A cumplicidade entre os portugueses adoptivos Noah Lennox, também conhecido como Panda Bear, e Sonic Boom, vulgo Pete Kember, já era evidente há uns anos. Não só pelo trabalho que fizeram juntos nos álbuns Tomboy e Panda Bear Meets The Grim Reaper, do americano, como pela maneira como falam um do outro em entrevistas e com os gravadores desligados. Mas em Reset, editado em Agosto pela Domino, essa sintonia é ainda mais clara, com ambos a partilharem a autoria dos temas e as vozes a ouvirem-se juntas. E isso reflecte-se ao vivo.
Sem o incessante trabalho de criação, programação e promoção de Nelson Gomes e Afonso Simões, ao longo dos últimos 18 anos, o meio musical lisboeta (e, por arrasto, português) hoje seria outro. Garantidamente diferente, quase de certeza menos livre e arrojado. Primeiro separados – Afonso nos Fish & Sheep, com Jorge Martins, e Nelson já nos Gala Drop, então com Tiago Miranda – tocaram e deixaram a sua marca numa cena experimental e ruidosa que borbulhou na Lisboa do início do século e teve o seu epicentro na Zé dos Bois, que Nelson programou durante uns anos, antes de sair para fundar a associação cultural Filho Único com Pedro Gomes (CAVEIRA). Depois juntos, na Filho Único e nos Gala Drop, que já eram um trio quando gravaram o primeiro disco em 2008. Hoje continuam juntos, na Filho Único e nos Gala Drop, que lançaram em meados de Outubro o terceiro álbum, Amizade, e andam a apresentá-lo ao vivo por todo o país desde Setembro – a 12 de Novembro tocam na Casa de Cultura de Setúbal, a convite da ZDB; a 10 de Dezembro vão à SMUP.
Agora sem o norte-americano Jerrald James, vulgo Jerry the Cat, que entretanto saiu da banda, são outra vez um trio como em 2008 – mas com Rui Dâmaso, que está com eles há mais de dez anos, no lugar do co-fundador Tiago Miranda. A sua música voltou, também, a perder a voz e as únicas palavras que encontramos são outra vez os títulos, do disco e das canções. “Amizade” é o nome da primeira canção e do álbum, e o ponto de partida para uma conversa mediada pelo computador, cada um na sua casa, com os ecos da pandemia ainda a reverbarem nos nossos quotidianos. “Olhando para o contexto do mundo no dia de hoje, era [um nome] que fazia sentido. Nós somos uma banda instrumental, neste momento não temos letras, e queríamos uma coisa que fosse punchy”, começa a explicar Afonso. Concordamos que é uma palavra forte, que agarra quem a lê, quem a escuta. “O título surgiu um bocado na brincadeira, mas depois começámos a levá-lo mais a sério”, continua.
A conversa começa a ir noutra direcção, mas Nelson Gomes insiste em voltar à “Amizade”. “[O título] vem de um dos temas que o Afonso fez. Fruto de todos estes anos em que o core da banda se tem centrado em nós, que obviamente somos pessoas vulneráveis e cujo relacionamento nem sempre é fácil… Fruto do momento que vivíamos, ou que eu vivia, dei-lhe o nome ‘Afonso Amizade’. Ironizava com o facto de querer dizer que tinha uma enorme amizade por ele, que de certa forma é o que nos tem unido”, conta o mais antigo membro do grupo. Afonso interrompe: “Mas não estás a dizer porque é que surgiu esse nome. Basicamente, surgiu porque eu e o Nelson andávamos sempre às turras”. Nelson toma de novo a palavra. “É um bocado irónico, mas verdadeiro também. Há essa dualidade”, reconhece. E, durante algum tempo, dá-se por encerrado o assunto.
