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Isadora, Fala!
Ricardo Rodrigues/DRRita Lello em ‘Isadora, Fala!’

Um século depois, o que tem Isadora Duncan para nos dizer? Tudo

‘Isadora, Fala!’ devolve-nos a mulher que ousou imaginar a dança contemporânea: Isadora Duncan. Rita Lello interpreta-a, incorporando a língua gestual no movimento do espectáculo, para que o corpo seja também palavra. Para ver no São Luiz.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
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Quem está à nossa frente, em palco, é incerto. É uma voz, uma fala? É uma mulher, são várias, são todas as mulheres? É a própria Isadora Duncan através de Rita Lello? Ou será o inverso? “Essa é a pergunta que faço a mim própria e que ainda não sei responder”, diz a actriz, que vai interpretar a histórica bailarina norte-americana num espectáculo em cena no São Luiz, na Sala Mário Viegas, entre 31 de Maio e 9 de Junho. “Quem é a pessoa que está ali? Não sou eu sempre. Há coisas que acontecem que não têm a ver com a minha sensibilidade. Tem a ver com a sensibilidade da Isadora: determinadas posições, determinados gestos, até determinadas escolhas cénicas, que eu não escolheria assim.”

Isadora, Fala! é um monólogo que decorre a grande velocidade e “há muitos momentos que são uma espécie de delírio”. “Isto é uma espécie de comboio em que entro e só saio no fim da viagem. Há bocado estava ali atrás e pensei: eh pá, já estou aqui. Passou-me assim atrás da cabeça”, revela Rita Lello, no final de um ensaio, em Chelas. O texto é imparável, o movimento constante. Pode parecer extenuante, mas a actriz garante que é exactamente ao contrário: “É energizante.” E isso tem a ver com a personagem. “Se calhar, sim. Ela era eufórica e, com o ritmo que o espectáculo tem, eu estou eufórica. Provavelmente pelo ritmo cardíaco, pelo ritmo respiratório, pelo ritmo do próprio texto, por tudo, é energizante, é vital. Fomos nós que impusemos [este ritmo], ninguém me obrigou a fazer isto assim [risos].”

O espectáculo nasceu com Eugénia Vasques, professora jubilada da Escola Superior de Teatro e Cinema e crítica de teatro, a sugerir a Rita Lello que lesse Jogo sensual no chão do peito (2020), em que a poeta Graça Pires encena a voz de Isadora Duncan. Foi logo após Resto Zero, poema cénico de José Watanabe a partir de Antígona que a actriz fez em 2018. “No seguimento desse espectáculo, que foi exactamente antes da pandemia, a professora Eugénia disse-me: há este livro da Graça Pires, que é um poema dramático, à volta de uma personagem. Lê e vê se não achas que se poderia fazer um espectáculo interessante a partir disto. Li. Depois a pandemia ajudou a ter tempo para aprofundar. Desafiei imediatamente a professora Eugénia para fazer a dramaturgia comigo. Como ela aceitou, tive coragem para me meter nisto.”

Rita Lello pouco conhecia de Isadora Duncan (1877-1927). “O que sabia tinha sido o que a minha avó me tinha falado dela”, recorda. “Ela falava sempre com muita admiração e com muito respeito. A minha avó era uma mulher muito inteligente, jornalista [Maria Carlota Álvares Guerra, co-fundadora da revista Crónica Feminina]. E sempre me habituei a ouvir falar da Isadora assim. Embora à volta as pessoas se referissem a ela como se fosse meio doida.” E não era só porque estava a reinventar os pressupostos da dança para o próximo século. “É uma questão política, francamente. Era uma pessoa de esquerda e foi vítima de uma propaganda brutal norte-americana, que a desacreditou e que fez com que os últimos anos da vida dela fossem um inferno. Ela fala disso em alguns textos.”

