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Música, Rui Reininho, 20.000 Éguas Submarinas
©Afonso SerenoRui Reininho

Rui Reininho: “O dever dos revolucionários é fazer a revolução”

Os concertos de apresentação de ‘20.000 Éguas Submarinas’ são retomados em Lisboa. Falámos com o cantor.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
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Opus musical, literário e cinematográfico, ‘20.000 Éguas Submarinas’ é um mergulho no imaginário imenso de Rui Reininho, nas suas inquietações e deslumbramentos – e nas suas lutas. É um álbum como nenhum outro em que o tenhamos ouvido. Sentámos com o cantor numa mesa de Lisboa para falar do mar, de vibrações, viagens ao Nepal e, claro, também dos GNR. Uma conversa aberta em que até se desvenda a origem copiada de uns dos versos memoráveis de “Pronúncia do Norte”.

A forma mais desinteressante de se conversar com Rui Reininho é impondo-lhe um guião. Mesmo tentando, como nós fizemos, para garantir que batíamos todos os pontos relativos ao novo disco a solo, 20.000 Éguas Submarinas (apenas o segundo em mais de 40 anos de carreira), ele escapa-se pela ideia ou pela imagem mais próxima. Obriga-nos a falhar triunfalmente, porque tudo o que o carismático frontman dos GNR tem de mais cativante para dizer são histórias sobre as quais não saberíamos perguntar. Encontrámo-lo numa tarde quente de Junho, no Palácio Chiado, em Lisboa. Abriram-se as portadas da janela. Veio o vinho, vieram as águas, e a conversa fluiu suavemente. Sem darmos por isso, Reininho alimenta-nos com preciosidades do passado (as histórias por detrás de algumas canções dos GNR) e do futuro (está a pensar num romance), sempre com este disco marítimo a bombordo, que tem raízes profundas na sua juventude e que há de apresentar na Culturgest a 10 de Setembro. Virá com dois companheiros de épocas muito distintas nos GNR, Alexandre Soares e Paulo Borges, que têm sido os seus imediatos nesta aventura.

Vamos começar pelo fim: “The Sea”, o tema que fecha o disco, é uma citação de Júlio Verne. Leste o Vinte Mil Léguas Submarinas em inglês?
Não consegui descobrir a frase no original. Eu tenho uma colecção em francês muito bonita, mas muito pequenina. É um condensado. Fui buscar aquilo assim para uma coisa mais fílmica, numa citação de uns Cadernos sobre as 20.000 Léguas, em que ele se assombra. É uma frase que quase podia ter sido dita pelo Capitão Nemo e é o único toque que tenho com as 20.000 Léguas da altura do Kirk Douglas [que protagoniza o filme de Richard Fleischer, de 1954]. É, faz um pouco de confusão, mas sempre gostei destas baralhações.

Ainda pensei que fosse consequência da anglofilia paterna, ou das matinés de televisão no apartamento dos Uva?
A primeira versão que vi das 20.000 Léguas foi essa, com o Kirk Douglas. Eu queria fazer o “The Sea” de outra maneira – e fiz, mas a captação não ficou bem. Fi-lo de uma maneira muito mais teatral, como se fosse aqueles velhos lobos do mar. [Encena.] “Unearthy mode of existence…” Ir aos filmes do Roger Corman, ao Martin Landau, que também faz de Bela Lugosi no Ed Wood: “Beware! Beware!” Todo aquele ambiente, todos aqueles actores daquela época, que eu adorava. E queria dar-lhe ali um toque um pouco mais patético, mas depois ficámos com pouco tempo. A certa altura, nem aquilo conseguia meter. Estive quase a pensar num duplo álbum, um bocado a soar como os antigos Hawkwind, que tinham aquelas sequências... Um dos primeiros sons que ouvi de música cósmica, pop transcendente. Porque a ideia é essa: um certo toque kitsch, digamos – que o Ed Wood também tem. Aquele polvo, alugado de outro filme, toda aquela cosmografia, toda aquela cosmogonia, é uma coisa agonizante. Para mim, era um momento bem disposto. Há um pequeno clipe, na extensão disto, que acaba com o “The Sea”, como se fosse o fim daquelas aventuras. Temos duas horas e tal de gongos e gravações aquáticas e subaquáticas, que pensei editar em pen. Pode ser que se possa vir a fazer, se houver assim um interesse escatológico.

Escatológico porquê?
Porque, no fundo, notei que houve umas abordagens em relação a este disco que são um bocado alto lá, alto lá. Porque, por brincadeira, e por citações que eu próprio fiz – como o Stockhausen dos pobres –, foi feito em casa e no meio de monges tibetanos. Há ali quase um caderno de anotações, coisas muito antigas que fui buscar. E há um lado lo-fi que queria manter, não queria ser pretensioso. Porque de facto a minha praia é o pop-rock. Não tenho pretensões a mais.

A propósito dos monges tibetanos: em “Tan Tan no Tibete” és tu próprio o Tintim. Estiveste lá.
Estive no Annapurna Sul, do outro lado [no Nepal]. Mas é vizinho. Sobrevoando, vê-se o Tibete. Na montanha, ao longe vê-se uma coisa assim [dispõe os copos na mesa como uma cordilheira]. O que é estranho é isso. Eu subi até aqui, vi que havia isto [esconde o topo dos copos], e de repente, quando se acorda de manhã, vê-se uma coisa daquelas. Um pouco como acontece com a ilha do Pico. Eles chamam deusas àquelas montanhas brancas, que estão a sete mil e tal metros. Há uma que é sagrada, não se pode ir. Eu nunca passei dos dois mil e tal, três mil.

