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Crítica: ‘Mal Viver’ e ‘Viver Mal’, ou a maior percentagem de mães egocêntricas e opressivas do cinema

Vimos a nova dupla de filmes de João Canijo e ficámos de pé atrás com ‘Mal Viver’, premiado no Festival de Berlim. Preferimos ‘Viver Mal’.

Escrito por
Eurico de Barros
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★★☆☆☆ / ★★★☆☆

O díptico de cerrada infelicidade familiar de João Canijo, Mal Viver/ Viver Mal (o primeiro ganhou o Urso de Prata – Prémio do Júri no Festival de Berlim) pode, para aqueles mais dados à poesia, ser uma espécie de equivalente cinematográfico do poema “This Be the Verse”, do inglês Philip Larkin, sobre a transmissão de pais para filhos dos defeitos, das desgraças e dos erros das respectivas gerações. Só que no caso das duas fitas de Canijo, os pais ficam fora da fotografia e o ónus da culpa recai inteirinho em cima das mães. Mal Viver e Viver Mal devem ter de certeza a maior percentagem de mães egocêntricas, falhadas, venenosas e opressivas de toda a história do cinema.

Passados no mesmo local (um hotel de família decadente e em dificuldades financeiras do Norte) e durante o mesmo espaço de tempo (um fim-de-semana) os filmes funcionam em sistema de espelho. A acção principal de Mal Viver é o plano secundário de Viver Mal, e vice-versa. A uni-los está também uma mesma visão muito pessimista da família (amputada da figura do pai) e uma mesma imagem impenitentemente negativa da mãe. Em Mal Viver, cinco mulheres de três gerações, com destaque para a avó, Sara (Rita Blanco), a filha desta, Piedade (Anabela Moreira), e a neta, Salomé (Madalena Almeida), remoem amargamente a desdita que passaram umas às outras, enquanto trocam frustrações, recriminações e rancores, oferecendo o deprimente e morosíssimo espectáculo do escarafunchar até à ferida das respectivas vulnerabilidade e deficiências, da degradação dos seus laços de sangue e da alienação das suas afinidades familiares.

A visão nociva da natureza humana e a desconfiança crónica em relação aos predicados do núcleo familiar que caracterizam o cinema de João Canijo, atingem aqui a sua expressão mais radical. Mas nem todo o talento de escrita do realizador, nem a organização visual feita com olho de geómetra, nem o naturalismo de babar na camisa das interpretações, impede Mal Viver de chover no molhado na perspectiva dramática, de se comprazer no exibicionismo da desgraça sem redenção, e de sucumbir, arrastando consigo as personagens, a uma overdose de infortúnio auto-infligido. Longe de termos compaixão ou de sentirmos interesse ou empatia por estas mulheres, o que queremos é deixar a companhia delas o mais depressa possível. No cinema, o estereótipo da infelicidade maciça pode ser tão artificial e irrealista – e fatal – como o da felicidade fofinha.

Viver Mal
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Em Viver Mal, João Canijo foi procurar inspiração a três peças de August Strindberg para as histórias dos clientes dos hotéis, e é lá também que encontramos as duas únicas personagens masculinas destas duas fitas, interpretadas por Nuno Lopes e Rafael Morais, mas que se recomendam tão pouco como as femininas (ao menos, Canijo não pode assim ser acusado de misoginia pelas patrulhas do feminismo histérico). Temos uma jovem e fútil influencer e o seu fotógrafo e namorado, constantemente atazanado pela mãe por via telefónica; um casalinho em que o marido trai a mulher com a sua amoral e monstruosa sogra (Leonor Silveira, impecável numa “tia” não de Cascais mas do inferno), e uma mãe-galinha calculista e “sofredora” profissional (Beatriz Batarda, magnífica) que manipula a filha lésbica através da qual vive, e compensa as suas frustrações, e que tudo faz para anular a relação que aquela tem com a namorada, que veio de fim-de-semana com elas. 

As mães continuam a ser as vilãs de piquete em Mal Viver, e a família a fazer toda a despesa do odioso das histórias, mas o filme tem mais centros de atenção, personagens menos uniformes e mais variadas na caracterização e na conflitualidade entre elas, um outro vigor dramático e cinematográfico, e menor prostração anímica. E para quem vir Viver Mal primeiro (o que aconselhamos), o efeito de fundo deste faz todo um outro sentido no que respeita à nossa percepção do que se está a passar em primeiro plano em Mal Viver

Tudo considerado e pesado, e nunca deixando de perceber o que João Canijo pretendeu fazer com estas duas fitas separadas mas com vasos comunicantes, talvez um único filme, muito longo e formalmente algo mais complexo, mas que tivesse permitido um aligeirar e um arejar narrativo, bem como um atenuar de registo, sem nunca comprometer o fundo dramático e os pontos de vista e as convicções existenciais do realizador, tivesse sido uma ideia melhor. O título? O Fim do Mundo com as Nossas Mães.

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