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Música, Sensible Soccers
©Vera MarmeloSensible Soccers

Sensible Soccers: “O ‘Manoel’ é um trabalho sobre a memória”

O mais recente projecto dos Sensible Soccers parte dos filmes de Manoel de Oliveira para chegar a um dos temas-fetiche do grupo: a memória. Falámos com dois deles.

Luís Filipe Rodrigues
Escrito por
Luís Filipe Rodrigues
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Desde que apareceram nas nossas vidas, com o EP homónimo de 2011 (reunido entretanto com um par de singles dos primórdios do grupo, no álbum 2011-2013), os Sensible Soccers não pararam de mudar. Não só de pessoal – Hugo Gomes, André Simão e Manuel Justo são hoje o núcleo duro da banda – como de som. Mas tem sido uma mudança natural e progressiva. Sem se afastarem muito do caminho que palmilham há anos, as mais recentes passadas levaram-nos a Manoel, nome partilhado pela banda sonora para duas curtas de Manoel Oliveira – Douro, Faina Fluvial e O Pintor e a Cidade – que vamos poder ver enquanto eles tocam na próxima quarta-feira, 16, na Culturgest de Lisboa; e por um disco inspirado nos filmes, mas que existe independentemente da banda sonora. Essa e outras dicotomias foram o ponto de partida para uma conversa a três que se estendeu por três quartos de hora.

O Douro, Faina Fluvial [1931] e O Pintor e a Cidade [1956] são dois filmes muito distintos – de épocas e estéticas diferentes, um a preto e branco, outro a cor – mas unidos por uma cidade, o Porto. Diriam que o Manoel é também um disco sobre o Porto, mais até do que sobre esses filmes?
André Simão: Todos temos uma experiência própria com e na cidade do Porto, por isso é impossível que não exista também muito do Porto na forma como abordámos este projecto. Mas acho que, mais do que sobre o Porto, é um disco sobre a cidade e a ideia de cidade. Claro que o Porto é o mote de qualquer um dos filmes e essa é desde logo a grande relação entre eles, porque de resto são diferentes em praticamente tudo. Mas sinto que o Oliveira, em O Pintor e a Cidade, não está tão interessado em retratar o Porto em particular, que lhe interessa mais retratar uma ideia de cidade. Como a nós. 

Levaram algo do Porto de hoje para este este projecto? Ou tentaram ficar focados na ideia do que era uma cidade, do que era o Porto, há quase um século e há meio século?
Hugo Gomes: Penso que aconteceu um pouco das duas coisas. Há um encontro caricato entre um cinema antigo e os instrumentos com que o musicámos, que em muitos casos não existiam sequer à época. Nesse sentido, há uma espécie de modernização daqueles filmes através da banda sonora. Mas quando chegámos ao fim do processo de composição e assistimos pela primeira vez ao filme-concerto, que é o pilar deste projecto que tem o nome de Manoel, percebemos que é um trabalho sobre a memória, que é um tema central da nossa obra. 

O disco Manoel tem um alinhamento diferente do filme-concerto que vão apresentar na Culturgest. Até há temas e passagens que estão num e não se ouvem no outro. Porquê?
A: Desde o princípio que a nossa intenção foi fazer uma banda sonora que pudesse resultar num filme-concerto, e que houvesse também um disco, sem que eles tivessem de ser iguais. Esse disco podia resultar dos estilhaços do processo de fazer o filme-concerto, como podia resultar na íntegra do filme-concerto. E isso era uma coisa que só iríamos perceber no final. De certa forma, usámos os filmes como se fossem pautas. Estávamos a ver os filmes e a compor e surgiam ideias que tinham muito a ver com aquelas imagens, mas acontecia, às vezes, que determinado capítulo do filme tinha por exemplo um minuto, e isso não era uma música. Era um momento do filme, mas não era uma música.