É uma viagem recente?
Foi há três anos, quando decidi fazer o disco.

Decidiste lá, ou foste depois de decidir fazer o disco?
Tomei notas, fiz escolhas. Fui com o grupo da Jacomina Kistemaker, que é terapeuta de som, entre outras coisas, e que eu frequento desde 2002 [no Centro Punta de Couso, na Galiza]. É mais comum as pessoas conhecerem as taças, e eu comecei por aí. Depois fui evoluindo. Mas acho que seria fastidioso estar a falar sobre as diferenças entre os gongos Hang, os Feng, os Tam-tam chineses, os indonésios... Tenho estado ali a descobrir as especificidades. São muito diferentes das percussões turcas a que me habituei no rock n' roll. Sempre gostei muito de percussões, e sou como os miúdos: a primeira coisa que aprendi a fazer foi a falar e a cantar, depois a tocar tambor e daí passei para os operáticos, o que é mais a minha vibração.

Rui Reininho
Afonso SerenoRui Reininho

Apresentas Jacomina Kistemaker como uma das grandes inspirações deste disco, no qual ela também toca. Queres explicar-nos um pouco melhor quem é e que grupo é esse?
É uma holandesa de 74 anos que vive na Galiza e tem gerido um centro [o Centro Punta de Couso, que fica no limite da Península do Morrazo, Pontevedra]. É muito perto de mim. É um sítio muito escondido, afastado. Normalmente, as pessoas vão para lá para a meditation. Eu, como me aborreço um pouco nas meditations, decidi ir para o sítio em que tenho som. A Jacomina tem discos editados em todo o mundo, com músicos de healing meditation, e quis ter um registo com ela. Só entra no início do disco, mas a presença dela está lá sempre, através do monocórdio, que é um instrumento fantástico com 30 cordas afinadas no mesmo tom – o dela, o meu tem só 23, é mais baratinho.

[Passa uma ambulância com a sirene ligada.]
Estas frequências... É um bocadinho exagerado, um bocadinho forte.

Já tinham invadido o podcast com a Luísa Sobral.
É verdade.

Que anotações são essas de que falavas?
São os meus caderninhos com as frequências dos gongos. O tipo de massas que se usam, o efeito que se tira. São as minhas cartas marinhas, digamos assim. [Tira da mala o caderno com os primeiros rascunhos de 20.000 Éguas Submarinas.] Este é o original da letra “Namastea” (e não Namaste). E cá está, a primeira vez que escrevi o “The Sea”. [Lê:] “The sea is simply the vehicle for a prodigious, uncanny mode of existence…” [Folheia.] A primeira versão dos “Animais Errantes”...

Está aí o disco.
Está aqui tudo, para ser portátil. Porque levei-o [para o Nepal]. “Ressonâncias Magníficas”, cá está [o título do tema de abertura está em destaque na primeira folha escrita]. Pensei em chamar o disco assim. Depois mudei. Mas também tem anotações que são importantes para mim: como usar uma azeitona num cocktail de modo correcto.

São anotações feitas na Galiza ou no Nepal?
Levo os cadernos para todo o lado. O papel é uma coisa muito portátil. Ainda ando com estes caderninhos. Isto [pega no iPad, onde antes tinha mostrado fotos da viagem] também foi, como se viu. Agora vim buscar este, que o tinha cá deixado [em Lisboa].

Talvez seja preciso um seguro. Andar com um original assim...
Não. Agora já está tudo impresso.

Mas a versão print toda a gente tem. Esse é um objecto único.
Começou neste, mas são três ou quatro. Curiosamente, estava a falar disso com o Edgar Pêra e ele mostrou-me as anotações dele, em livrinhos, organizadas por décadas. Coisas dos filmes. É geracional. Trabalhávamos muito assim. Eu trabalho muito com o papel, e ando sempre com lápis. Os lápis são importantes. Tenho medo das esferográficas. Já me rebentaram muitas.

Qualquer pessoa que te ouça encontra em ti um leitor empenhado. Mas a literatura fantástica e a ficção científica não são, talvez, géneros a que se associem a ti.
Não, mas devorei aquilo tudo. A Colecção Argonauta, cá, e depois outras, quando comecei a viajar e a ler o Ballard, o Philip José Farmer. Distinguia da chamada speculative fiction. O Sprague de Camp, os velhos Heinlein. O Philip José Farmer tem aquela saga do rio [Riverworld], é muito bonito. É sobre aquela ideia: não tenhas problemas, senta-te à beira do rio e verás o cadáver do teu inimigo a ser arrastado pela corrente; há de passar. E o Philip José Farmer faz isso com a saga do rio, em que passa a Humanidade toda. O que é feito em alguns bons filmes de science fiction. Com o Arthur C. Clarke, claro, imenso. Ele tem um livro surpreendente sobre o mar. Ele que andou anos a escrever sobre o Cosmos e a fazer aquele opus fantástico que é o 2001: Odisseia no Espaço – um dos filmes mais maravilhosos que se me puseram à frente. Vio-o com os meus primos no Rivoli. Éramos miúdos. Aquilo mexeu com a minha cabeça. Na casa que os meus pais tinham no campo, ao pé de Valongo, havia aquelas placas de xisto. Quem fez um humor fantástico com isso foram os The Who, que na capa do Who’s Next estão todos a urinar na placa.

