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Música, Guitarrista, Filho da Mãe
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Filho da Mãe: “É difícil distinguir a realidade do seu reflexo”

Em ‘Terra Dormente’, Filho da Mãe junta uma guitarra eléctrica à acústica. Falámos sobre esses dois instrumentos. E sobre dois mundos.

Luís Filipe Rodrigues
Escrito por
Luís Filipe Rodrigues
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Rui Carvalho, o músico que se auto-intitula Filho da Mãe, passou a última década a dedilhar uma guitarra acústica. Mas as suas escolas foram o rock, o punk, o hardcore, e a guitarra eléctrica foi o primeiro instrumento que o ouvimos tocar, em bandas como If Lucy Fell ou I Had Plans. No seu novo disco, Terra Dormente, além da guitarra clássica, voltou a pegar na eléctrica – e, simultaneamente, começou a segurar o mesmo instrumento em Linda Martini. À boleia do Dia Estudante da Culturgest, na terça, 17, falámos sobre os “dois mundos” em que caminhou e gravou nos últimos dois anos.

A primeira coisa que chama a atenção neste disco é a guitarra eléctrica, que era o que tocavas em bandas como os If Lucy Fell. O que te levou a voltar a esse instrumento?
Foi um instrumento que nunca abandonei completamente. Fui sempre tocando guitarra eléctrica. Tenho um disco chamado Tormenta...

Com o Ricardo Martins.
Exacto. Que é todo feito em guitarra eléctrica. Mas é verdade que, para mim, Filho da Mãe era um projecto mais acústico – apesar de usar muitos pedais. Já há muito tempo que podia ter introduzido a guitarra eléctrica, só que fui separando as coisas, por alguma razão.

E porque achaste agora que era altura de introduzir a guitarra eléctrica na equação?
A guitarra eléctrica traz outro tipo de valências. Tem um som diferente, até pela forma como se compatibiliza com os efeitos. Com o tempo, comecei a achar que era uma boa ideia trazê-la para um disco e explorar uma dualidade entre dois instrumentos que sugere uma dualidade também na pessoa. Foi mais para atingir um fim e sugerir certos ambientes.

Que fim era esse? E que ambientes querias sugerir?
A guitarra clássica usei sobretudo como algo mais etéreo, mais idílico. E a guitarra eléctrica para sugerir o outro lado disso, real e mais brutal. Mas muitas vezes elas mudam de planos. Porque o que quis mesmo foi criar uma confusão entre dois planos, entre uma coisa a que chamamos realidade e outra que pode ser o sonho, uma realidade alternativa. Um estado alterado de consciência. A ideia era caminhar entre esses dois mundos, sem nunca se perceber muito bem onde é que estamos. E as duas guitarras ajudaram-me a fazer isso.

Dirias que essa dualidade é o tema, ou pelo menos uma ideia transversal ao disco?
Sim. No vídeo [da canção “A Um Osso”, realizado por Ana Viotti] até explorámos isso através dos reflexos, por exemplo. É difícil distinguir aquilo que é realidade e aquilo que é um reflexo, uma imagem dessa realidade. Isso atravessa o disco. Anda tudo à volta disso.

No final do concerto da Culturgest, em Março, referiste que este disco tinha sido criado durante um período muito emotivo e, subentendia-se, complicado. Isso foi consequência da pandemia e dos confinamentos? O disco é um reflexo dessas realidades?
Não... Quer dizer, eu não posso dizer que não seja. Acho que todos os discos que foram gravados durante estes anos acabaram por ser um bocado o reflexo da altura que vivemos, que foi uma altura muito marcante. Ninguém passou muito bem por isso. Mesmo que possa ter havido um momento de descanso ou outro que as pessoas aproveitaram como puderam. Por acaso tive sorte, porque no início do confinamento “fugimos” para Estremoz. Estava no meio do campo, tudo parecia perfeito. Os problemas só existiam quando ligavas a televisão. Isso era a realidade, mas não contactávamos directamente com isso. Estávamos no Alentejo e havia uma Primavera precoce a despontar.

Sei bem. Também me mudei para o Alentejo no início da pandemia.
Pois. E a sensação era completamente outra, não era?

Completamente.
É diferente de estar fechado num apartamento em Lisboa... Não era negativo nem positivo. Parecia só o mundo em pausa.

