A fadista Ana Moura passou os últimos anos a construir Casa Guilhermina, declaração de intenções, testemunho de coragem e vitalidade artística. Um disco de ruptura onde num momento estamos a ouvir um fado tradicional, a seguir um semba, de repente há uma batida de kizomba, dança-se um fandango e ouvem-se outras músicas portuguesas e do mundo lá ao fundo, em loop – por vezes, escuta-se tudo isto ao mesmo tempo.
Marcelo D2 é um pioneiro do hip-hop carioca. Começou a rimar no início dos 90s, quando fundou com Skunk (1967-1994) os Planet Hemp, um nome crucial do rap-rock brasileiro; e lançou-se em nome próprio em 1998, com o álbum Eu Tiro é Onda, seguido em 2003 por um segundo título a solo, A Procura da Batida Perfeita, e a separação dos Planet Hemp – que entretanto se reuniram e até lançaram um novo disco, Jardineiros, no ano passado. Se desde cedo que a influência do samba se ouviu nas suas gravações a solo, isso nunca tinha sido tão óbvio como no último registo, Assim Tocam os Meus Tambores (2020). E o samba vai ouvir-se ainda mais no próximo álbum, Iboru, que foi precedido pelo single Povo de Fé. E nos concertos de quinta-feira, 26, no Hard Club (Porto), e sexta, 27, no Casino Estoril, onde estará ladeado pela roda de samba e orquestra Bamba Social, baseada no Porto.
O rapper e vocalista brasileiro e a Bamba Social cruzaram-se pela primeira vez em Portugal em 2018, e dois anos mais tarde gravaram juntos “Cadê Cascais?”, para o álbum Na Fé da orquestra portuense. “Tinha ouvido falar há muito tempo de uma banda que tocava samba no Porto. Até o meu empresário João Dinis me falou deles”, recorda. “Ter o samba por perto é muito importante [para mim]. E essa coisa de ter alguém que toca samba noutros países, esse contacto é sempre bom”, continua. Guarda, por isso, boas memórias dos encontros anteriores. No entanto, a relação vai intensificar-se nos próximos concertos em Portugal. “Vai ser literalmente uma roda de samba, vamos estar o tempo todo juntos, a tocar samba do começo ao fim”, resume. “É um show do Bamba Social com o Marcelo D2.”
Marcelo D2 como nunca o ouvimos, portanto. “Já fiz o mesmo no Brasil – transformar as minhas canções para esse formato da roda de samba”, corrige. “E a gente também vai pegar em alguns sambas clássicos do Brasil, sei lá, de Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, coisas que eu gosto de cantar. E vamos tocar a música que eu gravei com eles”, revela. Insiste que não está a fazer nada de (muito) novo – pelo menos para ele, que promove estes “encontros do rap com o samba” há mais de 20 anos. Não obstante, reconhece que algo mudou desde a edição de Assim Tocam os Meus Tambores, e chega mesmo a descrever o vindouro Iboru como “um disco de samba”. O primeiro da sua carreira.
“Desde A Procura da Batida Perfeita que eu me encaminhei para esse universo do samba. Só que agora a brincadeira é no terreiro do samba. É o rap indo visitar o samba e não o samba vindo visitar o rap. Compus mesmo alguns sambas.” Marcelo D2 continua a aprofundar esta ideia. “[Outras] músicas populares no Brasil, como o sertanejo ou o axé, beberam muito da música urbana, principalmente do rap. Têm os graves das 808, das baterias electrónicas. O samba fez pouco isso”, considera. “A minha proposta é levá-lo para esse lugar que o rap pode oferecer, dos baixos graves, dos bombos graves, quase um samba de terreiro com bastante grave. A imagem que simboliza isso para mim é um soundsystem com uma roda de samba na frente, basicamente é isso o meu disco novo.”
Se esta conversa soa tão familiar é porque esta história tem vindo a repetir-se um pouco por todo o mundo latino. O que está a acontecer às expressões populares brasileiras que refere é o mesmo que um Bad Bunny está a fazer ao reggaetón, que uma Rosalía fez ao flamenco ou um C. Tangana a outras músicas espanholas e das suas antigas colónias. É, de certa forma, o que Ana Moura fez ao fado no seu último disco e o que Pedro Mafama faz há anos. “É uma tendência mundial, mesmo. Porque o hip-hop acostumou-nos a ouvir esses graves, essas baterias electrónicas”, defende. “E isso é normal, porque as músicas tradicionais são músicas em constante evolução. O samba é uma música em constante evolução e eu quero fazer parte dessa evolução. Já mexi com ele quando botei o rap dentro do samba e agora acho que é hora de cantar samba mesmo. Estou ficando mais velho, está na hora de me sentar e cantar mais samba e menos rap”, fala em tom de brincadeira. Mas é verdade: Marcelo fez 55 anos em Novembro. “Não é mais idade de rapper. É idade de sambista.”
Casino Estoril. Sex 27. 22.00. 25€-30€