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Panda Bear & Sonic Boom
© Ian WitchellSonic Boom e Panda Bear

O ‘Reset’ solar de Panda Bear & Sonic Boom também é português

Noah Lennox e Pete Kember são dois nomes fulcrais da música alternativa das últimas décadas. Falámos antes da apresentação mundial do novo disco de ambos, em Lisboa.

Luís Filipe Rodrigues
Escrito por
Luís Filipe Rodrigues
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A cumplicidade entre os portugueses adoptivos Noah Lennox, também conhecido como Panda Bear, e Sonic Boom, vulgo Pete Kember, já era evidente há uns anos. Não só pelo trabalho que fizeram juntos nos álbuns Tomboy e Panda Bear Meets The Grim Reaper, do americano, como pela maneira como falam um do outro em entrevistas e com os gravadores desligados. Mas em Reset, editado em Agosto pela Domino, essa sintonia é ainda mais clara, com ambos a partilharem a autoria dos temas e as vozes a ouvirem-se juntas. E isso reflecte-se ao vivo, quando nos reencontramos para uma hora e meia de conversa a poucos metros do estúdio de Noah, em Campo de Ourique, onde estão a ensaiar para os concertos desta quinta-feira, no B.Leza (Lisboa), e sexta-feira, no M.Ou.Co (Porto). A existência do disco tinha sido revelada pela Time Out em Março, durante outra conversa com Kember, então no Príncipe Real. Ouvir as suas canções, erigidas sobre samples de rock and roll e doo-wop de antanho, tem sido uma das melhores coisas deste ano. Melhor só ouvi-las ao vivo, rodeados por quem partilha desta opinião – como testemunhámos há uns meses, numa listening party no Cosmos. Falta pouco para voltar a testemunhá-lo. Mas antes, um resumo da conversa.

Sei que são amigos há muito tempo e trabalharam juntos pela primeira vez há uma dúzia de anos, quanto o Pete Kember misturou o Tomboy. Já se conheciam antes?
Panda Bear: Não, porém já era fã da música dele.

Foi a editora que vos colocou em contacto?
PB: Não, foi o MySpace.
Sonic Boom: Pelo menos é o que ele diz.
PB: Ele não se lembra, mas mandei-lhe uma mensagem no MySpace.
SB: Eu acho que foi através da [editora] Carpark. Mas ele diz sempre que foi pelo MySpace.
PB: Tenho uma memória muito vívida da mensagem que te enviei.
SB: Então se calhar tens razão.

Parece que estou a ouvir um casal a discutir quando é que começou a namorar. Adoro.
SB: Foi amor à primeira vista [risos].

Desde então já tinham colaborado mais vezes, mas desta vez fizeram um disco inteiro a meias. Porquê agora? Tenho ideia de me teres dito que foi uma reacção à pandemia.
SB: Há muito tempo que andava para trás e para a frente com uma ideia. Sabia que o rock and roll dos primórdios nunca tinha sido enformado pela música electrónica. Não há muitas canções dessa altura com instrumentos electrónicos. Mas sempre achei que eram duas coisas que combinavam muito bem. Por outro lado, por ouvir e conhecer os discos, sabia que muitas canções tinham intros espantosas. Não sabia se o Noah ia ou não interessar-se por isto, no entanto decidi sacar mp3 das faixas no Youtube, fazer pequenos loops e enviar-lhe, para ver se dava nalguma coisa.

Como reagiste quando recebeste esses loops, Noah? E quando percebeste que a ideia do Pete tinha pernas para andar?
PB: Não houve um momento concreto em que o percebi. 
SB: Foi pouco a pouco. Primeiro tínhamos uma canção, depois duas, depois três.
PB: Não decidimos logo fazer um disco. O Pete tinha aquela ideia, mandou-me uns loops, perguntou o que achava, e um dia depois comecei a trabalhar neles, a ver o que acontecia. Só percebemos mais tarde que estava ali um disco.

