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Mário Cruz na exposição 'Roof'
Francisco Romão PereiraMário Cruz na exposição 'Roof'

“A questão da habitação não é uma crise, é um problema crónico”

O premiado fotógrafo Mário Cruz inaugura, a 27 de Abril, uma exposição para lembrar que a revolução foi bela, mas há direitos por conquistar. "Roof" são as casas de quem ficou sem casa, debaixo dos nossos olhos, fora das estatísticas.

Rute Barbedo
Escrito por
Rute Barbedo
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“Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.” O artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa é o tapete estendido para a nova exposição de Mário Cruz, "Roof", que vai estar até 9 de Junho no Antigo Recolhimento das Merceeiras, um edifício abandonado (cedido pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para esta mostra) no coração do turismo, Alfama, rodeado por alojamentos locais e lojas de souvenirs.

A exposição não é apenas de fotografia. Há uma experiência que se vive no edifício escolhido a dedo. De cada vez que se vai à janela para mudar o ponto de vista, sai-se das paredes lúgubres habitadas pelo senhor António, ex-combatente na Guerra Colonial que vive com uma reforma de 580 euros nas traseiras do Palácio de Belém, ou da vida de Joana (nome fictício), que todos os dias, depois de trabalhar num restaurante da Expo, torna a uma espécie de gruta onde dorme com a filha pequena; e quando se sai a vista é para o conforto de um hostel, janelas abertas, luz de Lisboa a entrar.

Senhor Gomes, morador de uma casa improvisada em Chelas
Mário CruzSenhor Gomes, morador de uma casa improvisada em Chelas

"Lisboa é uma das cidades mais caras para arrendar casa e, ao mesmo tempo, foi considerada um dos melhores destinos turísticos da Europa", lembra o fotógrafo Mário Cruz, que venceu por duas vezes o World Press Photo. É esta a dialéctica que traz para o edifício da Santa Casa, onde chegaram a ser acolhidas pessoas em situação de fragilidade social. O trabalho começou em 2013, durante a Troika, e terminou no ano passado, de forma interrupta. Mas “este problema não acabou”, aponta o fotojornalista, que aproveita para rever o nosso discurso sobre o tema da habitação: "Uma crise é, supostamente, uma coisa que passa. E esta questão da habitação não é uma crise, é um problema crónico."

Nos quartos, salas, cozinhas e corredores do edifício, há retratos em negativo de pessoas que ficaram sem casa de um momento para o outro, "como pode acontecer a qualquer um". "Não são pessoas ligadas a consumos, problemas de dependência, nada disso. São pessoas comuns." Estão em negativo porque foi a forma que o autor encontrou para abordar a sua invisibilidade, o facto de estarem "fora das estatísticas".

'Roof', de Mário Cruz
Francisco Romão Pereira'Roof', de Mário Cruz

Há também obras embargadas, casas entaipadas, vedações em improviso, escolas ocupadas por dezenas de pessoas, distribuídas por diferentes famílias, empresas falidas onde agora se penduram quadros e naperons, onde se encaixam vasos com flores e cortinados translúcidos. “Todas estas casas pareciam estranhamente normais e isso foi uma coisa que mexeu comigo”, diz o fotógrafo. Os tectos podem cair, mas, nestas pequenas coisas, há a procura da beleza, do conforto ou, como analisa Mário, da "dignidade". Nas casas de Marvila, Campolide, Sete Rios, Alto de São João, Sapadores ou Belém, por todo o lado, há também o equilíbrio entre “a fragilidade das pessoas e a fragilidade dos locais”, na busca do tal direito, “a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.

O desemprego de 2013, a impotência de 2023 

Há três períodos que marcam este trabalho feito a dez anos. O primeiro é em 2013: “Eu andava muito por Lisboa, na altura trabalhava na Lusa, e ia reparando em pequenos sinais nestas casas. Uma roupa pendurada, um tapete à porta, os cadeados, janelas tapadas por cartão ou trilhos no meio da vegetação. Depois construí um mapa e comecei a ir aos sítios. Foi um trabalho difícil, porque nunca sabia o que ia encontrar.” Naquele ano, marcado pela Troika, o que encontrou foram sobretudo pessoas sem emprego (o desemprego atingiu 855 mil pessoas, ultrapassando a taxa de 17%), que não conseguiam aceder a habitação. Era um problema transversal, nada tabu e as pessoas davam a cara por ele. Em 2013, era normal ficar sem casa.