Música, Rui Reininho, 20.000 Éguas Submarinas
©DRRui Reininho

E porquê Júlio Verne, para um disco inspirado no mar? Não faltam textos aquosos em Portugal – desde os temores galegos e da aventura épica até à poesia contemplativa.
Porquê o Conrad e não o Saramago? Também tem uma jangada... Por um lado acho que deve ser passada mais música portuguesa, mas para mim a música não é portuguesa. Peço desculpa. Pode ter a ver com a portugalidade, pode ser cantada em português, o que aprecio muito. [Há uns tempos] ia para casa e tive de estacionar o carro, porque estava a cantar o Úria. Não conseguia conduzir e ouvi-lo ao mesmo tempo. Queria ver por onde é que ele queria ir. Não podia estar distraído no trânsito. Eu já estou um pouco naquela idade do Driving Miss Daisy. Cada vez conduzo menos. Mas não, não fui às odes marítimas e às peregrinações. Eram outro tipo de anotações, e se calhar eu tenho outro tipo de sangue que não é só isso. Em vez de seguir o Marco Paulo, segui o Marco Polo, a Rota da Seda.

De qualquer forma, o mar também não é novidade nas tuas canções.
Dois terços da minha parte nos GNR tem a ver muito com o mar. Eu confesso no disco: “Fartos do Mar”. Tive de explicar à minha maestrina [Jacomina Kistemaker], que é uma amiga essencialmente, não é nada ecuménica. Nós começamos com gongos, mas não quer dizer que façamos a nossa oração budista – para mim, o budismo é uma arte, uma estética, e as outras religiões, as do Livro, também, mas são mais pesadas, mais hardcore. A presença do mar, para mim, tem sido inevitável. Custa-me estar em Madrid, ou em cidades mais continentais. Agora, também já me cansa. Por isso é que uma das músicas é “Fartos do Mar”. Daí até a cumplicidade com o Alexandre [Soares], que na altura [nos primeiros anos dos GNR] era até cínico em relação aos surfistas, que gozava um bocado com o espírito surfista, e uma vez vejo-o a sair com uma prancha de veterano. As grandes, à havaiana. Para aí três metros. Custa-me e zango-me com o mar como me zango com certas pessoas de que gosto e de que gostei. “Estou farto de ti. Já não aguento mais esta pressão, esta relação.”

Mas aí é para deixar passar um tempo e voltar.
Dar oportunidade para voltar. Ciclicamente. Depois porque [o mar] é de uma transcendência… Digamos que tenho respeitinho. Duas das minhas sete vidas gastei-as no mar, num naufrágio pessoal e num naufrágio num barco. Coisas pequeninas, nada que exigisse assim muito pânico, mas de facto há ali um eterno retorno. Como disse, fui buscar muitos livrinhos antigos e anotações, [incluindo] um dos livros do Lovecraft mais assustadores, que é uma espécie de um Kafka marítimo, em que voltamos ao mar como última solução, assim uma utopia. Há a aliança das baleias, que são a nova manada, e as pessoas exploram o mar, mas não no sentido de espremer. Pelo que estamos a fazer à parte terrestre [do planeta], será o futuro. Não sou pessimista, mas acho que mais tarde ou mais cedo está tudo estourado. A alimentação terá de ir buscar o plâncton as algas, começarmos a beber leite de baleia, iogurtes de baleia, mas com a colaboração dos animais e não com a exploração agrícola. Não tenho dúvidas que não é por esta via.

Uma consciência ambiental que tens e vens desenvolvendo. Aliás, já estava presente nas “Dunas”.
Há muitos anos que em minha casa, sempre que posso, faço como os The Who: venho urinar cá fora, para evitar uma descarga de nove litros. Pego na minha cadela e: “Silly, ‘bora”. E fazemos os dois. Não vamos à casinha. [Risos.] São pequenos passos. Com a minha longevidade, se pensar: nove litros, sete a oito vezes por dia... não sei, não sou obcecado pelos meus movimentos da próstata, felizmente, mas quer dizer... Às vezes custa, de Inverno. É preciso um forcing: não, vamos lá fora. A cadela não quer ir, fica com aquele ar de “mas temos que ir mesmo?”. E eu: “‘bora”, que é para dar força. Alguém tem de ir ao mastro e recolher as velas. A vertigem que seria. Um grande desgosto não andar ali em veleiros e nessas coisas todas. De facto não fui, mas também acho que não sou obrigado a ir à portugalidade. O mare nostrum, o mar português, o Quinto Império... deixo para outros.

Também acho que não. A minha pergunta era mais no sentido de a forma como nós olhamos para o mar te ser desinteressante. Aquela coisa da conquista, do destino traçado, das índias.
Aqui era uma inevitabilidade. Apesar do respeito que tenho por todos os seres vivos, não resisto a um rodovalho, a uns percebes. As ostras são um encanto. São das coisas mais interessantes na alimentação.

Como é que foi o processo de escrita? As letras são claramente diferentes daquilo a que estamos habituados com os GNR.
Sim. São coisas que só eu posso dizer. Não tenho obrigação de estar em sintonia com uma banda, porque há coisas ali escolhidas. Lembro-me que o Tóli [César Machado, fundador e compositor dos GNR], que é a pessoa com quem mais gostei de colaborar em termos de tandem, me ter pedido na música “Voos Domésticos”: “Não vás por aí, por favor não me faças isso à música”. Uma música bonita, que por acaso é daquelas subestimadas dos GNR. Lembro-me que comecei a fazer-lhe ali o esboço e a primeira coisa que me veio à cabeça foi: “Batatas a murro…”. Era uma coisa sobre violência doméstica. Ele se calhar perdoa-me esta inconfidência, já me tem aturado tantos disparates... Aqui falo com mais parcimónia, posições que são minhas e que são muito antigas, embora alteradas na minha evolução como homem. Quando estava a fazer o “Enfado Vegetariano”, disseram-me assim: não vais arranjar aqui grandes amigos...