‘Isadora, Fala!
Ricardo Rodrigues/DR

Constantin Stanislavski, criador do famoso “método” para actores, escreveu sobre Isadora, sobre a experiência de assistir aos seus espectáculos, quando a bailarina e coreógrafa se mudou para este lado do Atlântico, para a Europa Ocidental e para a União Soviética. A sua influência na época teve impacto em poetas, pintores, fotógrafos, em artistas de renome como Rodin, D’Annunzio, observa Rita Lello. “Uma mulher nos anos 1920”, sublinha. “Aparentemente a gente pensa ‘Ah, é uma época muito livre’, mas era livre para aqueles que corriam à frente do caminho. Para os outros, para a sociedade em si, estas pessoas foram martirizadas. Foram grandes corajosos que abriram caminho para a nossa liberdade.”

Deixando claro que a peça “não é historicista, é um espaço poético de onde desapareceram os nomes e os lugares”, Rita Lello nota que “não é à toa que o espectáculo se chama ‘Fala!’. Tem a ver com o lugar de fala, com a liberdade de expressão.” É preciso falar, até porque nem 100 anos foram suficientes para dar resposta às reivindicações de Isadora. “O que acho extraordinário é que grande parte das coisas que a Isadora diz ainda não estão cumpridas. Os discursos que hoje vemos nos comunistas, na comunidade LGBT, etc. Até a forma como ela fala do parto, a forma como a medicina olha para o parto. Ainda hoje há mulheres que passam 36 horas a parir. Se fossem os homens que parissem, já ninguém nascia de parto natural, era tudo cesarianas”, provoca a actriz. “O que é que a Isadora tem para dizer hoje? Tudo. Tudo aquilo de que a Isadora fala – a emancipação da mulher, os direitos da mulher, a escravidão pelo casamento, o patriarcado, o body shaming – são as questões que estão na ordem do dia. Até a relação assumida com uma mulher.”

Outra coisa que Isadora dizia era: “Uso o meu corpo como um meio, tal como o escritor usa as suas palavras. Não me chamem bailarina”. “Quando li esta frase, pensei: e se a gente fosse buscar a língua gestual para usar o meu corpo como o escritor usa a palavra?” Pensou e fez. Rita Lello pediu a uma intérprete de língua gestual portuguesa que traduzisse os textos de Graça Pires (“o poema todo na íntegra, antes de fazer a selecção dos excertos”), que os gravou em vídeo. “Depois eu e a Amélia [Bentes, coreógrafa que trabalhou o movimento da peça] analisámos cada poema e os gestos que usamos aqui são os gestos que coreograficamente e espacialmente nos pareceram mais interessantes, relacionados com cada excerto que está a ser dito”, explica. “Olhámos para os poemas em língua gestual como se eles fossem movimento e não palavra.” Esses movimentos nascem de poses clássicas de Isadora, ou misturam-se com elas, para logo se expandirem pelo palco.

Isadora, Fala!
Ricardo Rodrigues/DR

“Não há aqui um movimento naturalista, digamos assim. Não há um movimento que traduza uma acção. Aquela coisa do teatro dramático em que o intérprete representa uma acção em cena. São tudo gestos deslocados do quotidiano, do naturalismo. Isso era uma das minhas propostas neste projecto. Por isso é que também a língua gestual é usada como base, para ajudar a fugir ao quotidiano”, continua Rita Lello. “Este processo foi muito engraçado. Ir à procura de um movimento que não é dança, mas que honra o movimento, o espaço que a Isadora criou. Se ela não tivesse existido, não sei onde estaríamos na dança contemporânea. A gente diz sempre: ah, tinha havido outra. Pois tinha. Mas foi ela. Porque foi de facto a primeira. As outras que havia na altura dela não eram assim. O que faziam não eram as ideias programáticas que ainda hoje a dança contemporânea reclama: o espaço de harmonia, de liberdade, de libertação do corpo, o acaso, o encontro da fluidez do movimento, a partitura sem prisões rígidas, mas que deixa entrar a inspiração do artista.”

Quem está à nossa frente, em palco? De certa forma, está sempre Isadora Duncan, mesmo quando não a reconhecemos. “Se este espectáculo servir para que as pessoas tenham curiosidade de saber quem foi este ser para além de uma maluca que morreu enforcada numa echarpe [enrolada na roda de um carro], eu já fico muito contente”, conclui Rita Lello.

São Luiz – Teatro Municipal (Sala Mário Viegas). 31 Mai-9 Jun. Qua-Sáb 19.30, Dom 16.00. 12€

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