Como foi o processo de criação?
PB: O Pete mandava um conjunto de loops, eu ouvia, e quando tinha uma ideia para uma melodia de voz começava a cantar. Depois fazia um arranjo e definia uma estrutura básica para a canção. Entretanto ele mandava-me mais loops.
SB: Da primeira vez que me mandou material de volta, era só os loops com a voz por cima. Ocasionalmente com arranjos um pouco diferentes. Mas a canção já estava lá. Podíamos ter editado isso, porém continuámos a trabalhar e a adicionar coisas, e ainda bem.

O Reset foi disponibilizado nas plataformas digitais em Agosto. Sei que o disco já estava pronto há mais tempo, mas tiveram alguns problemas quando foi altura de licenciar os samples. Houve algum sample que não vos deixaram mesmo usar?
SB: Houve três, incluindo um loop da “It’s Growing”, de The Temptations.
PB: Foi muito difícil licenciar os samples.
SB: Mas teve de ser. Muitas faixas usam as primeiras barras de uma canção que foi um sucesso na altura e estão tal e qual a versão original. Parece que vem aí a mesma canção, mas depois torna-se noutra coisa.

Essa intertextualidade entre as vossas canções e os originais é muito interessante. Porque não são só as primeiras barras que são iguais, há letras e ideias partilhadas.
SB: Por acaso quando enviei os loops ao Noah não indicava qual era a canção original. Ele reconheceu algumas, mas outras não.
PB: E mesmo quando algo me era familiar, não conhecia bem as canções ao ponto de evitar fazer isto ou aquilo porque o original era assim ou assado. Sabia que as conhecia, só não sabia de cor.
SB: Eu tinha dado pequenos títulos a cada loop, que às vezes eram até letras da canção. E algumas das semelhanças nas letras vêm por aí. 
PB: Se ele me mandava um ficheiro chamado “Love of my life”, eu fazia automaticamente uma espécie de canção de amor.
SB: Muitas vezes nem era inconsciente, contudo gosto da maneira como algumas destas canções combinam com os originais nos meus DJ sets. Como se relacionam entre si.

Sei que gravaram o disco à distância, durante a pandemia, mas ao ouvi-lo não penso na covid-19 e nos confinamentos. Penso mais no momento actual, numa tentativa de recuperação, de ultrapassarmos o que se passou. Admito, porém, que possa ser só uma projecção minha.
SB: Compreendo o que dizes, todavia para mim o disco é uma destilação de coisas que estavam no ar e de conversas sobre música e política social que tivemos ao longo dos últimos dois anos.
PB: Foi um período completamente louco. Com o Trump, BLM, a crescente desigualdade económica. Problemas que já vinham de trás, mas que ficaram ainda mais evidentes por causa da pandemia.
SB: Nos discos jamaicanos que ouvia quando era mais novo, eles cantavam sobre coisas lixadas, sobre a corrupção política e problemas económicos, mas faziam-no com boa onda, sem se estarem só a queixar. Foi algo que discutimos e quisemos reproduzir no disco. 

O disco parece um diálogo entre vocês os dois. Quando decidiram que ia ser assim e quem ia cantar o quê?
PB:
Mais uma vez foi pouco pensado. Eu tinha enviado quatro ou cinco canções ao Pete, com a minha voz por cima dos loops, e sugeri-lhe que seria interessante mudarmos um bocado as coisas. E ele começou a dar ideias. Achei que ia ser mais interessante assim, e que o disco ia beneficiar de ter diferentes vozes. Até porque, pela minha experiência com os Animal Collective, sei que tudo ficou mais interessante quando começámos a ter mais cantores e pessoas a escrever canções. 

Desde 2020, colaboraste com diferentes pessoas e produziste mais música do que em anos anteriores. Com a Maria Reis, com os Animal Collective, agora com o Pete. Isso está de alguma forma ligado à pandemia, a uma necessidade de contacto?
PB: Durante a pandemia, só estava bem a trabalhar. Era a única altura em que conseguia sair de uma espiral de pensamentos sobre tudo o que se estava a passar. Não digo que a música tenha sido um escape, mas talvez uma distracção. Um momento em que parava para respirar. 
SB: Para mim também. Foi difícil na mesma. Não foi fácil fazer este disco com tudo o que se estava a passar. Se bem que quando recebia as faixas e as partilhava com os outros sentia que elas tinham um efeito meio medicinal. Que puxavam as pessoas para cima quase instantaneamente, e que assim que as ouviam uma vez já estavam a cantar no segundo refrão. Percebi que estas canções traziam uma energia positiva para o mundo.
PB: É verdade.