“Um toureiro arrependido, cavaleira amaricada...”
Lembro-me de ser miúdo, ir com os meus pais a Pamplona e ficar seduzido. Achei um espectáculo tão forte, tão selvagem, que interiorizei e pensei assim: não há problema nenhum em gostar-se e ser-se isto ou aquilo, desde que a pessoa depois evolua. Já que estamos em maré de confidências, uma vez fui confrontado violentamente pelo pessoal mais tauromáquico, e tive ali uma resposta que me tinham ensinado no Centro [Punta de Couso], e que não pratico muito, que é fazer assim [levanta aos mãos ao alto]: sou paz e alegria, inspiro e escuto-te; agora diga lá o que tem para dizer [risos]. Só alguém muito cruel é que me daria dois [murros] depois disto.

Rui Reininho
Afonso SerenoRui Reininho

Mas deve ficar mais irritado.
[Gargalhada.] Pois é. Aquela proximidade com a bicharada, aquele pulsar dos bichos na terra – não estou armado em Dr. Dolittle, mas sentir que há um apelo no lugar deles, e em certo tipo de coisas, não é nada natural. Lembro-me de ir a Cuba e ver gente indignada. “Que horror! Luta de galos! Ele vai desfazê-lo, parem com isso!” Ah, não, isto é cultural. Foi sempre assim que se fez. Ver os cãezinhos em jaulas no sul da China, um gajo fica assim: porra, é de mais.

O cultural serve para tudo. Até entre humanos.
E até para o chamado cozido à portuguesa. Mas nada me ofende. Agora, pronto, abriram-se trincheiras, mas é bom que haja trincheiras, de certa maneira. Como diziam os meus amigos trotskas, o dever dos revolucionários é fazer a revolução. Se uma pessoa não assume e está naquela paz podre... As pessoas que falem umas com as outras, e discutam.

Ainda sobre as letras. Não é só o conteúdo, a forma é diferente.
Ah! Sim, sim. Finalmente. Qualquer coisa aprendi. Relativamente à escrita e à poesia, tinha uma maneira preguiçosa de ir buscar ali as coisas. No outro dia, fiquei envergonhado ao ver num tomo de poesia galaico-lusitana, chamemos-lhe assim, um poeta que aconselho a toda a gente, que se chama Nuno Porto (não pode ser mau). Estava a ver e vi assim uma página manuseada, vou ver e leio: “As teias e os vidros nas janelas”. Já li isto em qualquer lado [risos]. Absorvi aquela história numa noite de glória. Mas não vejo problema nenhum. Fui buscar uma stanza, uma imagem. Não, era mais bonito: “As teias são os vidros das janelas”. Se tivesse copiado mesmo, era muito mais bonito. Uma casa abandonada em que as teias são os vidros das janelas. [Canta “Pronúncia do Norte”.] “As teias que vidram nas janelas…” Nem copiar sei.

Os processos criativos vivem da remistura.
São os meus sonhetos. Aquilo saiu de alguma maneira e são aqueles poemas, aquelas canções de escárnio e maldizer, de amigo e de não sei que mais, em galaico primordial quase, o início da nossa língua. Muito raramente leio livros de poesia da página 1 à 79. Para mim, são as minhas pautas. Pego na ideia do indivíduo, ou da senhora – seja lá o seu género, o poeta, esse sim, é um transgénero, transcende –, e aquilo é uma pauta: “olha que bem pensado”. E ficar ali a remoer, a digerir. Digiro melhor a poesia do que os pimentos, por exemplo.

Muito indigestos.
Os tomates, também. Ainda hoje fui confrontado. O Edgar [Pêra], simpaticamente, fez ali uma coisa. “Tu não és vegetariano, pois não? Agora com essas merdas!” Digo assim, não. Às vezes. Só não como sardinhas e tomates. Por isso, as festas populares não me fizeram falta nenhuma. Mas sou incapaz de as proibir e de tirar o prazer às outras pessoas.

Apesar desta diferença, os trocadilhos, as paródias, as brincadeiras com as palavras, que são a tua imagem de marca, continuam aqui. É como se o teu cérebro literário funcionasse num plano musical, em busca de harmonias de palavras. É uma inevitabilidade, a tua natureza inescapável, ou está aqui muito trabalhinho?
É a falta de técnica para conseguir exprimir toda a musicalidade que me está na alma. Nos anos 1970, houve um grande equívoco. Tive uns grupos em que tocava pessimamente e, no primeiro disco que gravo, o Anar Band, em 1977, houve um erro de casting na escolha dos músicos: não sou utilizado numa função que 40 e tal anos depois ainda exerço; o Jorge Chaminé é posto a tocar violoncelo e ele é um tenor conhecido até internacionalmente. Era um grupo anarquista mesmo. O Luís Castro ia para a bateria, não era a função dele. O primeiro espectáculo até correu mal, porque ele estava de tal maneira nervoso que não podia executar aquilo bem. Havia um erro de casting e o erro da não repetição, e daí aquela parte da palavra. Lá está, o Sífilis Versus Bílitis [livro de poemas de Rui reininho] só sai depois e lembro-me de o Jorge Lima Barreto dizer: “Foda-se, então tu escrevias estas merdas e na altura estávamos a fazer um disco e não disseste nada?”. Eu fiquei naquela: ninguém me perguntou... Éramos gente muito testuda. Como diria o Oscar Wilde, a verdadeira utopia, e a verdadeira anarquia, está nas pessoas. Um conjunto de anarquistas é um meio campo desorganizado. É demasiada ordem, é uma chatice. É o Fernando Santos.