Estávamos no limbo.
Exactamente. Mas a ideia do disco era anterior a isto tudo. Teve mais a ver com a doença do meu pai, que acabou por falecer entretanto, e que não teve nada a ver com a pandemia. Ele estava entre dois mundos. Era algo aflitivo, mas também deu origem a conversas muito reveladoras. E depois, quando a pandemia surge, esta sensação cola-se-lhe perfeitamente. Gravámos o disco todo nesse ambiente, entre dois mundos, entre os confinamentos e desconfinamentos. Entre um bar que é o Musicbox, em Lisboa, e uma capela celestial, quase sagrada, em Ílhavo. Ou seja, não quis que o disco tivesse a ver com a pandemia. Mas reconheço que é quase impossível não ter. Porque a ideia cola-se muito bem.

Além do Musicbox e de Ílhavo, também estiveste em residência na Fábrica do Pão, em Lisboa, ou não?
Sim. Quando voltámos de Ílhavo, olhámos para o disco e percebemos que era possível colar aquilo que estivemos a fazer no Musicbox com o que estivemos a fazer em Ílhavo. E a Fábrica do Pão estava disponível. Fomos dois dias para lá gravar e fazer overdubs. O disco acaba por nascer desses três momentos de gravação, entre Lisboa e Ílhavo.

A maioria dos teus discos, tal como este, foram gravados em residências artísticas. Sentes a necessidade de sair da rotina para compor?
Habituei-me à história das residências para Filho da Mãe. Porque é essencialmente guitarra, não necessita mesmo de um estúdio de gravação. Consegue fazer-se com facilidade numa capela, por exemplo. E é tentador ir gravar para outros sítios, até porque há sempre ideias diferentes que se têm. É bom acordar e deitar com uma coisa só na cabeça.

Sendo que, como estavas a dizer há pouco, quando começaste a fazer este disco já tinhas algumas ideias do que querias fazer. Ou pelo menos um conceito.
Sim. Já tinha o conceito e já tinha algumas ideias. Mas normalmente quando vou para as residências ainda há muito por fazer e arrisco um bocadinho. Às vezes corre mal, mas deixo muito em aberto. Acho que isso tem também muito a ver com Filho da Mãe. Nunca há uma ideia fixa, tudo pode mudar a qualquer altura.

Até porque me parece uma música muito instintiva, certo?
Exacto, tem esse lado. Pode-se completamente mudar a bitola a meio do percurso e ainda assim dar origem a um disco bom. Portanto, tento não me agarrar muito às ideias ao início, porque sei que elas entretanto me vão escapando e se vão tornando noutra coisa qualquer. Embora isso tenha alguma margem para erro, acaba por ser um processo. 

Por falar em erro, ou melhor, em Êrror, tu agora também estás agora a tocar guitarra eléctrica nos Linda Martini. Isso é para continuar ou é só temporário, enquanto não arranjam outra pessoa para o lugar do Pedro Geraldes?
Temporário parece-me acertado. Sou uma espécie de guitarrista de suporte, com lamirés de guitarrista convidado. De repente saiu um elemento e eu entrei para ajudar, porque sou uma pessoa próxima deles.

É a banda da tua mulher e durante muitos anos tocaste com o Hélio em If Lucy Fell.
Também já fiz algumas coisas com o André [Henriques]. Conheço-os bem. Tenho gostado muito de tocar com eles e até ver estou lá. Mas não temos nada propriamente definido.

Achas que o trabalho com Linda Martini pode influenciar de alguma forma a música que fazes ou venhas a fazer como Filho da Mãe? Ou separas bem as coisas?
Neste momento consigo separar. Não há dúvidas disso. São duas coisas muito diferentes. Mas não faço a mínima ideia do que influencia o quê. Filho da Mãe é o registo a solo, e um bocado instintivo, como dizias. Por isso é permeável a qualquer outra coisa que apareça. Não sei se pode influenciar ou não, mas o que te posso dizer é que tinha vontade de tocar rock e de estar numa banda. Tinha mais saudades até do que pensava. E isso sugere-me coisas para fazer. Só não sei o quê. Não sei sequer se tem a ver com Filho da Mãe.

Culturgest. Ter 18.30. Entrada livre para alunos do ensino universitário e profissional.

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