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Sem Medo
© Francisco Romão Pereira / Time OutSem Medo, de Teresa Coutinho

Como se desmistifica o luto em família? Esta peça ajuda a perceber que o medo faz parte

Teresa Coutinho inspirou-se no livro de Miguel Granja ‘Simão Sem Medo’ para dar vida a Simone e à sua viagem onírica em busca de alguém que perdeu.

Raquel Dias da Silva
Escrito por
Raquel Dias da Silva
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Falar da morte – sobretudo da morte de alguém que nos é próximo e por quem nutrimos um certo afecto – nunca é fácil. Mas explicá-la aos mais novos não tem de ser um bicho de sete cabeças. A morte é, ainda que dolorosa, um processo natural e, ao longo da vida, a experiência da perda e do luto reclamará o seu lugar de diferentes formas. Cabe-nos a nós, maiores e mais pequenos, descobrir como lidar com as emoções menos felizes e, porventura, até como é que nos podem servir como alimento para coisas bonitas. É precisamente sobre isso que reflecte a nova criação de Teresa Coutinho. A partir de Simão Sem Medo. Os jardins das cerejeiras, um livro de Miguel Granja ilustrado por Beatriz Bagulho, a encenadora e dramaturga deu vida a Simone, à sua família e à viagem onírica que a jovem faz em busca de alguém que perdeu. Em cena no Centro Cultural de Belém, Sem Medo estreia para as famílias este fim-de-semana, 4 e 5 de Janeiro.

“O convite chegou-me da Fábrica das Artes, que me propôs criar a partir de Simão Sem Medo [por sua vez inspirado no clássico de José Gomes Ferreira, Aventuras de João Sem Medo], no qual encontrei vários gatilhos interessantes, nomeadamente o facto de, logo no início, o Simão perder a avó e ser isso que o faz atravessar o mundo real para uma paisagem de fantasia. Apesar de, na verdade, não ser um tema tão explorado no livro do Miguel, pareceu-me ser o que mais faria sentido levar a palco, porque a morte, o luto e a perda são grandes tabus. Quando colocamos crianças e adolescentes ao barulho, ainda mais. Claro que continua a ser pela vida fora, é sempre um tema difícil. Mas pensei que poderia ser uma boa forma de falar sobre coisas que julgo importantes, como o papel dos exemplos e das referências que nos moldam, e de haver quem acredite em nós. Nesse sentido, também me interessou, por exemplo, que o protagonista fosse, em vez de um rapaz, uma rapariga”, diz-nos Teresa Coutinho.

A reflexão sobre a experiência do medo no feminino é então o ponto de partida para, nesse contexto específico, pensar-se também sobre a importância da tal figura mais velha que, muitas vezes por razões históricas, não teve as oportunidades que a geração seguinte poderá vir a ter e que, por isso mesmo, é uma fonte de apoio mas também de expectativas. “Neste caso, a grande referência é a avó, que é algo com o qual muitos e muitas de nós nos podemos relacionar”, acrescenta Teresa, que não fugiu ao peso desse legado e à forma como tanto nos incentiva como nos angustia. É, aliás, muito claro como, perante a perda, a primeira emoção a apoderar-se de Simone, a par de uma profunda tristeza, é precisamente o medo de não ser suficiente, de não conseguir fazer sozinha. Claro que esse entendimento – sobre o que está a sentir e porquê – não é imediato, mas é para isso que serve a “viagem onírica”, uma travessia imaginada pelo luto, que desenterra, por um lado, memórias e receios e, por outro, ensinamentos e alegrias.

Em palco, à semelhança do que acontece no clássico de Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas, também Simone atravessa um espelho para uma outra realidade, onde se encontra com uma miríade de seres fantásticos, desde um piano não-binárie até uma tríade de ostras reais. Para evocar esse “mundo plural”, por um lado, e expandir os limites do espaço físico, por outro, recorre-se à música, à dança e, em particular, a uma forte componente de imagem e sonoplastia, assinada por Lúcia Pires, com quem Teresa Coutinho tem vindo a colaborar. “Gosto muito do nosso diálogo artístico, que é cada vez mais rico, e o dispositivo cénico encontrado torna o espectáculo mais móvel e, para o público-alvo [crianças e jovens maiores de seis anos], também é uma coisa que os atrai e os mantém atentos”, esclarece Teresa, antes de chamar a atenção para o carácter poético e comovente dessas imagens em movimento, que não foram pensadas como um mero adereço.

“Há, obviamente, uma parte que tem a ver comigo e como eu, hoje em dia, enquanto mulher adulta, tenho noção do quão importante foi ter tido alguns exemplos. Não só de pessoas como a minha mãe e a minha avó, que me eram próximas, me amaram e me cuidaram, mas também relacionados com nos vermos representadas. Vermo-nos representadas nos ecrãs, nos livros e na arte a que temos acesso, quando temos acesso. Foi também por isso que quis ter tantas referências a mulheres no espectáculo, não mitificadas, mas exemplares”, confessa. “Ao reconhecer os outros, Simone também se reconhece a si própria.” Descobre, por exemplo, que a forma como a avó enchia a cozinha de música, a mesa de boa cachupa e a família de mimos e ralhetes não só é o que mais custa lembrar como é o que mais lhe dá força para enfrentar o amanhã e reivindicar o seu lugar no mundo.

Depois da passagem pelo Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, Sem Medo segue para o Porto, onde subirá ao palco do Teatro Nacional São João, de 14 a 18 de Fevereiro.

Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém. 4-5 Fev, Sáb 15.30, Dom 11.30. M/6. 8€

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