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Restaurante Soju Pocha
Francisco Romão PereiraRestaurante Soju Pocha, Bairro Alto

Da mercearia ao restaurante, eis a pequena Lisboa sul-coreana

São pouco mais de 160, mas a visibilidade da comunidade sul-coreana cresce, à boleia de fenómenos como o k-pop e da gigante indústria do entretenimento.

Rute Barbedo
Escrito por
Rute Barbedo
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Adoptar um nome português é um dos primeiros actos de integração por parte de muitos sul-coreanos, tal como o fazem outros imigrantes asiáticos. Sojung Ahn é, assim, Ana, e o marido, Kyusung Cho, Joaquim. “Fui baptizada numa igreja católica aqui perto”, conta a antiga moradora de Seul enquanto bebe uma meia de leite no bairro das Amoreiras. Sem saber bem porquê, tendo em conta o seu parco português, Ana vai à missa todos os domingos. É a única coreana entre os fiéis e usa uma aplicação de telemóvel para traduzir a homilia.

Em 2010, Ana e Joaquim decidiram tentar a vida em Lisboa para recuperar tempo. “Na Coreia, quem trabalha muito pode fazer muito dinheiro. Mas o ritmo é duro e a sociedade muito competitiva. Eu preferi ter tempo e, um ano depois de casar, viemos para cá”, explica. Nos anos seguintes, sempre que iam à Coreia de férias, regressavam com as malas carregadas de comida, porque, até há três anos, era difícil encontrar especificidades como kimchi (uma mistura de vegetais fermentados, salgada e picante), tteokbokki (bolo de arroz) ou jeyuk bokkem (carne de porco picante marinada). Para Ana, como para uma grande parte dos sul-coreanos, entregar-se a pratos internacionais é uma tarefa exigente. “Bom, o arroz de marisco português, com picante, podia ser um prato perfeitamente coreano”, corrige, procurando pontos de conforto.

No início da vida em Lisboa, no entanto, era como se Portugal pouco existisse. Em casa, funcionava uma guest-house para turistas coreanos e, no exterior, a barreira da língua criava uma bolha à sua volta. “Durante dez anos, era apenas uma viajante. Só ia a restaurantes para estrangeiros, falava coreano, estava só com coreanos… Só depois de abrir a loja [há três anos] comecei a sentir-me mais portuguesa.” A loja que mudou a vida de Ana é, paradoxalmente, o Mercado Woori, um dos dois estabelecimentos em Lisboa especializados no universo coreano da bebida e comida (o outro é o KoPo Mart). Se Lisboa já estava aberta ao imaginário asiático, a partir de 2019, começou a receber negócios “realmente” coreanos, e não tentativas ou cópias, como frisam os entendidos. Abriram os restaurantes K-Bob (entretanto existem dois em Lisboa, um em Almada e outro em Portimão, estando prevista a abertura de um quinto no Porto), o Soju Pocha (no Bairro Alto) ou o Moona Chicken (na Baixa). Mas a procura, tanto nos mercados como nos restaurantes, não é estritamente coreana. “80% das pessoas que vêm cá são portuguesas”, detalha Ana.

Mercearia Woori
Francisco Romão PereiraMercearia Woori

O coração na boca

“As pessoas chegam e querem comer o que vêem nos ‘dramas’ [séries televisivas sul-coreanas, muitas vezes difundidas através de plataformas como a Netflix], como o frango frito ou o barbecue coreano. Mas também vêm pelo ambiente, pela experiência, porque pomos muitas vezes k-pop ou um ‘drama’ na televisão”, conta Rita, funcionária do K-Bob e amante confessa de pop coreano, como “quase todos os adolescentes e jovens”. O restaurante abriu precisamente em 2019, trazendo as receitas da mãe de Daeeun Hong, o proprietário, para Lisboa.

A comida é uma das formas mais simples de ligação a uma cultura, seja num primeiro encontro ou para manter viva uma velha relação. Como conta Hyeongsoon Choi, que vive há três anos em Lisboa, “foi muito tempo a sentir falta da comida coreana e a comida, para os coreanos, é uma parte muito importante”. Por essa razão e também por amor , depois de dez anos a viver em Londres, encontrou na capital portuguesa uma lacuna e abriu o Soju Pocha, um restaurante-bar onde, entre outras possibilidades, a carne de porco picante harmoniza com soju (aguardente de arroz). “Não havia quase nada aqui e, quanto ao que havia, achei que podia fazer melhor”, conta o arquitecto que gosta de cozinhar e de “partilhar a cultura coreana”. Um ano após a abertura, o Soju Pocha tem filas à porta e só 20% do público é coreano.

O interesse crescente pela nação-mãe de Parasitas, de Bong Joon Ho, a primeira produção não anglófona a vencer o Óscar de Melhor Filme; fenómenos de massa como a música “Gangnam Style” e a banda BTS (os artistas mais vistos no YouTube desde sempre); ou a série Squid Game (que a Netflix levará ao ecrã numa versão reality show a partir de Novembro) explica-se pelo investimento do Governo sul-coreano na produção e exportação da indústria cultural, sobretudo a partir da década de 1990, após o derrube da ditadura. Nos últimos anos, a expansão tomou a forma de uma onda gigante a hallyu ou “onda coreana”, como é chamada , materializando-se em bilhetes esgotados para concertos em Wembley (Inglaterra) ou no SoFi (Estados Unidos) e em milhares de milhões de visualizações de videoclipes no Youtube por falar nisso, em Julho, as NewJeans tornaram-se a primeira banda de k-pop a filmar um videoclipe em Portugal (Mercado de Benfica e autocarros da Carris incluídos).

