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dirty shoes don’t go to heaven
© Bruno Simãodirty shoes don’t go to heaven, de David Pereira Bastos, a partir de Eurípides e Sófocles, na Escola de Mulheres

David Pereira Bastos: “Todas as heroínas são vítimas de um olhar patriarcal”

A nova criação do encenador, que se estreia esta quinta-feira na Escola de Mulheres, desafia-nos a reflectir sobre o lugar das protagonistas femininas no teatro clássico grego.

Raquel Dias da Silva
Escrito por
Raquel Dias da Silva
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David Pereira Bastos queria “fazer uma coisa mais dirigida a actores em formação ou a actores recém-formados, uma espécie de curso”. Não sendo possível (não ficou claro porquê e se haverá ou não oportunidade de ir para a frente com a ideia), a Escola de Mulheres desafiou-o, antes, a encenar um espectáculo. A partir de uma selecção de trechos de textos de Eurípides e Sófocles, a sua mais recente criação não só revisita o cânone da tragédia grega clássica e da sua iconografia, como convida a uma reflexão sobre, por um lado, a moral ocidental; e, por outro, a mulher na sociedade clássica e a perspectiva feminina enquanto personagem trágica. Em cena no Clube Estefânia, em Lisboa, dirty shoes don’t go to heaven pode ser visto entre 1 e 18 de Junho.

“Resolvi pegar na tragédia por duas razões: o foco em protagonistas femininas e [a possibilidade de] usar textos – tirando a Antígona [de Sófocles] – levados à cena por Fernanda Lapa, que foi fundadora e directora artística desta companhia até 2020 [ano em que morreu]”, revela no final de um ensaio. David Pereira Bastos diz também, contudo, que, mais do que uma homenagem a Fernanda Lapa, se trata de uma homenagem ao “teatro da palavra e, especificamente, à tragédia grega”, que tanto agradava à actriz e encenadora, e tão bem vive na sala de teatro do Clube Estefânia, “que tem esta acústica e esta configuração semi-mágica, com esta boca de cena que quase faz lembrar a frente de um templo clássico”. Apesar disso, evitou recorrer às anotações ou ao pensamento produzido por Lapa acerca das tragédias gregas que encenou.

“O que me interessa mais no teatro é o trabalho do actor e, normalmente nas coisas que enceno, tento sempre devolver-lhe esse lugar primeiro. Assim sendo, resolvi criar uma dramaturgia de intertextualidade, em que podemos ver os actores a lidar com os materiais de uma forma completamente descarnada e assumida, sem grandes elementos de figuração e de faz de conta, em que se parte de um estado mais ou menos neutro para arrancar cenas.” Com assinatura de Bruno Simão, a cenografia – um corredor branco largo, em contraste com as laterais – e os figurinos – também brancos, modernos e minimalistas – servem perfeitamente essa intenção, ao mesmo tempo que dialogam com o desenho de luz de Luís Moreira, que logo no início mancha o cenário de vermelho. “Tem a ver com a questão do sacrifício, presente nos rituais de culto a Dionísio [em que se apoia o arranque da peça].” Mas não só.

À semelhança do título do espectáculo, dirty shoes don’t go to heaven, o cenário branco, de repente “sujo” de vermelho-sangue, também estabelece uma ligação à moral ocidental, “que diz que só as almas puras têm um bom pós-vida”. Não foi de propósito – a autoria da frase, que em português significa literalmente “sapatos sujos não vão para o céu”, é do seu amigo de infância Daniel Silvestre, que é também o autor da sapatilha reproduzida no cartaz –, mas faz todo o sentido para o encenador, que chama a atenção, sobretudo, para a visão que os gregos reservavam – e que, muitos outros, ainda hoje reservam – às mulheres, nomeadamente o “carácter sacrificial”. À excepção de Antígona, que desafia abertamente o poder instituído, todas as heroínas são vítimas de um olhar patriarcal, que lhes atribui um papel muito limitado.

“Todos os excertos, cerca de 16, dão voz ao drama interior, ou seja, em todos – e creio que esse será um dos perigos do espectáculo – há este tom constante do ‘ai, coitadinha de mim, o que me foi acontecer’”, explica o encenador. “A Antígona não. É isso que a distingue das troianas. A Antígona não se resigna ao lugar que é destinado à mulher em termos de ordem social, tem mesmo um discurso de oposição e quase de superação em relação ao Homem, não ao homem enquanto género, mas enquanto espécie, ao advogar junto de Creonte que as leis dos homens não se sobrepõem às leis dos deuses ou às leis naturais. É um aspecto que me agrada muito, quando as mulheres explicam aos homens como é que as coisas são.”

Clube Estefânia (Lisboa). 1-18 Jun, Qua-Dom 21.30. 7€-12,50€

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