Como se viu agora no jogo [Hungria-Portugal, no Euro2020].
Para quê jogar com dois gémeos? A gente encolhe os ombros. Às vezes resulta. Vive-se com essas coisas. Isso é que é importante e o que me faz feliz. Viver com esta pulsão. E não ser a pequenez de Portugal, não ser a pequenez da língua. Mas porquê que não se pode cantar em inglês? Então e o Mozart, que é das cinco grandes ligas musicais? Ele não tem coisas em alemão e em italiano? Claro que era com os libretistas, mas o que é bem feito não interessa a língua. Até porque tinha uma função e creio que, naquela altura, muito do movimento contra a ópera alemã era um movimento um pouco anti-imperialista a saber o que os “hunos” iriam trazer. Agrada-me pensar que, dessa maneira, Così fan tutte [ópera de Mozart] é que inventou o Verdi. Politicamente, era um confronto com o imperialismo alemão, wagneriano – que eu aprecio. Foram as duas línguas que tentei aprender e não consegui: o italiano e o alemão.

Por causa da ópera?
Pela ópera. Não entendo como se pode ter deixado a ópera. Agora temos a nossa playlist no nosso telefone.

E com o ritmo a que as coisas acontecem, dir-se-ia impossível parar o tempo necessário para se ouvir uma ópera.
Com certeza. Eu ainda fico a ver muitas vezes naqueles canais [de música erudita]. Há cenografias e encenações fantásticas de óperas antigas com movimentações contemporâneas. No outro dia, vi uma com camas gigantes e móveis gigantes, como o David Byrne chegou a fazer na altura dos Talking Heads e do Stop Making Sense – os fatos eram grandes, eram grandes os candeeiros. Anda tudo ligado, as pessoas observam-se. Tentei ver o meu Wagner da última vez que estive em Amesterdão e pensei: estou um miúdo de zapping, isto está a cansar-me. Pensei com pena: será que eu já não tenho paciência para estar levar com três horas wagnerianas? É de um imaginário para o qual já não há paciência. O Straub tentava fazer isso no cinema. O Manoel de Oliveira levou-nos até ao limite da paciência com aqueles planos, em que um tipo – aliás, um actor, o Diogo Dória, de quem tive o prazer de ser aqui contemporâneo [na Escola Superior de Teatro e Cinema] – está ali meia hora, e depois de vinte passos para trás e para a frente, diz “Mariana, Mariana”, e o plano não corta [risos]. Levar aquela estética ao limite é difícil. Na nossa rádio – ou no nosso rádio, como diria o grande Bruno Aleixo, que tem coisas desconcertantes e talvez seja o verdadeiro herdeiro do espírito Monty Python, do absurdo –, contaram-me que telefonam às pessoas para fazer o top semanal, tipo consulta, e que ao fim de 19, 20 segundos mudam as músicas. “Carregue no 1 se estiver a gostar…”

O prog rock teria morrido à nascença.
Claro. Os Van der Graaf Generator, os Genesis, até Hawkwind, lá está. Hoje sonhei com eles outra vez, mas foi por causa da capa. Estive a ver uma capa antiga e há ali um objecto parecido com a nossa. Lembro-me de ver Hawkwind no festival de Windsor [em 1973] e aquela primeira sequência do “Interstellar Overdrive”, que era [percute na mesa], tinha para aí 17 minutos. Com o Lemmy!

Para fechar a questão da escrita, até porque estamos ao lado da antiga &etc., o Sífilis versus Bílitis já tem quase 40 anos. Não está na hora de um novo livro de poemas?
Para já, sou como os trovadores: enquanto conseguir cantá-los, prefiro interpretá-los eu. Mas claro. Agora tenho de me organizar e dedicar-me a um romance, que é uma coisa mais terra e menos mar. Tem a ver com rio. Talvez um dos sítios mais maravilhosos do mundo, o Minho. Para mim tem uma ressonância magnética e magnífica que tem a ver com isso.

Música, Rui Reininho, 20.000 Éguas Submarinas
©Mimi Sá CoutinhoRui Reininho

Encaras este disco como um regresso aos tempos da Anar Band, ao vanguardismo dos 70s?
Física e mentalmente, talvez. Mas apenas pela persona. Dou-me conta que aquele anarca de 17, 20 anos continua na minha cabeça, com complacência. Continuo com os meus princípios, um pouco como a Revolução Francesa: Liberté, égalité, fraternité – e imbécillité. O espírito está lá.

Aos 66 anos, o que temos aqui é uma prova de vida?
Hoje vim com um bilhete de sénior. Why pay more? Achei graça ao senhor da bilheteira, que me disse: diga lá no seu jornal que o online da CP não funciona! E de facto há coisas que não funcionam. E se há coisa com que acho que querem acabar é com o comboio. Deve haver outros interesses. E é uma maneira tão civilizada de viajar. Era um dos meus sonhos: aqueles transiberianos, viajar assim em style. Já fiz a “Morte ao Sol”, podia fazer a “Vida no Expresso do Oriente”.

Já viajaste muito de comboio pela Europa. Aliás, o comboio até é um meio de transporte com história na família materna...
Sim. E que é muito certo. Cruza o que tem de cruzar. Depois, não é obsoleto. Quando volta ao ponto de partida, vem buscar sempre coisas novas. Ao contrário das provas de Daytona, que é das coisas mais tontas. As pessoas pagarem bilhete para verem 170 voltas [são 200]. Um gajo pensa: olha, o John McDonald já vai sexuagésima não-sei-quê. Sempre a virar para o mesmo lado... É assim um bocado a cabeça do Rui Rio a funcionar.

