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Na sua primeira vida, pelo menos de que há registo, foi reservatório de água. A antiga cisterna do século XVII, paredes meias com a Muralha Fernandina, renasce agora – a partir da sua capacidade original de armazenar e partilhar – como galeria de arte contemporânea.
Para se descobrir o tijolo burro, a contrastar em cor e textura com as paredes restauradas, escavou-se o tecto e o resto foi-se moldando às memórias da força do tempo e das águas que a antiga cisterna acolheu. A nova Cisterna – no mesmo número 27 da Rua António Maria Cardoso – tem inauguração marcada, como espaço cultural, para esta quinta-feira, dia 14, às 19.00, com Ararat, uma exposição de Ana Jacinto Nunes.
A artista, a viver entre Lisboa e Macau, lembra-se de começar a fazer escultura aos quatro anos e meio. “O meu pai comprou-me uma mufla [um forno para cerâmica] e lembro-me muito bem porque não conseguia colar e pedia-lhe para colar [onde queria].” Ana ri-se, um riso tímido, ao mesmo tempo que descreve esse momento com as mãos. “Acho que [a primeira escultura] até foi com umas pedras da praia, que também pedi para colar.” Mais tarde, ainda não era adolescente, herdou as tintas de óleo do avô. “Aos sete ou aos nove, lembro-me de pintar a minha cadela. Ela não esteve quieta. Ainda lá tenho [a pintura] e gostava de a emoldurar.”
Com uma vastíssima obra gráfica, o tio-avô de Ana, Emmerico Nunes, também era artista. Foi, aliás, um dos pioneiros do desenho humorístico e da BD em Portugal. “Vivi com muita arte em casa, muitos desenhos e muitas pinturas; e todos eles passaram mal”, conta. “Fui sempre desenhando, mas, por saber da vida, depois passou-me, se calhar aos catorze não queria ser [pintora ou escultura].” Na faculdade, começou por estudar moda e foi apenas quando se confrontou, pela primeira vez, com desenho de modelo que percebeu o que queria. “Eram aulas à moda antiga, sempre com o modelo a mexer, muitos exercícios, é um traquejo muito bom para desenho e daí fui para pintura e por aí fora.”
Com sorriso travesso, Ana confessa não conseguir parar quieta, mesmo quando “não [quer] fazer nada durante uma semana”. “Se parar de trabalhar, vou ter de lidar com os papéis, as contas, mudar lâmpadas, ir ao supermercado", conta, explicando que não é o dinheiro que a move. “É sentir que se faz bem. Eu sou absolutamente desconhecida há muito tempo, se calhar vou continuar a ser, mas aquela pergunta chata que os miúdos fazem, o que é que eu hei-de ser, [a resposta] deve ser seja o que for que gostes muito. É a única maneira de ter vontade de fazer e de fazer melhor.”
Gostar é divertido, gostar muito contagia
A sonhar há anos com a Cisterna, Catarina Marques da Silva lembra-se da primeira vez que se cruzou com as esculturas de Ana Jacinto Nunes, no Museu Bordalo Pinheiro. Eram peças de cerâmica e imaginou tê-las como apontamentos numa exposição “em que a linguagem principal seria a da pintura”. Mas primeiro foi preciso perceber como poderia usar as competências que adquiriu na América Latina, onde se dedicou durante mais de uma década à conservação, restauro e análise de obras de arte.
“Pensei em abrir um ateliê de restauro, mas [percebi que] no restauro falta-me o contacto com o artista”, explica a responsável por esta nova galeria. “A experiência estética é fundamental e, no meu entender, faz parte da obra de arte.” Como galerista, a sua função é a de promover mas também mediar a interacção entre o criador e o seu público; e nota-se o entusiasmo com que fala deste seu projecto, que surge da vontade de dar a conhecer diferentes visões do mundo.
A exposição inaugural, com curadoria de João Paulo Cotrim, reflecte sobre um tempo remoto em que animais e deuses foram personagens de um dilúvio. Através de peças em cerâmica, mas também de pintura em tela e seda, Ana evoca a Arca de Noé, o mítico navio primordial onde a criação se abrigou da catástrofe global, antes de atracar nas montanhas turcas de Ararate.
As telas ainda não estão expostas nas paredes e há, pela Cisterna despida, vasos em cerâmica metade à mostra, metade embrulhados. “É preciso respirar o espaço e olhar as peças para as colocar no sítio certo”, diz. “Quando observamos um objecto artístico, já não somos os mesmos que éramos antes de olharmos para ele. Podemos não pressentir, mas o objecto tem essa função – de nos maravilhar, de nos aproximar da transcendência.”
Depois de Ararat, patente até 25 de Abril, conta-se ano e meio de exposições. A próxima será dupla, com Tiago Mourão e Maria Souto de Moura; a terceira uma tríade feminina, composta por Cecília Corujo, Juliana Julieta e Maia Horta. Seguem-se a solo nomes como António Gonçalves, Diogo Muñoz e Sara Maia. Mas a programação não se esgota na rotina de uma galeria tradicional.
Há, nos mais de cem metros quadrados, vontade para cursos, workshops e conversas com artistas, curadores e outros intervenientes culturais. “A galeria tem também uma função agregadora, de conseguir juntar pessoas, para olharem os mesmos objectos e para pensarem”, realça Catarina. “Não é por acaso que, logo a seguir à inauguração, teremos [a primeira sessão, com entrada livre] de um seminário de filosofia, com o professor António Caeiro, da Universidade Nova de Lisboa.”
Rua António Maria Cardoso, 27 (Lisboa). Ter-Sáb 11.00-19.00
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