'Roof', de Mário Cruz
Francisco Romão Pereira'Roof', de Mário Cruz

Em 2019, quando voltou a fotografar, o cenário era outro. “Havia uma vergonha escondida”, embora todos a conhecessem, da polícia à política. “Há casos em que os próprios senhorios sabem que vive lá gente, mas percebem que são pessoas que têm os seus empregos e que não tiveram hipótese, que não conseguem ter uma casa. Por isso, deixam-nas estar.”

"Os portugueses sofrem muito em silêncio”, constata Mário Cruz, comparando a outras culturas em que muitas vezes os problemas são levados como rastilhos para a praça pública, como na Grécia durante os anos da Troika ou em França, perante ameaças de desequilíbrio social. Em 2019 e também em 2023, quando Mário Cruz voltou ao terreno, as pessoas tinham emprego, acordavam em casas abarracadas às oito da manhã para apanhar os transportes e voltavam (ou voltam, porque o problema não terminou para muitas delas) na incerteza de encontrarem os seus objectos pessoais. São pessoas que de dia trabalham num restaurante e à noite defecam em bacias (as casas de banho possíveis), tomam banho com a ajuda de garrafas e garrafões, na água aquecida ao sol. “Ainda falta pôr isso aqui, os garrafões”, sinaliza o fotógrafo, embrenhado na reconstrução do ambiente que viveu nestes anos.

Em 2023, a taxa de desemprego foi de 6,5%. “Os salários não aumentaram e os preços da habitação são aquilo que sabemos. Em dez anos, a cidade transformou-se descontroladamente e isso afectou todos”, a par da subida das taxas de juro, para quem comprou habitação. Entre as pessoas que Mário Cruz conheceu há famílias, casais, pessoas sozinhas, de 40 anos, de 70, empregadas, pensionistas, desempregadas. Não há um padrão. “Fotografei um colaborador da Câmara que vivia assim. Como é que isto é possível? Quando voltei a fotografar, fui às mesmas casas e a outras. Algumas pessoas ainda lá estavam, na mesma situação, outras tinham mudado. Algumas casas tinham sido transformadas em hotéis, outras desapareceram." O problema, nota, piorou.

Não é conjuntural, mas estrutural

“Não consigo justificar o que vivemos agora com questões como a Covid ou os conflitos internacionais. Tudo teve impacto, sim, mas este é um problema estrutural. Passaram-se anos e nada foi feito”, aponta o fotógrafo. Foi por isso que Mário Cruz foi regressando ao tema, uma e outra vez. A última foi em 2023, pela proximidade aos 50 anos de um direito que ainda não está conquistado, o da habitação, como explica o autor: “Comecei a ficar um bocado irritado com as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, tenho de confessar. É tudo excessivamente focado no passado e pouco no que ficou por resolver.”

'Roof', de Mário Cruz
Francisco Romão Pereira'Roof', de Mário Cruz

Em 2024, ano em que as fotografias saem para o papel para nos confrontar com o que passa, o que temos? “Não consigo compreender… Aliás, é fácil de compreender, mas é difícil de aceitar”, corrige-se Mário Cruz, que acredita que “agora a situação está muito pior” e que “não é um problema que se possa regular através do mercado”. Tem de ser através de medidas políticas, defende. 

“Um dia, estava com uma destas pessoas, que vivia num anexo de uma oficina e apareceu uma assistente social. Eu disse que era jornalista e eles disseram que eu não precisava de estar ali, porque o caso estava a ser acompanhado. Passados três dias, ligaram-me a dizer que lhes tinham arranjado uma casa. Só pensei: como eu gostava de encontrar as pessoas certas em todas estas situações.”

Com música de Tó Trips como banda sonora, além das fotografias, a exposição inclui vídeo e vive de toda a mise en scène da habitação precária, difícil, do "lado escondido" do problema, no qual, aqui, somos convidados a entrar. A par da exposição, há um livro (distribuído pela FotoEvidence e que tem lugar garantido em Arles, nos encontros de fotografia mais importantes da Europa), "feito de materiais pouco nobres", tal como estas casas, limitado a uma edição de 500 exemplares. A peça é composta por quatro tomos (um livro, um caderno, um desdobrável e um jornal com recortes sobre o tema, o artigo 65.º e um texto de Sebastião Almeida, ex-jornalista da Time Out), que vêm dentro de uma caixa selada e que "é preciso rasgar". A primeira fase de "Roof" foi publicada no jornal The New York Times e distinguida com o prémio Magnum 30 Under 30, da agência Magnum Photos.

Rua Augusto Rosa, 15. 27 Abr-9 Jun. Qua-Sex, 14.00-18.00, Sáb-Dom, 10.00-18.00

Artigo corrigido às 12.28 de 20 de Abril (por lapso, a jornalista trocou as identidades do senhor Gomes e do senhor António).

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