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Ai Weiwei, artista de um mundo em transe

“Rapture” é a primeira exposição do artista e dissidente chinês Ai Weiwei em Portugal, onde está actualmente a viver. Falámos sobre o trabalho, a vida e o sol do Alentejo.

Luís Filipe Rodrigues
Escrito por
Luís Filipe Rodrigues
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Ai Weiwei é um dos mais populares artistas contemporâneos. Talvez o mais popular. Uma das últimas grandes mostras do seu trabalho, “Raiz”, foi vista por mais de um milhão de pessoas em 2019, quando viajou por várias cidades brasileiras – só no Rio de Janeiro teve 600 mil visitantes. Nenhum outro artista, vivo ou morto, levou tanta gente a uma exposição nesse ano e, enquanto durar a pandemia, não sabemos se alguém voltará a levar. Só sabemos que, a partir desta sexta-feira, 4 de Junho, o seu trabalho poderá ser visto na Cordoaria Nacional.

“Rapture” será a primeira exposição de Ai Weiwei em Portugal, onde o dissidente chinês está a viver. Será também uma das maiores que já fez, ocupando uma área de 4356 metros quadrados – maior só mesmo a anterior “Raiz”. Quando lhe perguntamos porque deu à sua nova exposição aquele nome, “Rapture” (arrebatamento), ele evita responder. Quer que as pessoas tirem as suas próprias conclusões. A folha de sala, porém, oferece várias leituras para a palavra: “o momento transcendente que conecta a dimensão terrena e a dimensão espiritual”; “o sequestro dos direitos e liberdades de cada um”; “a ligação entre o entusiasmo sensorial com o êxtase”.

Concentremo-nos nessa primeira leitura. Quer a “dimensão terrena”, quer a “dimensão espiritual” da sua obra estão representadas nos dois núcleos ou flancos da exposição. De um lado, vão encontrar-se as suas criações mais engajadas, reflexo das preocupações políticas, ambientais e sociais; do outro, estão as peças mais “fantasiosas”, preocupadas com uma incessante busca pelas raízes culturais e a recuperação de certas tradições. Juntos, os dois núcleos pretendem dar uma visão panorâmica do trabalho do chinês.

“É a melhor oportunidade para os portugueses perceberem o que aconteceu ao longo da minha carreira. Estão lá muitos trabalhos, em diferentes meios: fotografias, esculturas, instalações, murais, filmes”, elenca, numa conversa através do Skype. “[‘Rapture’] acompanha os últimos 20 anos do meu percurso”. De fora desta lista e, presume-se, da exposição fica a escrita, outro vértice do seu trabalho. “É o mais difícil de fazer, para mim”, confessa. “Mas adoro a linguagem, no geral, e a escrita, em particular. O meu próximo livro deve sair no final do ano. É um livro de memórias. Estou a escrevê-lo há uma década.” 

As memórias que esse livro guarda não são apenas as suas. “Vai desde o nascimento do meu pai até ao nascimento do meu filho. Cobre 99 anos”, conta. O passado – não apenas o dele, como o do pai, o poeta Ai Qing – é importante para perceber o presente de Ai Weiwei. Ai Qing nasceu em 1910, na China, e foi baptizado Jiang Zhènghán. Assumiu o nome pelo qual ficou conhecido nos anos 1930, quando foi preso por se opor ao Kuomintang, o Partido Nacionalista Chinês, que dominou o país no segundo quarto do século XX, antes ser derrotado pelo Partido Comunista Chinês e recambiado para Taiwan em 1949.

Ai Qing era um comunista, “um revolucionário”, nas palavras do filho. Apesar de pertencer ao Partido, durante a revolução cultural foi enviado para um campo de trabalho por ser considerado um “direitista”. Estávamos em 1958. Ai Weiwei nascera pouco antes, em 1957. “A experiência de vida do meu pai ensinou-me muito”, confessa. “Enviaram-nos para Xinjiang, a região dos uigures, e eu vivi lá até ter 17 ou 18 anos.” Foi então que voltou a Pequim. As sementes para o seu regresso foram plantadas em 1976, quando Mao Tsé-Tung morreu, Hua Guofeng o sucedeu, o Bando dos Quatro caiu em desgraça e a revolução cultural começou a ser desmantelada. 

Pouco depois, Deng Xiaoping tomou o lugar de Hua à frente do país e, por volta de 1979, Ai Qing não só voltou do exílio, como foi reconhecido como um grande poeta, “o mais celebrado da China moderna”. Manteve o estatuto até morrer, em 1996. Ai Weiwei lembra, orgulhoso, que o pai foi “condecorado pelo Presidente português nos anos 90”. É verdade. O escritor foi agraciado por Mário Soares com a Ordem da Liberdade e da República Portuguesa, por “serviços relevantes prestados em defesa dos valores da Civilização, em prol da dignificação da Pessoa Humana e à causa da Liberdade”.

