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Na Ponta da Areia, Pequenos Sons da Boca
Paulo Nunes/DR

A festa do teatro, entre a Trafaria e Nova Iorque

‘Na Ponta da Areia, Pequenos Sons da Boca’ começa na rua e à rua volta, depois de mergulhar no silêncio do Casino da Trafaria. O novo espectáculo da Arte33 é uma “comédia sórdida”, com direcção artística de Ana Nave, e estreia-se a 30 de Junho.

Hugo Torres
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Hugo Torres
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“A Trafaria é um sítio magnífico para visitar. Então nesta altura do ano, é uma vila lindíssima.” É por lá que Ana Nave nos quer ver às sextas-feiras e sábados, a partir de 30 de Junho e até 29 de Julho. A actriz, que conhecemos de um sem-fim de produções para televisão e cinema, do longínquo Duarte & C.ª ao mais recente Snu, filme em que interpretou Natália Correia, tem também um longo percurso pelo teatro e desde 2017 que desenvolve o seu trabalho como encenadora enquanto directora artística do Núcleo Cultural Arte33, em Almada. Bianualmente estreia um espectáculo que resulta da investigação sobre a história de um local, primeiro, e que a seguir envolve a comunidade na criação. Sempre em Almada. Depois da Costa da Caparica e de Cacilhas, é a vez da Trafaria.

Com o Tejo e Lisboa ao fundo, o cenário era o ideal para o que Ana Naves queria fazer: Pequenos Sons da Boca, da dramaturga, argumentista e actriz norte-americana Bess Wohl. “É uma peça quase sem texto”, conta Ana Nave por telefone. Estreada Off-Broadway em 2015, recebida com encómios da crítica (incluindo os da Time Out Nova Iorque) e reposta logo a seguir, a peça é sobre um grupo de seis pessoas que decide fugir da vida agitada da cidade e fazer um retiro de silêncio, durante cinco dias. “Estávamos à procura de um sítio que fosse periférico a Lisboa, mas não muito longe, porque as personagens vão fazer um retiro fora de uma grande cidade mas perto dela. E, dentro deste projecto comunitário, pareceu-nos que a Trafaria era o sítio ideal pela sua história e pelas suas características.”

Mas para que precisaria Ana Nave que o contexto geográfico fosse favorável à narrativa de Wohl? Porque a peça é apenas a segunda parte do espectáculo. A primeira chama-se Na Ponta da Areia, título que descreve a Trafaria poética e factualmente, e passa-se nas ruas da vila. Aí, durante cerca de meia hora, o público, munido de um mapa, é convidado a descobrir pequenas histórias locais através de formas animadas. “Apesar de haver uma pessoa que tem uma história com fantoches, são sobretudo caixas com uma técnica que se chama teatro lambe-lambe”, revela Ana Nave. A expressão é brasileira e remete para os fotógrafos lambe-lambe, que em Portugal conhecemos como à la minute. O espectador tem de espreitar por um orifício para dentro da caixa, onde está a ser contada uma história, de forma breve (cerca de dois a três minutos), com recurso à manipulação de objectos.

Na Ponta da Areia, Pequenos Sons da Boca
Paulo Nunes/DR

Este início resulta do trabalho de pesquisa que o Arte33 começou a fazer há um ano em parceria com o Centro de Arqueologia de Almada, em particular com o historiador Francisco Silva. Mas não são exactamente adaptações directas do que registaram nos “laboratórios de memórias”, como lhes chama Ana Nave, com as gentes da terra. “Algumas são ficcionadas”, diz. “Partimos de um facto ou de uma pesquisa e acabámos por ficcionar algumas porque as pessoas, a comunidade da Trafaria, também têm as suas histórias, que às vezes colidem com as investigações históricas.” Por isso, optaram por fantasiar a partir delas, mas de modo a que as pessoas se revissem no que está a ser relatado. “Há uma, por exemplo, que é contada por um manipulador que anda vestido com uma barraca de fantoches. Um fantoche é uma espécie de diabo, que anda a perseguir outro, que é o Zé Carapau, um pescador que tem de fugir muitas vezes à polícia porque tem de cumprir as regras dos pescadores no rio. Essa história tem muitas características e até algum palavreado que é característico ali. Por isso, as pessoas conhecem bem essa realidade.”