Têm muito boa onda.
SB: Usámos todos os truques que conhecíamos para que as canções soassem mais alegres. Houve instrumentos que nunca tinha conseguido usar, e decidi metê-los aqui. 
PB: Exacto. Noutros projectos, talvez tivesse evitado algumas coisas, seguido um caminho menos óbvio, mas aqui não. Se soava bem, e nos sentíamos bem, seguíamos em frente.

Como é que isso se vai traduzir ao vivo? Já sabem o que vão fazer?
PB: Os ensaios estão a correr bem. Estamos a preparar um espectáculo simples e eficiente. Não vamos ter uma grande banda, nem nada que se pareça. Apenas electrónicas, talvez alguma percussão. E as vozes.
SB: E projecções. Estamos a caprichar no aspecto visual.

E vão tocar apenas as nove faixas do disco?
SB: Também vamos tocar outras coisas.

Canções que não puderam usar por causa dos samples?
PB: Não. Coisas antigas.
SB: Não vamos usar nenhum sample que não tenha sido aprovado. Se bem que há algumas canções que nunca chegámos a completar.
PB: Acho que umas três.

Ao vivo ninguém vos pode chatear por causa dos samples.
PB: Legalmente não nos podem impedir. Mas podem chatear-se.
SB: E moralmente não sei se me sentiria bem a usar esses samples. Porque independentemente do que se possa pensar sobre isso, estamos a usar a propriedade intelectual de outras pessoas. E não quero estar a usar nada que não me deixaram usar.
PB: Se bem que acho o discurso sobre o sample e o que é ou não a escrita de uma canção muito complicado e algo nebuloso.

A propriedade intelectual é uma invenção muito recente.
SB: Como ele diz, é complicado. Os músicos normalmente não se importam que alguém os sample, quem se interessa são os editores. Eles é que querem ganhar dinheiro com isso. Lembra-me que há alguns anos alguém copiou duas canções de The Who, que usou os mesmos riffs. E o Pete Townshend não quis saber. Disse algo como “mas acham o quê? Que inventámos a merda da roda? Não inventámos nada, estávamos só a pôr rodas de outros na nossa carroça, no nosso carro”.

E foi assim que a cultura foi evoluindo ao longo dos séculos.
SB: Pois. E é curioso que, quando as pessoas ouvem a “Edge of the Edge”, onde samplamos [a “Denise” de] Randy & the Rainbows, nos vêm perguntar se é um sample de Buddy Holly. Não é, mas era claramente o que eles estavam a imitar. Como digo, é um tema complicado.

Os concertos de Portugal vão ser os primeiros. Já sabem o que vão fazer a seguir? Têm uma digressão planeada?
PB: Vamos andar em digressão, mas vai ser rápido. Uma semana aqui, uma semana ali. 
SB: Ataques de guerrilha [risos].

Não querem sair de Portugal, porque gostam demasiado disto?
PB: É um bocado isso. Adoro estar aqui. Só saio do país para trabalhar.
SB: Ambos adoramos. O melhor de sair de Portugal é depois voltar ao país, e voltar a apreciar as pequenas coisas que tomamos como garantidas quando cá estamos. Pelo menos uma vez por semana tenho de beliscar-me para confirmar que estou mesmo aqui. Porque as coisas de que gosto em Portugal não existem em muitos outros sítios.
PB: Sobretudo o conjunto de coisas de que gosto. Essa conjugação não existe em mais lado nenhum.

Compreendo. Há países com melhor tempo, melhores condições laborais, um melhor serviço nacional de saúde, melhor tudo. Mas não há muitos países que conjuguem tudo isto. 
SB: E a envolvente natural, a geografia, os terrenos. É um segredo bem guardado. Alguém dizia no outro dia que era a Nova Zelândia da Europa. E percebi perfeitamente o que queria dizer.

B.Leza (Lisboa). Qui 22.00. 15€

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