duets II (1994).

Jo Ann Greer

Ano: 1957
Filme: Pal Joey

Nesse mesmo ano de 1957, Sinatra desempenhou o papel de “Pal” Joey Evans na adaptação cinematográfica do musical, dirigida por George Sidney. Na transposição para o écrã, várias canções foram suprimidas e o enredo foi substancialmente alterado – nomeadamente no final, em que Vera (Rita Hayworth) se arrepende de ter posto Joey a andar e lhe pede que case com ele; Joey rejeita-a e encontra Linda (Kim Novak), uma corista que está apaixonada por ele e está disposta a ir com ele até ao fim do mundo. Nas canções, Rita Hayworth foi dobrada por Jo Ann Greer.

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Stan Getz & Oscar Peterson

Ano: 1957
Álbum: Stan Getz & the Oscar Peterson Trio (Verve) “Bewitched, Bothered and Bewildered” é a primeira canção num medley de cinco baladas. O trio de Peterson conta com Herb Ellis (guitarra) e Ray Brown (contrabaixo).

André Previn

Ano: 1957
Álbum: Modern Jazz Performances of Pal Joey (Contemporary)

A colheita de 1957 de “Bewitched, Bothered and Bewildered” foi pródiga, certamente empurrada pela estreia da adaptação cinematográfica do musical. O pianista André Previn foi mais longe, dedicando às canções de Pal Joey todo um álbum, com os seus “pals” Red Mitchell (contrabaixo) e Shelly Manne (bateria). A versão de “Bewitched, Bothered and Bewildered” é um modelo de delicadeza e contenção.

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Julie London

Ano: 1962
Álbum: Sophisticated Lady (Liberty)

Uma leitura sensual e com algo de onírico – talvez seja a que melhor transmite o estado de “enfeitiçamento”. London não tinha a voz de uma Ella Fitzgerald ou de uma Sarah Vaughan e sabia-o bem, mas defendia-se cantando muito próxima do microfone e usando os seus talentos dramáticos – também teve carreira como actriz – para conferir uma atmosfera intimista às suas interpretações.

Lloyd Nolan & Maureen O’Sullivan

Ano: 1986
Filme: Ana e as suas irmãs (Hannah and her sisters)

Um dos momentos mais tocantes de Ana e as suas irmãs, de Woody Allen, ocorre quando, numa reunião familiar por ocasião do Dia de Acção de Graças, o casal Evan (Lloyd Nolan) e Norma (Maureen O’Sullivan), os octogenários pais das irmãs a que o título alude, a cantam ao piano. O longo casamento do par tem sido turbulento, devido a problemas de alcoolismo e a casos extra-conjugais, todavia, a maneira apaixonada como eles cantam a canção mostra que o amor entre eles se mantém vivo e continua a deixá-los “enfeitiçados, perturbados e desnorteados”. Neste contexto, é apropriado – e pungente – que seja cantada desafinada, fora de tempo e com as duas vozes a desencontrarem-se amiúde.

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Brad Mehldau

Ano: 1998
Álbum: The Art of the Trio vol. 3 (Nonesuch)

Um precioso equilíbrio entre modernidade e tradição e um lirismo que nada tem de sentimental, pelo trio do pianista Brad Mehldau com Larry Grenadier (contrabaixo) e Jorge Rossy (bateria).

Rufus Wainwright

Ano: 2006
Filme: The history boys

A versão de Rufus Wainwright para a banda sonora de The history boys, a adaptação cinematográfica, dirigida por Nicholas Hytner, da peça de teatro homónima de Alan Bennett, não altera o sexo da criatura amada, uma vez que no filme serve de comentário ao amor entre dois rapazes e ajusta-se ao cantor, que é assumidamente gay. Entra nesta lista em nome da representatividade do espectro de identidades sexuais a que a canção se aplica, não porque a interpretação de Wainwright tenha algo de meritório – o seu tom afectado e enfadado sugere que não está nem “bewitched” nem “bewildered”, apenas “bothered”.

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