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Pérola Sem Rapariga
© Filipe FerreiraPérola Sem Rapariga

A rir e a dançar, estas duas mulheres levam-nos ao fundo do mar

Através do corpo, da palavra e dos objectos, duas mulheres contam-nos acerca da experiência de fazer parte da comunidade negra. ‘Pérola Sem Rapariga’ pode ser vista entre 24 e 26 de Maio, no CCB.

Beatriz Magalhães
Escrito por
Beatriz Magalhães
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De pé, lado a lado e imóveis, Filipa e Sara olham em frente. Quase vazio, o palco deixa espaço para as duas intérpretes o ocuparem. Lá do fundo, a passos largos, as duas avançam em direcção ao centro. Naquele momento, no silêncio que se abate sobre a sala, o som dos pés descalços a bater no chão invade todo o espaço. Depois de se moverem em conjunto pelo palco, as duas afastam-se. É nessa altura, enquanto uma se encontra na frente e a outra retorna ao lugar inicial, que se ouvem as primeiras palavras. “Não mostra os dentes, cara séria, outra vez, sem mostrar os dentes”, é Sara quem o diz a Filipa, que agora na ponta do palco olha para onde estará o público. À medida que o seu corpo se vai movimentando de forma rítmica até perder o controlo, o espaço torna-se dela. É desta forma que Pérola Sem Rapariga nos mergulha nas experiências que estas duas mulheres nos contam com o corpo, o olhar e as palavras.

Pérola Sem Rapariga
© Filipe FerreiraPérola Sem Rapariga

A peça é a primeira parte de um díptico que junta Zia Soares e Djaimilia Pereira de Almeida. Como inspiração para esta obra serviram Voyage of the Sable Venus and Other Poems, da autora norte-americana Robin Coste Lewis, e o arquivo fotográfico de Alberto Henschel. A encenadora, Zia Soares, confessa que não chegou a ler o livro, mas uma das fotografias de Henschel captou a sua atenção. A partir do retrato de uma mulher negra, nua e com um brinco de pérola, nasceu, não só o título da peça, como também uma das ideias centrais que a percorre – o olhar, a forma como se olha, para quem se olha e como é que alguém se deixa olhar. “Do meu ponto de vista, este espectáculo amplifica muitíssimo esse papel de olhar e de ser olhado e, muitas vezes, o protagonista do olhar ou do ser olhado vai variando”, reflecte Zia Soares, após um ensaio no estúdio Tóbis. 

Neste sentido, “entra aqui também a questão de serem duas mulheres que estão na cena que se dispõem a serem vistas, sem artifícios, sem nada, com toda a fragilidade, mas também com toda a força que isso tem”. Desde o início, há uma dança que se estabelece entre as duas intérpretes em que, ao som da música, o movimento do corpo conta a sua história, sem que sejam necessárias grandes palavras. Na primeira cena, o riso torna-se veículo para uma sequência em que o descontrolo sobre o corpo e sobre o próprio acto do riso, que se vai propagando e ecoando pela sala, ganha uma força singular e até opressiva.

Pérola Sem Rapariga
© Filipe FerreiraPérola Sem Rapariga

Os restantes elementos contribuem também para a criação deste estado, que, por outro lado, nos remete para a ideia de travessia, de viagem, de migração e de transição, condições às quais as pessoas racializadas estão, muitas vezes, sujeitas. “É também muito as nossas vivências enquanto pessoas negras. Esta condição de estar sempre a transitar, ser tudo lugares transitórios, lugares que se constroem, que desaparecem e que voltam a aparecer”, explica a encenadora. O som da água, que nos leva ao fundo do mar, o conjunto de objectos que se espalham pelo palco, do escadote e bancos de madeira às instalações que não lembram coisa nenhuma, tudo acaba por fazer parte deste imaginário. “Este acumular de pequenas coisas inúteis, um pedaço de madeira ou uma corda, que depois vão tomando outras formas que não aquelas originais e vão tomando outros significantes que não o seu significado inicial.”

Desta forma, a peça vive de um carácter visual forte. Aliás, em palco, encontram-se várias obras artísticas de Kiluanji Kia Henda. Partem do conceito de radiografia e apresentam fotografias tiradas em Luanda que, apelidadas por Zia Soares de “pronúncios do fim do mundo”, protagonizam um momento que culmina na ideia de fim, sendo que estas são depois cobertas com um manto negro, indicando assim um novo começo. Para a encenadora, esta interdisciplinaridade de práticas artísticas é fundamental no seu trabalho. “Eu não enceno só actrizes e palavras, eu enceno tudo em conjunto, imagens, coreografias, gestos, movimentos. Para mim, tudo é encenação e tudo tem a mesma valência, o texto não é hegemónico aqui, ele tem tanta valência como tem uma imagem, como tem um som, como tem uma música.”

Pérola Sem Rapariga
© Filipe FerreiraPérola Sem Rapariga

O espectáculo foi apresentado, pela primeira vez, em Junho de 2023, em Alcanena. Uns dias depois, chegou a São João da Madeira e, em Março deste ano, foi mostrado em Guimarães. Esta sexta-feira, 24 de Maio, estreia em Lisboa, no Centro Cultural de Belém. Porém, a peça que foi apresentada há quase um ano não é a mesma que se vai ver no CCB. “Houve coisas que ela [a autora, Djaimilia Pereira de Almeida] trouxe escritas e que foram embora, há coisas que eu mandei embora e que agora resgatei, há gestuários que nós trabalhámos que eu tinha descartado e que agora recuperei para esta reposição.” Em Maio de 2024, Pérola Sem Rapariga sobe a um palco diferente, de um mundo diferente, e aos olhos de uma Zia Soares “com muitas outras camadas”.

CCB – Centro Cultural de Belém. 24-26 Mai. Sex 21.00, Sáb e Dom 19.00. 10€-15€

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