Mas voltando à prova de vida. É um clássico dizer-se que os GNR se aburguesaram com o Rock in Rio Douro, que os primeiros discos é que eram bons, originais. No entanto, os últimos discos, o Caixa Negra [2015] e este, mostram uma criatividade intacta.
Das coisas que mais odeio são os clichés e anedotas. Também temos as nossas do nosso lado. Uma delas é aquela dos amigos que levam o ceguinho às meninas e o ceguinho diz à senhora: fazes 69? E ela pergunta: como é que adivinhaste? Podemos ver do nosso ponto de vista. Os nossos contemporâneos, o tempo já passou para eles também. As pessoas que nos trataram assim ou assado também estão muito velhinhas. Perderam um bocado ali o pé. Já fui desagradável com uma ou duas pessoas que estavam nessa sintonia. É claro que quando a empregada doméstica começou a ouvir as “Dunas”, os hipsters, os finders começaram a dizer “isto agora já não me interessa”. É uma coisa que se usa muito: ai, isso já não me interessa. Mas essas pessoas também já não me interessam.

De qualquer modo, não te parece que esses finders vão encontrar aqui um disco que lhes vai fazer arregalar o olho?
Acho muito bem que sim. Estamos sempre abertos. Não tenho é franchising nem podemos aumentar as vendas, porque isso sai muito caro fisicamente. Muitos quilómetros a saltar de um sítio para o outro. Custou-me muito. Não quer dizer que não esteja preparado para outra. Mas para outra coisa. And now for something completely different, não é? Agora, esperar uma coisa e depois querer outra. Às vezes vejo isso nos nossos contemporâneos, às vezes também penso isso. Vejo as figurinhas, as nossas, a minha, a do Morrissey, e penso: devias estar caladinho, aos disparates que dizes. Mas quando ouço aqueles acordes do “Everyday is Like Sunday”, há ali qualquer coisa que me bate. No fundo, é um tipo que quer continuar a fazer a vida dele e se calhar de uma maneira muito linear, que é ir para o palco e fazer assim um rock. Já não é o gajo fininho, elegantíssimo, com as flores a imitar o João Peste, mas o homem tem todo o direito de estar ali. E as pessoas também são umas chatas. Vêm com essa história: ai, vocês deviam fazer outra vez estádios. Ó filhos, vocês não iam sair de casa. Onde é que iam deixar os miúdos? As hérnias, as próstatas, essas coisas todas. Já não tem assim grande piada. [Risos.] Por acaso é mentira. Estou a ser cruel, porque cada vez sinto mais ternura. Não é agora para me gabar, mas sair do parque de estacionamento e ter ali umas jovens a dizer que me querem conhecer e tirar uma fotografia. É muito gratificante. É quase uma esmola para o velhinho que está aqui. O Pedro [Valente, da Azáfama], que vinha comigo, diz assim com humor: para aquela gente, és um ídolo.

Com humor? Qual é a dúvida?
Às vezes ponho-me em dúvida nesse aspecto.

Ainda agora, ao sair da redacção, tive uma camarada a dizer-me que da última vez que te viu no Cais do Sodré, se chegou a ti para dizer “Rui Reininho, és grande!”. O que deve acontecer noite sim, noite sim.
Não, ultimamente só na Ribeira [do Porto]. E nem todos os anos. A coisa mais gratificante é de facto a maneira como as pessoas me tratam. É muito, muito bom. Mesmo os haters carinhosos ligados à Banda [Filarmónica Matosinhos-Leça, da qual é presidente desde 2018]. “Vem para aqui este lisboeta, caído de pára-quedas em busca de protagonismo.” Acho genial. Uma análise perfeita da minha vida. Um lisboeta que caiu em Matosinhos de pára-quedas, em busca de protagonismo. Uma frase que define aquilo que são os equívocos. E eu tenho de tudo um pouco. Cair de pára-quedas, não caí, por causa das minhas vertigens. Busca de protagonismo? Às vezes. Gosto que a minha voz se ouça, mas hoje mais no meio de um coro do que como solista. Quanto a isso não tenho ilusões. A minha querida amiga Jacomina também me disse assim: tens consciência de como a tua voz mudou, desde que vieste para aqui? Mas isso não interessa nada. Se calhar as pessoas até achavam mais graça ao gajo que cantava [ensaia uma caricatura de si próprio] “Vodka, vodka!... Sangriiiia”, às cinco da manhã, e ficava afónico.