Ai Weiwei
© Bob WolfensonAi Weiwei

Entre 1979 e 1996, porém, a vida de Ai Weiwei deu muitas voltas. Estudou na Academia de Cinema de Pequim, mas no início dos anos 80 partiu para os Estados Unidos. “Podia ser perigoso para mim continuar na China. Era um bocado rebelde, algumas pessoas que eu conhecia foram presas, e percebi que não tinha futuro”, recorda. Na América, fez todo o tipo de trabalhos. Foi artista de rua, carpinteiro, e com o tempo viu que os Estados Unidos estavam longe de ser perfeitos. Antes pelo contrário. “Numa sociedade capitalista, os problemas são outros”, diz. “Não tenho interesse no sonho americano, e como o meu pai estava doente tive uma boa razão para regressar [à China]. Acompanhei-o até morrer.”

De volta à China, no início, a sua vida era boa. “Talvez por causa do meu pai. Ele era muito respeitado e acho que isso me deu uma certa…” Faz uma pausa, mede as palavras: “Protecção”. Durante vários anos, o talento de Ai Weiwei foi reconhecido no seu país natal. Foi um dos autores do Estádio Nacional de Pequim, que recebeu os Jogos Olímpicos de 2008. Até que os textos que escrevia no seu blogue, segundo ele, lhe trouxeram problemas. “Defendia a liberdade de expressão e outras causas. E fiquei marcado. Um dia a polícia bateu-me, depois fui preso”, lembra. “Estavam a tentar calar-me.”

Entre 2011 e 2015, esteve em prisão domiciliária. Eventualmente, deixaram-no sair do país porque “consideraram que era um dos bons”. Será que ainda o consideram um dos bons? Afinal, é um dos mais conhecidos dissidentes chineses. “Não sei mesmo. Teria de regressar ao país para ver se me voltam a deixar sair.” É algo que em pensa, regressar? “Todos os dias. A minha mãe vive lá, e está velhinha. Penso nela todos os dias.” Não volta porque tem medo de ser preso. Mas também tem medo de não ser preso. “Temo que o meu inimigo se tenha esquecido de mim. Ou que me tenha perdoado.”

Por agora, o plano é continuar em Portugal. Em 2019, trocou Berlim, onde vivia desde 2015, por Cambridge, por se sentir alvo de discriminação na Alemanha, mas no ano passado comprou uma propriedade rural no Alentejo. Quer regressar à Inglaterra, mas só “de visita”, de passagem. “Não tenho só uma casa aqui. Tenho uma galinha, tenho um pedaço de terra, tenho pássaros, gatos e cães”, enumera. “Há muitas razões para continuar em Portugal. Faz sol em 90% dos dias. É uma tremenda generosidade da natureza. Adoro as árvores, adoro a relva, adoro as flores. E adoro a comida portuguesa. As pessoas também são muito simpáticas. São pessoas normais. Sinto que estou de volta ao lugar onde cresci.”

Não tem estado apenas a aproveitar o sol e a natureza em Portugal. Tem estado a trabalhar, “a tentar perceber a cultura e o artesanato”. Fez peças com “mármore e cortiça”, trabalhou com uma fábrica de porcelanas portuguesas, com azulejos. Estas criações poderão ser vistas pela primeira vez na Cordoaria Nacional, ao lado de algumas das suas obras mais conhecidas, como Snake Ceiling (2009), uma instalação em forma de serpente constituída por centenas de mochilas de crianças, que evoca estudantes mortos no terremoto de Sichuan, em 2008; ou Circle of Animals (2010), uma série de esculturas que remete para as 12 cabeças de animais do zodíaco chinês que adornavam o jardim de Yuánmíng Yuán, o Antigo Palácio de Verão da dinastia Qing, nos arredores de Pequim.

Pouco antes de nos despedirmos, a conversa desemboca no papel da arte nas vidas das pessoas. Será que as pode ajudar de alguma forma? “O que eu faço não é necessário, e não é assim assim tão relevante”, começa por dizer. “Talvez seja por isso que tento comunicar através de tantos meios – filmes, conversas, escrita – e fazer-me escutar. Como um pássaro. Os pássaros fazem barulho e vão-se embora, a voar. A vida humana é igual. Não sei que sentido, que impacto, a vida de uma pessoa pode ter. Mas não é por isso que ela deixa de se fazer ouvir.”

Cordoaria Nacional. A partir de 4 de Junho. Seg-Sex 10.30-19.30, 6-13€; Sáb-Dom 10.30-19.30 7-15€.

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