Daí a necessidade de criar dois objectos diferentes, o filme-concerto e o disco.
A: Pois. Quando tínhamos os filmes todos esboçados, e tínhamos respeitado essa pauta de que falava, fomos desenvolver a música pensando que aquilo era material para um álbum, e isso fez com que algumas músicas crescessem para o dobro, para o triplo, que ganhassem outras formas, outras instrumentações diferentes daquelas que são apresentadas no concerto. Fez também com que algumas músicas que estão no filme-concerto nunca chegassem ao disco, e vice-versa. Há músicas que nasceram de estilhaços desse processo criativo que não couberam depois no filme-concerto, e transitaram para o disco. 

Mas há também músicas que são iguais no disco e na banda sonora.
A: Sim. Por exemplo a “Cantiga da Ponte”, que é a primeira faixa do disco e abre também o espectáculo. Mas é das poucas que se ouve quase exactamente tal e qual como é no disco. E talvez haja mais uma ou duas que têm paralelos mais próximos. No entanto, quisemos desde cedo que o disco fosse um objecto autónomo, feito sem compromissos em relação àquilo que decidimos para o concerto.

Uma faixa em concreto que chama à atenção pelo momento em que aparece no disco é a “Fim”, que na verdade é a quarta. Porque decidiram metê-la a meio do disco, e onde surge ela nos filmes?
H: Muitas vezes as canções quando chegam ao estúdio ainda não têm nome. Alguns nomes só são decididos no final, já depois de termos convivido com elas muito tempo. Às vezes o nome pode ser uma coisa completamente aleatória, ou uma pequena piada. Nesse caso concreto, ela chama-se “Fim” porque é a última música do filme-concerto. Mas também por ter uma carga emocional melancólica, por denotar que algo chegou ao fim. Não especificamente o filme-concerto, mas algo mais vago. Um processo, uma vida... 

Uma relação.
H: Exactamente. 

Falavam há pouco dos filmes serem uma pauta. Sentem que, de certa forma, o Manoel ficou refém das imagens do Manoel de Oliveira, daqueles dois filmes, e por isso é diferente dos vossos discos tradicionais, onde o único limite é a vossa imaginação ou a vossa memória?
A: Nem por isso.
H: O único limite que existiu foi o imposto pelo filme, que é de certa forma uma imposição silenciosa, que é respeitar as imagens. Esse respeito no fundo, se calhar, já é um limite.

É.
A: Pois. Mas o processo de composição deste disco teve particularidades que foram além dessa. Especialmente quando comparado com a forma como compusemos o Aurora, que é o disco imediatamente anterior. 

Com o B Fachada.
A: Sim. O Aurora foi feito numa altura de reconfiguração da banda. Havia uma espécie de entusiasmo, uma vontade quase juvenil de mudar as regras, e isso é algo que até acho que se ouve no disco, essa celebração do renascimento, que se reflecte no próprio nome.
H: Nessa altura sentimos a necessidade de falar com o Fachada em específico. Estávamos de tal forma compenetrados naquilo que estávamos a fazer, e sem grande capacidade para olhar a coisa por fora que quisemos falar com alguém em cujos ouvidos confiávamos plenamente e com quem sentíamos que tínhamos uma ligação musical. Isto apesar de nem o conhecermos pessoalmente.

Imagino que o contexto em que nasceu o Manoel tenha sido diferente.
A: Completamente. O contexto do álbum é a pandemia. Nós concorremos com este projecto ao Criatório, um programa de apoio à criação artística da Câmara Municipal do Porto. E soubemos que tínhamos ganho o apoio em Março ou Abril [de 2020], no início da pandemia. Então este disco foi feito pelos três, isolados. Ou seja, passando muito tempo sozinhos, com uma placidez e uma calma que nos permitiram avançar e recuar calmamente. Deixar cair, fazer nascer. Foi um processo muito tranquilo, apesar de intensivo, porque tínhamos menos para fazer e tínhamos mais tempo para trabalhar. Foi um disco feito em condições completamente diferentes do anterior. 

