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Diogo Faro
Francisco Romão Pereira/Time OutDiogo Faro, do movimento cívico Casa É Um Direito

“As pessoas não têm mil euros para dar por um T1”

A crise da habitação fez surgir, em associações de bairro ou no espaço digital, uma onda de movimentos cívicos em Lisboa. “Muita gente passou a não se sentir sozinha”, diz um dos activistas. A 1 de Abril, voltam a sair à rua como parte de um protesto à escala europeia, os Housing Action Days.

Joana Moreira
Escrito por
Joana Moreira
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Multiplicam-se as histórias de divorciados que continuam a viver na mesma casa, de adultos que tornam à morada dos pais, de jovens que confinam vidas em quartos, isto quando não os partilham com desconhecidos. São os retratos mais visíveis da crise da habitação, os que chegam através de mensagens e partilhas pelas redes sociais. Depois, há os outros. Os dos idosos que deixam de comprar a medicação para pagar a renda, e os que têm vergonha de assumir as dificuldades que enfrentam.

Muitos testemunhos têm, nos últimos meses, chegado à caixa de mensagens de Diogo Faro. Em Dezembro, confrontado com as notícias de que a renda média em Lisboa tinha ultrapassado, pela primeira vez, os dois mil euros (conclusão de um estudo realizado pelo portal imobiliário Imovirtual), o humorista de 36 anos fez um vídeo que “escalou”, recorda. Escalaram também as histórias de pessoas em situações insustentáveis. “Se ignorar isto tudo parece que andei aqui só para ter likes”, pensou. Com quatro amigos, criou o movimento cívico e apartidário Casa É Um Direito. “Temos uma capacidade comunicacional enorme”, assume, e por isso o colectivo foca-se em criar “posts apelativos que chegam a uma data de gente”. Incluindo quem pode ajudar. Faro criou uma base de dados com profissionais, “essencialmente advogadas e psicólogas”, disponíveis para dar apoio jurídico e psicológico pro bono, para quem encaminha muitos dos casos que recebe, desde quem dá sinais de alerta quanto à saúde mental até quem se vê perante uma situação de despejo. “Nem todos os senhorios são monstros, mas é muito injusto o que está a acontecer para montes de gente e é difícil ficar calado”, diz. Sobretudo quando sabe que uma voz desperta outra, e outra. “Muita gente passou a não se sentir sozinha. Dá força e ânimo sentir que afinal não são um caso de azar na vida. Não são um falhanço. Há é um sistema que não as está a deixar avançar, enquanto uma minoria está cada vez mais rica.”

O rosto de Diogo Faro tem marcado presença em fóruns públicos sobre o problema da habitação em Portugal, e em Lisboa em particular, mas há muito que organizações se dedicam a reivindicar a luta por um tecto. Só que a urgência do problema está a promover novos movimentos cívicos, que alertam para a necessidade de soluções, também, a uma escala comunitária.

No bairro Portugal Novo, nas Olaias, colam-se cartazes para a primeira manifestação do Vida Justa, um movimento criado nos bairros periféricos de Lisboa que quer exigir isso mesmo: uma vida justa, num apelo que não se esgota na crise habitacional. Sob o mote “basta de aumento de preços”, a organização exige “limitar os preços dos bens essenciais”, “salários para viver” e “casas para as pessoas (e não para a especulação)”.

Nuno Furtado, 41 anos, é um dos activistas deste grupo. Cresceu ali, no que os moradores chamam corriqueiramente de Bairro Azul, em virtude do tom já gasto das paredes dos edifícios, mas que é formalmente designado como Portugal Novo. “Curiosamente é o Portugal Novo, mas de novo isto não tem nada”, diz sobre o bairro construído na década de 1970 por uma cooperativa de habitação, entretanto falida. Hoje, o bairro está ao abandono. Avista-se roupa estendida, janelas revelam casas ocupadas, mas que não pertencem, de facto, a ninguém. “As casas não são das pessoas. As pessoas vivem aqui com o credo na boca. Não sabem o dia de amanhã”, alerta. “Assisti a pessoas que saíam de casa, iam de férias, e quando voltavam tinham a casa arrombada, com pessoas a viver lá dentro. E a polícia só pode acompanhar as pessoas para ir lá a casa e tirar os seus pertences e sair. Não pode meter a ordem e dar o direito à pessoa que toda a gente aqui sabe que vive lá e que ela é que foi invadida.”

Os seis lotes, com 322 casas, estão edificados sobre terrenos municipais, mas as casas não pertencem à autarquia. “Estamos a falar de casas que durante 40 anos não tiveram qualquer tipo de intervenção. As condições degradaram-se muito.” No ano passado, o imbróglio parecia mais perto do fim, com a Câmara Municipal de Lisboa a anunciar que ia avançar com a regularização do bairro, depois de, em 2021, o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) ter perdoado a dívida da cooperativa. Porém, os moradores temem ter de sair das ruas que chamaram suas durante décadas. “A Câmara está a fazer o levantamento dos fogos para que legalizem as pessoas que vivem nas suas casas. Esse processo é bom, mas deixa-nos a dúvida sobre o que vai acontecer no futuro. Se isto vai para demolição, onde é que as pessoas vão viver?”, pergunta.

