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Joana Afonso
© DRIlustrações de Joana Afonso para a adaptação em BD de A Barca do Inferno

A BD pode servir de introdução à “grande literatura” (e as editoras investem nisso)

Adaptar clássicos não é novidade, mas as versões em BD parecem estar cada vez mais na moda. Para perceber porquê, estivemos à conversa com editores, autores e ilustradores.

Raquel Dias da Silva
Escrito por
Raquel Dias da Silva
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Quando se fala em adaptar uma história, pensa-se de imediato no cinema ou na televisão. No entanto, o potencial da imagem para apresentar uma narrativa é muito mais antigo. Ainda antes de se descobrir como criar movimento com as imagens, já elas nos fascinavam: a sua produção é prática comum a virtualmente todas as culturas humanas desde o Paleolítico, e a história da banda desenhada em particular, defendem os académicos, remonta às pinturas rupestres de Lascaux. Ou seja, há 17 mil anos. Os primeiros comics surgiram na Europa por volta de 1837, tornando-se populares nos EUA em 1938. Não é por isso de estranhar que, reconhecendo o atractivo do meio, o editor Albert Kanter tenha arriscado lançar a icónica série de banda desenhada Classics Illustrated, para introduzir leitores jovens e relutantes à “grande literatura”. Entre 1941 e 1969, foram publicados mais de uma centena de títulos. A colecção terminou, mas a ideia não esmoreceu. Pelo contrário: hoje em dia, para onde quer que nos viremos, continuamos a encontrar no mínimo uma iteração em banda desenhada deste ou daquele clássico.

“Tem sido uma aposta comum a várias editoras. Quer dizer, sempre houve editoras especializadas. O que mudou, nos últimos anos, foi esta aposta de editoras mais literárias – e até de generalistas – neste segmento. Nós de facto respondemos, ou estamos a tentar criar esta tendência, até porque há cada vez mais oferta de adaptações [de clássicos] a novelas gráficas”, diz Diogo Madre Deus, editor da Cavalo de Ferro. “Já há experiências bem-sucedidas, como as que editámos de A Fome, do Nobel de Literatura Knut Hamsun [adaptado por Martin Ernstsen], e de 1984, de George Orwell [adaptado por Amazing Améziane e Sybille Titeux de la Croix]. Aliás, quando publicámos o 1984 [em Agosto de 2021], ainda não fazíamos parte da Penguin, que também editou uma adaptação do título [a de Fido Nesti, pela Alfaguara, em Outubro de 2020]. Ambas correram muito bem, foram alvo de reedições.” A terceira adaptação de 1984, a de Xavier Coste, surgiu no mercado português logo a seguir, em Setembro de 2021, pela Relógio d’Água. O fundador desta editora, Carlos Vasconcelos, garante que é uma aposta com futuro. “Iremos continuar a bom ritmo, não caindo na tentação de publicar algo apenas por nos parecer vendável”, assegura. Para já, conta só com quatro romances gráficos no catálogo, todos adaptações, e tem previsto o lançamento de Duna, de Frank Herbert, por Brian Herbert e Kevin J. Anderson, para Outubro.

banda desenhada
© DRIlustração de '1984', adaptado a partir da obra de Georges Orwell, por Amazing Améziane e Sybille Titeux de la Croix

Não nos parece descabido especular que o revivalismo das adaptações de clássicos à banda desenhada – e o seu lançamento também em Portugal – se relaciona com a entrada das obras no domínio público. Mas há outros factores, para além do económico, em cima da mesa. A popularidade crescente do formato, por exemplo, que Madre Deus sugere dever-se também ao termo “novela gráfica”, cunhado pelo mercado editorial para se distanciar da ideia errada, mas muito disseminada, de que os “quadradinhos” são para os miúdos. “Dá a impressão de ser algo mais sério, sofisticado”, diz, crente de que o ardil está a ter resultados. Helena Valente Rafael, da Gradiva, também sente “um reflorescimento” neste segmento. “Publicamos BD há anos, mas a edição [em Maio] de O Nome da Rosa, de Umberto Eco, por Milo Manara, é na verdade a primeira adaptação de um romance a banda desenhada que publicamos, e fizemo-lo porque é um grande desenhador italiano a trabalhar a obra de um grande romancista italiano que temos em catálogo, e tem sido uma incursão muito feliz porque também se tem reflectido nas vendas da obra original.”

Há mais editores a confirmar que a procura tem acompanhado a produção. Por exemplo, João Miguel Lameiras, argumentista, editor e sócio-fundador da cooperativa A Seita, que também nomeia a obra de George Orwell como evidência: “Quando entrou no domínio público, saíram para aí umas quatro ou cinco adaptações e todas venderam bem, e os editores, como percebem que há mercado, investem. Mas, no caso d’A Seita, a ideia de criar a colecção Nona Literatura surgiu por acaso, quando nos mostraram dois ou três livros em Angoulême, que são adaptações: o Drácula, de Georges Bess [a partir do original de Bram Stoker], e o Macbeth: Rei da Escócia, de Guillaume Sorel e Thomas Day [a partir de William Shakespeare]. O critério principal tem sido, contudo, mais a vertente estética do que propriamente o resto.”