Vocês fizeram o disco juntos, na mesma casa ou no mesmo sítio. Ou estavam a trabalhar pela internet?
A: Trabalhamos sempre juntos. É claro que cada um de nós tinha as suas cábulas e as suas ideias que depois foram apresentadas ao resto, coisas que foram feitas durante o ano anterior e que foram feitas também durante a pandemia. Mas o disco foi desenvolvido quase todo pelos três, e decidimos que tínhamos de estar juntos a fazê-lo. Mesmo que não estivéssemos no mesmo sítio sempre, tínhamos encontros periódicos. Numa primeira fase em Fornelo, na sede primeira da banda. E depois também em Barcelinhos, para concluir as coisas, na sede segunda, na sala de ensaio. Houve uma sala de composição e uma sala de ensaio.

No ano passado, além do Manoel, lançaram uma compilação, 2011-2013, que reúne as faixas do vosso primeiro EP e dos dois singles seguintes. O que é que vocês revêem da banda que são hoje nessas faixas? E o que mudou?
A: Mudou muita coisa. Se há uma coisa que nos deixa contentes a todos é que estamos a falar de uma obra que tem estéticas bastante distintas, mas que tem uma chama e uma alma comuns. A estética desses primeiros singles, mais lo-fi e mais chillwave, depois desemboca no 8, e depois desemboca no Villa Soledade, passando pelo Aurora até ao Manoel. São discos muitos diferentes, mas são todos discos de Sensible Soccers.
H: E a evolução foi sempre natural. Somos pessoas mais velhas do que éramos quando fizemos aqueles discos, e temos hoje uma estabilidade emocional e uma consciência que se calhar não tínhamos na altura. Também passámos a ter outros interesses musicais. E depois há questões completamente práticas. Ou porque se compraram determinados instrumentos que soam daquela maneira, porque entra um percussionista, porque entra um pianista virtuoso para a banda. Tudo isto acaba por ditar a forma como a música é feita.

Qual era a vossa relação com a obra do Manoel de Oliveira antes da gravação do disco? E agora, depois de o terem terminado? Mudou alguma coisa?
H: Cada um de nós tinha uma relação específica com o cinema do Manoel de Oliveira. É uma obra muito extensa, que alguns [membros da banda] conheciam melhor e outros pior. Em comum tínhamos a paixão pelo Douro, Faina Fluvial, e uma certa admiração pela sua independência e pela sua marca autoral. Mas assim que nos começámos a dedicar a este projecto, paralelamente ao trabalho musical, tentámos também conhecer um pouco melhor o autor, falámos com pessoas que o conheceram, vimos várias entrevistas, e entrámos em contacto com muitos filmes dele e curtas que nunca tínhamos visto. Uma coisa que te posso dizer é que temos estes dois filmes completamente decorados, já os vimos inúmeras vezes e conhecemos detalhadamente, e a verdade é que isso não desgastou os filmes aos nossos olhos. Antes pelo contrário. Os filmes têm crescido. Com o tempo cresceram imenso.

E acham que pode acontecer algo parecido a quem vê este filme-concerto? Que o Manoel pode levar o cinema do Manoel de Oliveira a outros públicos, até mais jovens? 
Houve essa ambição. Quisemos, com este projecto, fazer chegar o cinema do Manoel de Oliveira a um público que estava distante da sua obra, um público mais jovem, educado pelo cinema norte-americano, com muito ritmo, com muitos cortes. E isso está a acontecer. O trabalho tem chegado a muita gente e sido bem recebido. Já muita malta nos tem dito que não ligava nada ao Manoel de Oliveira e que ficou com curiosidade de ver mais filmes.

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Com 15 anos, Mallu Magalhães çomeçou a carreira com a pressão de ser a grande revelação da música brasileira. Entre o álbum Pitanga (2011) e Vem (2017), mudou-se para Lisboa, distanciou-se da folk e das fixações anglo-saxónicas, provou o sabor da saudade e redescobriu o colorido calor do samba e da bossa nova, ganhando mais confiança na sua poesia. Quase 15 anos depois de entrar no mundo da música, segue em elegante evolução e apresenta Esperança, um disco escapista.

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