Nuno Furtado e Nuno Barbosa, do movimento Vida Justa
Francisco Romão Pereira/Time OutNuno Furtado e Nuno Barbosa, do movimento Vida Justa

Com o ritmo galopante de preços no coração da cidade, a localização, a dois passos da rotunda das Olaias, é vista como uma porta para a potencial expulsão dos moradores sem direitos sobre a propriedade. “É muito provável que, quando a Câmara puser a mão nisto, queira realojar este povo todo em algum lado, mandar isto abaixo e aí fazer um empreendimento qualquer onde vai ganhar muito dinheiro”, acredita. "É isso que acontece." De uma coisa Nuno Furtado não tem dúvidas: os moradores querem ficar, mas com condições dignas. “É muita casa, é muita gente. Estamos a falar de famílias numerosas. Também será outro problema. Como é que vão fazer as famílias? Vão continuar numa casa que tenha sete ou oito famílias? Vão continuar a meter as sete ou oito famílias na mesma casa quando já não têm condições de estar aqui?” Nas ruas degradadas, mal iluminadas, Nuno orgulha-se de ter conseguido erguer um campo de futebol, o altar de uma santa. “Foram projectos criados por mim e pela minha organização [a Associação de Moradores, Paz, Amizade e Cores]. E responsabilizados por nós, para que possa existir neste território onde até então nem a Câmara nem a Junta podiam fazer nada”, diz. “Ou fazemos parte do problema ou da solução. No meu caso, preferi ser parte da solução.”

Medidas do Governo? “Areia para os olhos”

O clima é de protesto e nem o pacote de medidas anunciado pelo Governo foi suficiente para fazer abrandar uma manifestação para a qual grande parte destes movimentos, novos e velhos, concentra esforços. Está marcada para 1 de Abril, às 15.00, na Alameda. “Casa para viver” é o mote que levará activistas e população à rua pelo direito à habitação. “As coisas não vão ficar resolvidas com uma manifestacão”, sabe Diogo Faro. “Mas há aqui uma luta colectiva que pode ganhar muito mais força precisamente por esse sentido colectivo”, diz sobre o evento, enquadrado nos Housing Action Days, vários dias de acções pelo direito à habitação Europa fora.

Por cá, o protesto pode ser lido como uma resposta directa ao leque de medidas que o executivo de António Costa apresentou para combater a crise no mercado da habitação em Portugal. Apresentado em Fevereiro, o conjunto de 12 medidas, designado de Mais Habitação, inclui planos em cinco eixos: aumentar a oferta de imóveis para habitação, simplificar os processos de licenciamento, aumentar o número de casas no mercado de arrendamento, combater a especulação imobiliária e proteger as famílias. A nível local, Lisboa também se prepara para investir na habitação, graças a 400 milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). A vereadora da Habitação, Filipa Roseta, garante que esse dinheiro será aplicado primeiramente em zonas degradadas da cidade. 

“O que fizemos foi definir aquilo que é possível acabar até ao PRR. Temos esta meta nacional que é conseguir executar o PRR”, disse aos jornalistas após a apresentação da Carta Municipal de Habitação, um documento do qual ainda só se conhecem linhas gerais, e que define as prioridades, metas e objectivos da autarquia para os próximos dez anos. “A habitação é o maior desafio de Lisboa”, admitiu o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, no momento da apresentação do plano de acção.

Alfama
Manuel Manso

As respostas da autarquia e do Governo – aparentemente não coordenadas, com Moedas a considerar “uma estranheza não ter sido consultado”, quando a habitação é “um desafio que tem de passar por medidas nas autarquias” – revelam-se insuficientes para o que estes muitos movimentos exigem. Por exemplo, sobre a proposta do Governo de suspender a atribuição de novas licenças de alojamento local, “não nos faz assim tanta diferença”, lê-se no comunicado de imprensa do Movimento Referendo pela Habitação (MRH), um novo movimento apartidário de habitantes que pretende mobilizar a população de Lisboa para um referendo local pelo direito à habitação. Na capital, “a suspensão já está em vigor na maior parte da cidade”, recordam. “O maior problema em Lisboa é a Câmara Municipal ter deixado que mais de 20.000 casas fossem registadas para alojamento local, afectando os nossos bairros, as nossas vivências quotidianas, o nosso bem-estar comum. Precisamos urgentemente que as casas deixem de servir para alojamento turístico e que cumpram a sua função social: que sirvam para nós morarmos nelas.” Em conclusão, “nenhuma destas propostas nos serve de imediato”, continuam. O MRH recolhe actualmente assinaturas para levar a referendo a possibilidade de alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local para ordenar o cancelamento dos alojamentos locais registados em imóveis destinados a habitação.

Para Diogo Faro, do Casa É Um Direito, estas medidas também não são mais do que “areia para os olhos”, diz o humorista, que até é seguido pela ministra da habitação, Marina Gonçalves – e com quem já trocou mensagens, revela. “A maior parte [das medidas] é ineficaz”. “Vão travar o aumento das rendas. Ok, mas um T1 já está a mil euros. O problema não é passar dos mil euros, o problema é que as pessoas não têm mil euros para dar por um T1.”

Este artigo foi originalmente publicado na edição de Março do jornal Lisbon by Time Out

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