Na mais recente Festa da Cultura Coreana em Lisboa, em Setembro, apareceram 4200 pessoas, mais do dobro do ano anterior. “O interesse é cada vez maior”, confirma Yunseon Yang, da Embaixada da Coreia do Sul em Lisboa. Já o número de coreanos a viver no país aumenta timidamente (apesar de, pela primeira vez, em 2023, ter ultrapassado a fasquia dos 300). “Portugal nunca foi um destino de eleição dos coreanos. É longe, há a dificuldade da língua e não é um país onde seja muito fácil investir. Mas, mais recentemente, muitos vieram por causa dos vistos gold e porque são atraídos pela segurança, pelos preços e pelo ambiente do país. Aqui as famílias podem ter um estilo de vida mais calmo, muito diferente do da Coreia.”

Telmo Saraiva e Sun Sook Park
Francisco Romão PereiraTelmo Saraiva e Sun Sook Park

Quem tem ajudado vários coreanos (como Ana, proprietária do Woori) a desbravar esse caminho em Portugal é Telmo Saraiva. “Sou o salvador de muitos deles”, graceja o português que viveu na Coreia do Sul três anos, depois de ter conhecido a mulher, Sun Sook Park, em 1995, num blind date na Croácia, em plena Guerra da Jugoslávia. “Eu sei, é uma história maluca”, reconhece Telmo. Em 1997, foram para a Coreia. No virar do milénio, vieram para Portugal.

“A Coreia, para mim, é uma mistura de século XXXV com o século XV. De um lado, as tradições e o campo, de que gosto muito; do outro, a grande metrópole e a alta tecnologia. É um país que não dorme, hiper-disciplinado, criativo, independente. E é muito mais do que k-pop. Chateia-me que só se dê atenção a isso”, indigna-se o português, criticando o lado sexualizado e o culto extremo da imagem da pop coreana (a k-beauty, ou seja, a indústria da cosmética é outro grande mercado do país).

Para Sun Sook Park, por sua vez, Portugal é um “país muito emocional”. “Quando cheguei, tinha medo de ter de dar beijinhos a toda a gente.” Fora isso, e apesar da distância cultural e linguística, as pessoas sempre lhe pareceram afáveis e “prontas a ajudar”. A trabalhar na sul-coreana Samsung desde 2007 e com os armários de casa cheios de comida do seu país natal, Sun detesta a praia mas adora comer caracóis ou um bom pica-pau. “Quando vamos ao café, é ela que bebe a imperial e a bica”, relata Telmo, ao que a mulher complementa: “Não sinto que seja só coreana. Já não consigo seguir o ritmo dos coreanos, por exemplo. Habituei-me a este estilo de vida, mudei.”

50 anos de imigração

O primeiro cidadão sul-coreano terá chegado a Portugal em 1972, ano que marca o início desta ligação com mais de 10 mil quilómetros. Quem o conta é Byung Goo Kang, professor no King Sejong Institute em Lisboa, cidade onde se instalou em 1984 com o apoio de uma bolsa de estudo da Fundação Gulbenkian. Quando Kang chegou a Portugal, o plano era ficar pouco tempo, aprender português e regressar a Seul para ensinar a língua de Camões a estudantes universitários. Mas a história inverteu-se. Ainda na década de 1980, apaixonou-se por uma portuguesa e, em 1988, estava a dar aulas de coreano a um grupo ínfimo nas instalações da Universidade Nova de Lisboa. “Até hoje, nunca parei”, conta. E o número de alunos aumentou para 276.

Com a mudança de planos, Byung Goo Kang mudou também a forma de estar. “Percebi que, se queria viver aqui, tinha de transformar a minha maneira de pensar e até de me comportar. Frequentei o ensino clássico chinês, venho de uma família conservadora… Precisava de aprender a ser extrovertido, a ter uma atitude positiva e aberta.” Inscreveu-se, então, na “meca do bilhar português”, a Associação Lisbonense dos Amadores de Bilhar (entretanto extinta), passou pelo Belenenses, pelo Benfica e pela Casa de Tomar, fez amigos portugueses e aprofundou-se na gastronomia local. Ao mesmo tempo, numa espécie de vida dupla, presidiu à Associação Coreana em Portugal, participa com frequência nos encontros da comunidade e, em casa, é quase sempre a Coreia que sobe à mesa. “É a minha mulher que cozinha. Aprendeu comigo e com a sogra”, diz.

Apesar dos 39 anos em Lisboa, Kang não se esquece de ser coreano. “A minha mulher não entende a forma [reverente] como falo com os mais velhos, por exemplo. Diz que continuo a ter uma maneira de pensar coreana… Eu nunca pedi a nacionalidade portuguesa [a lei coreana não permite a dupla nacionalidade]. Sei que vou morrer aqui, vou ser enterrado aqui, mas quero morrer coreano. Não por orgulho, mas porque são as minhas raízes, e isso não posso mudar.”

Artigo publicado originalmente na edição de Outono de 2023 da Time Out Lisboa

+ Adeus, 2023. Olá, 2024. As festas de passagem de ano em Lisboa

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