O disco começou a ser gravado em 2018, mas quase parece ter sido feito durante a pandemia. E não é só por ter elementos associados à meditação. Logo na abertura ouvem-se os pássaros, como de repente voltámos a ouvimos no primeiro confinamento.
A natureza nos absorverá. Estávamos a gravar, abriu-se uma janela e de repente... ouvem-se os pássaros, pá. Deixa estar. Aquilo atrai. São uns sons tão primordiais, tão antigos. Nisso eu tenho a certeza. Não é tanga. Não é aquela coisa do healing, porque nós somos paz e alegria [risos]. São instrumentos milenares, da mesma maneira que os sinos chamam para a missa. As pessoas obedecem àquela vibração. Não podemos ter desprezo às medicinas alternativas e aquelas coisas, porque aquela vibração tem a ver com a vibração humana. Tenho escrito nos apontamentos, os hertz estão todos lá. Cuidado que isto é a frequência gástrica, esta é do coração, é muito perigosa, quase como o Kill Bill, dois movimentos e lá se vai o nosso [David] Carradine. Mas não é verdade? As pessoas que ainda estão ligadas a essas coisas ouvem um sino e dizem: olha, morreu alguém. O soar do sino é diferente. Dlim-dlom-dlim-dlom. Olha um casamento! No Oriente é assim. Ouvir e saber. Tive o prazer de estar ali [no Annapurna], ao fim da tarde, e de repente vêm dois ou três tipos com chapas e ficam ali a fazer [entoa] tchin-tchoin-tchin-tchoin, e depois vêm aqueles tipos que fazem [entoa de novo] ohuuuuuuuu. O quê que eles estão a fazer? A despedir-se do sol, que desaparece nas montanhas. Que é lindo, é. É quase como um western em que o cavaleiro cavalga para o sol. Há muitas maneiras de estar na Terra. Os tipos diziam quase todos: vocês lá embaixo andam a portar-se um bocado mal, aquilo está muito confuso; nós estamos aqui em cima a tomar conta de vocês e a manter a vibração. Eles acreditam nisso.

Houve esse cuidado, de saber que frequências se usavam em cada tema do disco?
Sim, os acertos. E agora vão começar os espectáculos, não posso fazer asneiras. O mínimo que posso e sei fazer com aquilo tem de se fazer em sintonia com a vibração, com os hertz. Estou com um pé nos Suicide e outro no Pierre Henry e na Beatriz Ferreyra, uma experimentalista de que eu gosto. Ver aqueles sintetizadores com as cavilhas que depois as pessoas que não sabiam onde as meter, só talvez o Keith Emerson. Ele tinha descoberto o moog. Um gongo é um moog, é uma coisa incrível. Se uma pessoa tiver paciência, se não tiver mais nada que fazer naquele fim-de-semana senão concentrar-se naquilo, as gamas sonoras que aquelas coisas têm, para mim é um prazer. O meu gato não gosta; o cão, tudo bem. Nota-se: se eu fizer ali um uiiiiim, o gato foge. Espera, fiz alguma coisa de mal. Red alert!

O “Namastea”...
É para ser uma dança. É outra pop também, mediterrânica, inclusiva... Mediterrânica, quer dizer, mais cá para baixo. Uma coisa que pode ser festejada quase de uma maneira pita shoarma, de juntar. Mas estou a adiantar-me.

Ia dizer que a letra parece uma construção dadaísta, e que a música tem uma vibe de “Age of Aquarius”, polida, com uns elementos orientais de diferentes latitudes, uma coisa que vem do passado e que auspicia futuro.
É muito inclusiva, é. Curiosamente, era para ser o meu cartão [single]. Trabalhei muito o conceito à volta do “Namastea”. E depois até foi um guitarrista que meteu ali uma guitarra, ocasional e generosamente, que sugeriu os “Animais Errantes”. Tem um corpo mais forte.

Como foi a gravação do videoclip?
Como não tenho subsídios e dinheiros, tive a colaboração do pessoal do Espaço T. Criaram aquilo. Foi feito com uma liberdade... Senti-me quase como um [David] Lynch sem talento. Dei a ideia. É uma música um bocadinho lynchiana. Daí ter avançado. As coisas foram feitas assim: “Rui, achas que há massa para comprar um gerador?” Fomos à Maxmat comprar um de 200 paus. “E eram umas lentes…” Porque é uma gente que funciona assim. “Eu alugava esta por 50, tenho um amigo que me aluga outra por 30. Isto não passa dos 280 paus.” “Conheço uma miúda maquilhadora que leva para aí metade.” Estavam com um cuidado… Sem saber que eu sou um milionário mãos largas, um autêntico Aga Khan, mas aquela maneira de falar, assim à mesa. Eu disse: vamos nisso. Depois ainda me iam devolver o gerador. Não preciso dessa merda para nada, fica para vocês. “Obrigada! E gostaste?” Claro que gostei. Com esta maneira de trabalhar como já não trabalhava há tantos anos, fora da indústria, com gente entusiasmada.

Entras quase como figurante.
Como sem-abrigo, que para mim são os “animais errantes”. A ideia começou no meu vizinho veterinário, que me disse que tínhamos um problema em Leça com os animais errantes. Depois não saiu nada com cães nem gatos, saíram miúdos. Eles [no vídeo] são adolescentes e com uma idadezinha até aos 30. São os animais errantes desadaptados. Depois pensei: também devias entrar. Sem-abrigo, sentado, com a minha pior roupa.

[Entra um corvo para a sala. Rui Reininho dirige-se ao corvo.]
Não partas copos, pá, senão nunca mais te deixam entrar.

Alexandre Soares, fundador dos GNR, participa no disco, em “Fartos do Mar”. Como foi voltar a trabalhar com ele?
Ele apareceu imenso. Eu estava ali em casa, nós somos vizinhos, e acho que não havia restrições. Sempre com muito cuidado, sempre com as máscaras. Estamos idosos, temos de ter cuidado com isto. Acompanhou tudo e aconselhou imenso. Ouvia as coisas todas. Quando se precisa de opiniões e as opiniões são mesmo amigas, é do melhor. “As pessoas, pá, quando ouvirem esta merda, vai ser fácil, ou gostam ou não gostam.” Voluntariou-se. Ó Alexandre, tu participas ali, queres vir tocar? “É já.”

O Alexandre fará parte da banda nos concertos?
Sim.

