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Carta aberta aos restaurantes de Lisboa

Alfredo Lacerda
Escrito por
Alfredo Lacerda
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Caros chefs, cozinheiros, empresários,

Aconteceu num ápice. Até dia 11 de Março, parecia que tudo estava a salvo. A restauração em Portugal vivia um dos melhores momentos da sua história. Estávamos naquele instante raro em que havia de tudo: bons restaurantes de alta cozinha, grandes tascas, cada vez mais cozinha do mundo. Nunca a tradição e a vanguarda coexistiram a este nível. Lisboa comparava com outras grandes capitais europeias. Ultrapassava outras grandes capitais europeias. Inspiração, profissionalismo, diversidade. Como nunca. Foram vocês que fizeram isso. Fomos nós quem mais beneficiou com isso.

Até que chegou o dia 11 de Março. E nessa quarta-feira tudo mudou.

Foi muito rápido. Na semana anterior, estava a almoçar fora com amigos, a preparar uma crítica. Quarta-feira seguinte esse texto pareceu espúrio, sem interesse. As pessoas fugiram dos restaurantes. Os cancelamentos foram tantos que as portas foram fechando mais cedo. Umas atrás das outras, do Cais do Sodré a Benfica. Até deixarem de abrir. No fim-de-semana seguinte, restaurantes que julgávamos à prova de crise – como o Belcanto, o Bistrô 100 Maneiras ou o Prado – encerraram sem reabertura prevista. Restaurantes que haviam aberto há dias, como o Revolução, do chef Nuno Diniz e de Rodrigo Meneses, ou que estavam na iminência de inaugurar, como o fine dining de Marlene Vieira, foram forçados a suspender a alegria das estreias e a mandar toda a gente para casa.

Tudo fechou, tudo foi suspenso. E com isso esta crítica também parou.

Não é tempo de criticar nada. É tempo de amar incondicionalmente. De agradecer a quem tem dado o seu tempo, a sua saúde, o seu talento a servir Lisboa. É tempo de agradecer aos cozinheiros, aos chefs, aos empresários desta cidade – é tempo de vos agradecer. De vos dizer que, mesmo quando nem tudo correu bem, foram uns heróis. Porque arriscaram, porque se atiraram num dos negócios mais instáveis e exigentes que há. Porque deram o espírito e o corpo por nós.

Saiba o leitor o seguinte. A restauração é muito violenta. Um chef dura sete, oito anos, ao mais alto nível. Um chef a sério, um subchef, um cozinheiro – hoje em dia – está cinco, seis dias por semana numa cozinha, a dar almoços e jantares, a chefiar pessoas, a ter de agradar ao cliente e ao crítico, ao influencer e ao investidor. Uma violência.

Violência no corpo, física. Os joelhos doem ao fim de oito horas de pé. E os pés. Há inclusive uma doença chamada chef’s foot, relativa a uma artrite comum no dedo grande do pé dos cozinheiros. As costas também doem, claro. E estar com uma faca na mão, estar perto de fogo, de tachos a ferver, requer muita concentração. Acidentes acontecem. Muitas vezes. Cortes, queimaduras, quedas.

A isto soma-se o desgaste psicológico. Ser um chef de topo, hoje em dia, é saber lidar com muita coisa. Orçamentos, formação, recursos humanos – cozinha, claro. É saber fazer sempre da mesma maneira, mas estar sempre a pensar fazer diferente. É conseguir substituir o fornecedor que falhou e afastar o fornecedor que não interessa. Ser chef é lidar com o empregado de sala que não apareceu e com o cozinheiro que chega atrasado. Com o cliente que cancelou e com o outro, a protestar, que está à espera. É ter de cozinhar num espaço exíguo, quase sempre em contra-relógio. E empratar ao mesmo tempo. É estar no lodo. Sempre. Todos os dias.

E para quê? Porquê? Para nos servir. Por paixão.

Não são grandes as margens de lucro na restauração. Há dias falava com um chef de um restaurante muito bem sucedido, em Lisboa. Estava de rastos. A casa tinha três anos. Um investimento grande. Encontravam-se, finalmente, em velocidade de cruzeiro quando o Covid-19 apareceu. A equipa estava no ponto, o conceito afinado, fornecedores estáveis, a sala cheia. Três anos de sacrifícios, de entrega total. Parecia ter compensado. Pagavam acima do mercado e pagavam a horas ou antes da hora. O pequeno fundo de maneio que conseguiram não aguentará uma pandemia prolongada.

A este chef – e a todos os outros que se entregam diariamente na restauração – o meu agradecimento profundo por tantas refeições maravilhosas. E uma certeza. Darão a volta por cima. Os bons e os justos sempre dão a volta por cima. Até breve.

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