São histórias “contadas de forma simples e divertida”, garante Ana Nave. Outra: “Há uma personagem que é uma forma animada que uma das manipuladoras veste, e que anda a contar uma história de como a Trafaria era uma colónia balnear e a rainha D. Amélia levava crianças a passar o dia ali na praia, quando se começou a achar que a praia fazia bem à saúde. Essa também é muito engraçada. Há fotografias desses episódios, de chegarem 60 crianças, todas com chapéus de palha, e a rainha D. Amélia à frente a guiar a colónia”.

Na Ponta da Areia, Pequenos Sons da Boca
Paulo Nunes/DR

É nesse cenário que entram os seis personagens a caminho do seu retiro, misturando-se com o público e encaminhando-se depois com ele para o Casino da Trafaria, onde às 21.30 arranca Pequenos Sons da Boca, a segunda parte do espectáculo. “As personagens da peça de Bess Wohl chegam a este sítio onde as pessoas estão a contar histórias e depois dirigem-se para o Casino, que é um edifício magnífico. Foram os veraneantes que construíram aquele sítio nos anos 1940, para se encontrarem, e tem um edifício lindíssimo, com uma sala onde se passará esta comédia, sórdida, mas comédia.” Os Recreios Desportivos da Trafaria, que detêm o Casino, são co-produtores do espectáculo. Este espaço “tem uma história incrível”, continua Ana Nave. É ali que funciona o GITT, “um grupo de teatro amador que é muito importante na história do teatro em Portugal, porque passaram por lá nomes como a Fernanda Lapa, o Rogério de Carvalho, o José Manuel Castanheira”. “Nos anos 1970, aquele espaço teve uma importância enorme no teatro. E de certa maneira pareceu-nos que podia ser o sítio ideal para as reflexões que gostávamos de fazer, que é como que nos conectamos uns com os outros. É um dos propósitos da peça.”

O cenário é obra de Rui Francisco, cenógrafo ligado a O Bando, cujo intuito é, por isso, envolver todas as pessoas que ali estão. “Como se estivéssemos todos, público e actores, dentro deste retiro de silêncio”, revela Ana Nave. São todos recebidos à entrada por “um orientador do retiro, um mestre”, e uma vez lá dentro impera o silêncio. Como é que se comunica nessas circunstâncias? “A comunicação é obra criativa dos actores, que arranjaram maneira de o fazer. Acontecem situações muito cómicas, e até algumas situações embaraçosas, de equívocos, mas que se vão relacionando porque a peça se passa em cinco dias, embora seja só uma hora e um quarto, em que o público e os actores estão na mesma situação: estamos todos em silêncio. Por isso é que acontecem situações muito cómicas. Às vezes, o silêncio é muito eloquente”, ri-se a encenadora. O público está também a decifrar como é que os actores comunicam sem palavras. “Cada um cria o seu preconceito acerca de cada personagem e que, mais tarde, vai revelar que as personagens, as pessoas, são muito mais do que aquilo que parecem.”

Na Ponta da Areia, Pequenos Sons da Boca
Paulo Nunes/DR

Sobra uma pergunta: como é que se chega às grandes questões da vida em silêncio? No final, antecipa Ana Nave, chega-se “à conclusão de que precisamos de nos ligar uns aos outros”. O espectáculo é diversificado em técnicas, nota, mas “é sobretudo um espectáculo para juntar as pessoas”. “Devemos estar conectados com os outros, porque apesar de tudo, da comunicação e das redes sociais, que felizmente existem, precisamos de falar uns com os outros.” O que leva a que haja ainda uma terceira parte para este espectáculo, de volta ao exterior, à saída do Casino, onde as pequenas formas animadas já se transformaram em gigantes formas animadas e que “fazem uma espécie de um baile, que envolve o público e novamente os actores que tinham entrado para o retiro”. É a hora da festa.

Recreios Desportivos da Trafaria – Casino. 30 Jun-29 Jul. Todas as sextas-feiras (excepto 14 Jul) e sábados, e domingo 16 Jul. 21.00. 6-10€

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