Uma coisa e outra, se não estou em erro, não acontece desde os anos 1980.
Não, não. Ele tem um tema na Companhia das Índias, o “Laika Virgin”. O tema é dele. Na altura em que eu andava a visitar as pessoas todas [para fazer o primeiro disco a solo, editado em 2008], like a virgin... E tivemos uma reunião num coliseu. Foi ele, era o [Alexandre] Manaia e o [Vítor] Rua, numa tentativa Wall of Sound que não correu lá muito bem, até mesmo por causa dos egos deles e das preferências. Não gostavam muito uns dos outros.

Acho que foi notório.
Esteticamente! O que é engraçado e também é embaraçoso. Como isto não é um business em que podemos dar 10 mil dólares a cada um e eles tocam, ali não correu nada bem. Foi dos períodos menos faustosos. Foi um comeback na altura do Tudo O Que Você Quer Ouvir [1996]. Fizemos a tournée com eles. Fizemos os coliseus. Ainda por cima eu, estupidamente, ao fim da primeira ou da segunda noite resolvi ir comemorar e meter-me em bebidas geladas. Cheguei à terceira noite e... Foi das duas únicas vezes na vida que tomei cortisona para ter voz. [Imita a afonia.] “Pá, não consigo falar mais do que isto.” O pessoal em pânico. Depois, cortisona e andei para aí uma semana inchado. Aquilo é uma lixívia.

Isso não soa nada bem.
É perigosíssimo. Uma coisa um bocado inconsciente. Mas faz-se. A gente ouve falar no meio, mesmo fadistas já me contaram. Um gajo chega ali ao Madison Square Garden e tem que cantar mesmo. Primeira dose, assim às sete e meia, oito, o espectáculo começa às nove e meia, eh pá, já consigo cantar. Ora canta. [Volta a imitar a afonia com 'Video Maria'.] Vai sair uma segunda dose, boom! Uma dose cavalar.

Talvez a “Absurdina” passasse.
[Risos.]

Voltando a 2021. Há um documentário associado a este 20.000 Éguas Submarinas.
Temos duas horas de bobines, digamos assim. São dois anos!

Está previsto para quando?
Para a rentrée. Até porque não temos massa para os conteúdos. Eu sei que é normal vir para aqui atrás da Direcção Geral das Artes, e claro que vindo para a capital se está mais perto dos subsídios. Janta-se, encontra-se não-sei-quem e “ah, pá, temos de falar, tenho aí um projecto”. A gente fala, até namora. Mas não havia assim massa para tudo. E voltando à circunstância [à crise provocada pela pandemia], lá em casa descobrimos que podíamos viver com um terço. Estas sapatilhas foi o Jorge Romão [baixista dos GNR] que me ofereceu. São umas Saucony, chiquérrimas, de Boston. Enquanto andarem, tudo bem. Cá diz-se ténis, não é? Mas agora já não jogo ténis – o elbow e a anca já não estão muito bons. Mas isto é assim difícil e nós não podemos ser malucos. O [Paulo] Borges era um session man requisitadíssimo e de repente ficou sem trabalho.

Como foi trabalhar com o Paulo Borges fora dos GNR, fora dos hits e das obrigações com o público?
Ele é açoriano. Isso diz muito. Teimoso. Gosta de ficar até às quinhentas a observar. “Vou ali ver o mar.” Só aparece às cinco da manhã.

Como vão ser os concertos de apresentação do disco?
Acho sintomático começarmos no Funchal. É num cais. Uma coisinha pequenina, um festival muito cosy. Aliás, só vamos três. Não havia bilhetes para mais e cargas e não sei quê. Vai só ali aquele núcleo duro.

Quem são? O Paulo Borges e o Alexandre Soares?
Sim. Depois a formação já terá mais dois elementos. E aquilo é uma maneira de fazer um bocado como o Music Hall: estrear em Filadélfia, em vez de ser no Porto ou em Lisboa. Não é medo de correr mal...

É para testar o espectáculo antes de chegar ao Porto, a Lisboa, Braga?
Exactamente.

DR

  • 4/5 estrelas
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Se Rui Reininho não existisse, não saberíamos como o inventar. O segundo álbum em nome próprio é um registo intrigante e peculiar de um homem múltiplo. Uma música estranha e bela, criada entre o cosmos e o mar. Explorando estruturas mais magnéticas e sensoriais, com menos palavras e mais sons, mergulha a fundo, entre vibrações tibetanas e técnicas telúricas. 20.000 Éguas Submarinas é um disco com um lado A mais místico e meditativo, e um lado B mais excitante e delirante. Reininho faz malabarismos com os trocadilhos e brinca com a língua de forma descomplexada. Num espírito exploratório, lembra os primórdios da sua carreira, como a Anar Band, que integrou com Jorge Lima Barreto. Em conjunto com o músico e produtor açoriano Paulo Borges, cria luxuriantes tapeçarias que jogam com as texturas dos instrumentos, entre gongos, taças, percussões, guitarras, sintetizadores, sopros e vocalizações. O resultado é uma peça importante para compreender o homem por detrás de uma das mais importantes discografias da música portuguesa. Rui Reininho não tem nada a provar e nada a perder, o que lhe abre uma liberdade rara para fazer um disco tão fascinante como este. Ana Patrícia Silva

Conversa afinada

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De uma das primeiras vezes que escrevemos sobre Pedro Mafama nas páginas da Time Out, em 2019, elencámos um ramalhete de referências e tentámos descrever a sua música: “é portuguesa e global, deste tempo e do próximo; tem qualquer coisa do trap e do drill de Chicago, do kuduro e da batida dos subúrbios de Lisboa, do fado e de outras músicas do mundo”. Passados dois anos, tudo isto e muito mais (cada vez mais) continua a confluir nas suas canções.

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