Drácula
DráculaPáginas de Drácula, de Georges Bess, a partir do original de Bram Stoker

Que seja visualmente espectacular e inovadora, como a versão de Ted Adams e Jorge Coelho de O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, que A Seita tenciona lançar no Amadora BD, que arranca a 19 de Outubro. É o que Lameiras procura, uma vez que o formato permite explorar tanto o que o autor original sugere estar a acontecer, como aquilo que não está escrito mas que quem adapta imagina lá estar. Madre Deus concorda, embora ciente da subjectividade inerente. “O que procuro não é um bom resumo, que sirva de preparação para a leitura do original – até porque sou céptico, não acredito que se dê o salto a partir da BD –, mas que tenha, tal como no cinema, uma nova abordagem e uma nova perspectiva”, esclarece, antes de evocar uma aposta da Elsinore, que também edita: o clássico moderno O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder, por Nicoby e Vincent. “À medida que a protagonista toma consciência de si, apercebe-se que é um cartoon, que alguém a está a manipular, o que levanta as tais questões filosóficas. Mas este novo jogo só é possível porque há uma nova linguagem, neste caso a gráfica.”

Se, por um lado, é verdade que o formato exige uma certa contenção textual, por outro incita a pôr à prova o adágio “uma imagem vale mais do que mil palavras”. O carioca André Diniz, que vive em Lisboa desde 2016, sabe-o bem. A sua arrojada versão de O Idiota, do russo Fiodor Dostoievski, que saiu em Portugal em 2017, pela mão da Levoir, não tem praticamente texto – das mais de 400 páginas, menos de 30 contêm curtos diálogos. “Não foi fácil, mas eu me envolvi muito com o protagonista e queria fazer algo a respeito. Se fosse fazer tradicional ficaria muito aborrecido e não me interessava preparar para a leitura, porque a obra está viva ainda, se encontra em qualquer livraria. Eu fiz minha versão, assumi que ia ser o idiota do André Diniz – porque quem sou eu para recriar o trabalho de um dos maiores génios da literatura? –, e tive sucesso. Mas há, claro, outras maneiras de fazer.”

João Miguel Lameiras colaborou com a desenhadora Joana Afonso na adaptação de O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, para a colecção de Grandes Clássicos da Literatura em BD da Levoir/RTP. Para Lameiras não foi a primeira vez – já tinha adaptado Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, com Miguel Jorge, para a mesma colecção. Mas foi uma estreia para a artista. “O João, no fundo, escolheu o que figuraria [fez o layout], as páginas estavam mais ou menos idealizadas, com os diálogos, e eu tentei traduzir visualmente as suas ideias, mas há soluções que encontrei que ele também não estava à espera”, conta. “Tentei omitir os quadrados e fazer uma cena ao género da animação, uma espécie de friso onde há uma composição de movimento, por exemplo. Foi muito interessante e acho positivo e um chamariz para se ler mais BD. Não temos dados, mas parece-me que sim, olhando para os tops das Fnac.”

A colecção Grandes Clássicos da Literatura em BD, a versão nacional da série francesa da Glénat, foi lançada em 2020, na Feira do Livro de Lisboa. A primeira série teve 14 títulos, aos quais se seguiram mais 16 volumes, incluindo O Auto da Barca do Inferno. Essa foi a terceira edição desenvolvida de raiz a partir de clássicos portugueses – o segundo foi o já mencionado Amor de Perdição, o primeiro foi Os Maias, de Eça de Queirós, por José de Freitas e Canizales. “Dado o seu sucesso, este ano propusemos à RTP continuar a colecção unicamente com autores portugueses. É a primeira vez que se faz algo do género, vão ser 15 títulos de Clássicos Portugueses em BD, como A Mensagem e O Sermão aos Peixes”, diz Sílvia Reig, CEO e fundadora da Levoir, que se mostra orgulhosa por estar “a contribuir para a promoção da leitura e da cultura literária”. Em contraste, sem ousar desfazer da qualidade das obras, Diana Garrido – co-responsável pela Iguana, chancela de banda desenhada e novelas gráficas da Penguin –, revela alguma saturação com a adaptação dos clássicos.

“Já não se aguenta mais essas coisas”, desabafa Garrido. “Há muita coisa boa a fazer-se agora e muitos autores que merecem ser lidos. Neste momento, estamos mais interessados em pegar em romances contemporâneos – nossos, claro, porque é mais fácil por causa dos direitos, mas temos muitos e bons – e transformá-los em banda desenhada. Uma vez que [o formato] está a crescer e as pessoas estão a descobrir que é de facto incrível, é uma forma, talvez, desses romances contemporâneos chegarem a mais pessoas, que possam ler num formato que lhes interesse mais. Depois, quem sabe, poderão ler os originais.” Nisso parecem todos concordar. Independentemente das preferências editoriais e do que acham que é ou não uma boa adaptação, tanto editores como autores (desenhadores incluídos) estão confiantes de que é uma boa maneira de pôr as pessoas a ler mais. “Em Portugal, os leitores de banda desenhada são leitores exigentes, mas há agora uma nova geração”, alerta Helena Rafael. “Num tempo tão atravessado pela rapidez e a imagem, é um canal muito apetecível a chegada a determinados textos através da banda desenhada.”

Texto actualizado, originalmente publicado na edição de Verão 2023 da revista trimestral Time Out Lisboa.

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