Mas, um quarto de hora depois, quando falamos do trabalho de ambos na Filho Único e a maneira como isso influencia – ou não – os Gala Drop, a amizade e a relação de Afonso e Nelson volta a ser abordada pelo percussionista. “Passamos muito tempo a trabalhar juntos e na estrada. A falar de música. Acho que isso depois se reflecte e enriquece a nossa própria música e o trabalho que fazemos [enquanto agentes e promotores]. Há sempre contaminação de parte a parte”, considera Afonso. “É produtivo, mas também extremamente cansativo”, continua Nelson. “Porque a nível profissional pode ser extremamente estimulante, mas humanamente tem um lado negativo, porque cria maiores conflitos, porque estamos em constante contacto. E pronto, é como uma relação. Uma relação muito absorvente. O que de certa forma retorna-nos ao título do disco e a esse sítio a que a covid nos levou. Ver as coisas que são importantes para nós. E querer dizer isso.” Quando apontamos que é a relação de ambos que se aguenta há mais tempo, além das famílias, desatam-se a rir. “É verdade”, assume Afonso. “De certeza”, concorda Nelson.
É essa relação cúmplice, e a maneira como se desenvolve desde que Afonso se juntou aos Gala Drop, há 16 anos, que se encontra espelhada no novo disco e nos seus sete temas, dentro dos quais o trio parece combinar e conter tudo o que já foi. Estão lá o dub, as memórias da rave, o psicadelismo narcotizado e os polirritmos do sul global. Afonso Simões concorda. “É uma síntese”, descreve. “É normal que ao fim de todos estes anos os discos comecem a ter uma unidade maior, porque sintetizam também melhor o que nós somos”, defende Nelson. Nos discos anteriores, “a entrada e saída de pessoas, pelas mais variadas razões, contribuiu para que o som da banda se fosse transformando. Não foi uma coisa necessariamente planeada ou premeditada”, desenvolve. Desta vez, não entrou ninguém novo para trazer outras influências e adicionar novos sons e instrumentos às canções. “A grande revolução foi a introdução da MPC, uma máquina que toca samples”, diz Nelson.
O regresso a uma geometria mais reduzida ajudou a simplificar o processo de composição. “Dantes tínhamos sempre aquela necessidade de tornar [a criação] o mais horizontal possível. Um trazia as suas ideias, outro trazia mais ideias, e depois cada um contribuía com sua parte”, descreve Afonso. Isso não só “era uma grande trabalheira”, como contribuiu para os oito anos de silêncio que separam o anterior II deste Amizade. “Tudo o que ouves no [Live at Boom, de 2020] é material novo, que nunca tinha sido editado. Músicas que demoraram dois anos a ser compostas. Íamos fazer um disco de estúdio, mas acabou por não haver consenso em relação às misturas e às gravações e aquilo ficou só no disco ao vivo.” Desta vez, tudo foi mais simples. “A maior parte do material deste disco foram ideias, sketches, que o Nelson introduziu na MPC. Depois eu e o [Rui] juntámo-nos e foram feitos arranjos em consonância com esse trabalho. Isto facilitou imenso as coisas. Esta forma de trabalhar é de longe a mais simples e a mais eficaz que já tivemos”, acredita Afonso.
Ao vivo, o recurso à MPC também tornou tudo mais fácil. “Sempre pensámos que tínhamos de ir buscar esta pessoa para tocar isto e aquilo. Só que as pessoas depois são todo um universo de vontades e complexidades e manias... Nós os três se calhar já somos mais velhos e já temos uma forma mais harmoniosa de estar. Então ao vivo tem sido incrível.” Nelson Gomes “encontrou uma forma viva de tocar a MPC e não ser uma coisa estanque. Isso tem sido bastante revelador e bastante interessante de explorar: o Afonso pode passar a ser um solista; há a possibilidade de introduzir outro tipo de instrumentação.” O baterista está contente com o novo papel. “É algo que vai ao encontro daquilo que me apetecia fazer. Quando a banda eram cinco pessoas, estava na boa em ser o gajo que estava ali a bater um ritmo atrás, mas agora invertemos um bocado os papéis. Passou a ser a MPC a preencher esse lugar.” Nelson sumariza: “Há margem para estender e levar a música para outros sítios, quando tocamos ao vivo. Tem sido fixe. Há mais espaço para improvisar.”